27 setembro 2020

E SE LHE ENCONTRAR NO SALÃO DE BAILE?

 



 

Comecei a dar aulas na UCDB em 2014, mais de 30 anos depois de formada... e, todos os dias era como atravessar as três décadas prá chegar lá... Ter feito movimento estudantil, não me submeter ao padre orientador da pastoral universitária fez a diferença... mas, sem dúvida, foram os processos trabalhistas que assinei como presidenta do Sindicato das Assistentes Sociais que me colocaram no breu.

Voltar era como retornar passando por um corredor de história e lembrar sorrindo e chorando o que me constituía como ser social.

Às vezes chegava mais cedo prá ficar no pátio e ganhar a energia de alunos e alunas.  

Era sempre uma forma bem egoísta... Eu sempre precisei dos jovens para lembrar como é bom ousar sem muito medo. Ou, ousar e, apesar do medo, fazer a diferença.

Num dia desses, sem marcar nada, uma dessas meninas empobrecidas, daquelas que dormiam em três mulheres adultas numa cama porque não cabia mais nada na casa, apresentou-me o seu amigo.

Ele tinha um queixo elevado, cabelo feito Dirting Dancing e óculos de aros pretos finos. E disse: - Professora, você podia conversar com ele... ele acha que eu tô mentindo quando digo que a Sra. é doutora, que estuda em Portugal...

- Uai, é? Então... tô estudando doutorado ainda... vou ser doutora até o ano que vem...

- Boa noite, ou boa tarde...  a Mirian fala que a Sra. é dos direitos humanos...

- Então, sou... você não é?

- Sou da administração. Tenho nada a ver com isso...

- Acho que tem... rimos os três e eu olhei e pensei: esse menino, tipo 20 anos, branco, será que é quem?

Falou que era estagiário de um banco privado, ganhava salário mínimo e 6 horas de trabalho. Tinha vários direitos garantidos e o povo do banco gostava bastante dele porque fazia tudo, gostava de aprender. Quando se formasse ia ser bancário e ia chegar a gerente. Aí iria ter uma casa boa, um carro bom e viajar uma vez por ano prá conhecer primeiro os Estados Unidos e depois a Europa.

- Não quer conhecer o Brasil?

- Aqui é muito subdesenvolvido... tem sempre que ir prá cima, nada de ir prá baixo...

Entrava em sala e minha disciplina era “Questão Social”.  Todas as segundas-feiras, quatro aulas... sempre de desgraceira e esperança...

Ah, imediatamente pensei: tenho motivos imensos para ser professora de uma universidade católica... estudantes são meus motivos!

 

Os Senhores da guerra

Lá fora estão os senhores da guerra
E cantam já hinos de vitória
Lá fora estão os senhores da guerra
E cantam já hinos de vitória
Qual é a história desta terra?
É o medo
Ali mesmo

Todas as segundas-feiras ele passou a chegar de mãos dadas com a Mirian. Roupa feito bancário, jantavam a promoção do dia e ele já ficava me esperando...

Um dia queria entender a tal equidade... conversamos e fui falando e ele perguntando... era uma pergunta atrás da outra. Passei a gostar daquele menino curioso da administração e que não era dos direitos humanos.

Numa semana entabulou a conversa sobre a demarcação das terras indígenas e o desenvolvimento. E já foi falando logo: quero saber a sua opinião, professora... porque perguntei para o meu professor e ele falou que os índios atrapalham o progresso... Fiz as perguntas primeiras: quem está ficando com o dinheiro do “progresso” ? o progresso melhora ou piora a nossa vida? É possível riquezas prá todo mundo?...

- Mas... oh professora, desse jeito a Sra. quer todo mundo pobre...

- Quero não... quero todo mundo com direitos a uma vida digna! No banco que você estagia, quem fica com os lucros?

- Então, professora, eu conversei lá no banco... todo mundo acha que as suas ideias são só sonhos... não tem jeito.

- Oh Mariano, então você conversa comigo, conversa no banco, na sala de aula... e onde mais que você discute o que conversa comigo?

- Lá em casa... minha mãe acha que a Sra. tem alguma razão, inclusive quando a Mirian vai almoçar domingo... mas meu pai falou que a Sra. deve ser dessas ricas que não precisa de dinheiro... por isso que pensa assim.

E aí ia prá sala de aula... discutir “questão social”... Eu sempre pensava... essa disciplina traz mais sofrimento que esperança... e se o namorado da Mirian está sendo atingido pelas discussões... se tô fazendo certo... as discussões na Universidade estão chegando em vários cantos... é, devo estar certa...

Encantava suas perguntas e eu realmente acreditava que ele acreditava no que eu acreditava: o direito de fazer perguntas e ir se colocando na Universidade para aprender... Como disse uma vez minha compa Diane a uma aluna: se você passa pela Universidade e sai igual do que entrou, significa que não viveu a universidade...

Eu acreditei... aquele menino com o corpo troncudo e baixo estava aprendendo na universidade... talvez desaprendendo...

Cá dentro estão os homens à espera
Unidos no destino da terra
Cá dentro estão os homens à espera
Unidos no destino da terra
Já não há memória de paz na terra
É o medo
Ali mesmo

Um dia o Mariano queria saber minha descendência, quando eu havia me tornado “desse jeito”... pensei em tudo: italiana de quatro costelas,  política discutida todos os dias em casa, minha mãe no apostolado da oração lá em Itaporã... minha avó falando prá mudar o lugar da compra por causa do preço, o plantio de sementes de alface no fundo de casa, a pastoral e o  movimento estudantil, o Sindicato, o PT e a CUT... e meu desejo permanente de estudar. Mas, o que eu gostava mesmo era de conversar...

Ele ficou quieto... parecia pensativo... fez umas perguntas de anos aqui outros lá... e depois disse que precisava preparar o trabalho prá aula. Vi que tinha ido com poucas falas, só pensando. Na semana seguinte, perguntou pouco. Pensei como a curiosidade como se cria uma comunista tinha sido aplacada. Passou a chegar tarde, depois que a Mirian me encontrava e saía antes. Incomodava o seu não perguntar.

Numa das aulas, às 18h50 entrei na sala prá “abrir o Sistema” e toda envolvida em acolher cada estudante, eu não havia olhado prá lousa, ou quadro verde... ou quadro negro... Na Universidade era quadro branco com canetas... Aí, uma aluna percebendo meu abobamento perguntou: professora, o que a Sra. achou do quadro?

Havia um quadro branco com escritos azuis e algumas palavras em vermelho.

 Comunista da porra, vai TNC”; “professora comunista é atraso para o Brasil”; “professora fala de direitos mas quer mesmo é implantar o comunismo”; “fora a professora dos direitos humanos e prega o comunismo”; “Fora, professora, vai procurar sua turma”.

Fiquei meio atordoada, mas professora que é professora toma providência e não deixa se intimidar... kkkkkk pensa que sim... já é alguma coisa. Perguntei se alguém sabia do que se tratava e todos se calaram... só a Míriam saiu da sala balançando a cabeça. Vi que estava atordoada. Comecei a aula e a discussão do dia era sobre as desigualdades e o povo negro... pronto, me enchi de coragem. Enviei mensagem para os professores que precisava de reunião emergencial no recreio. Fiz foto dos registros, conversei com os estudantes sobre os ventos fundamentalistas que se avizinhavam. Acho que fiz tudo... eu que achava.

Ó terra
Mais um dia a nascer
Ai, é menos um dia a perder

É tão pouca a glória duma guerra
E os homens que fazem as vitórias
Já não há memória de paz na terra
É o medo
Ali mesmo

Na reunião, todas assistentes sociais, gente do projeto ético-político. Eu, confiante. Contei o ocorrido e a primeira intervenção foi: é... estão acontecendo coisas esquisitas! O que podemos fazer? Foram falas e falas e falas... e, no final: não podemos fazer nada, não temos prova. Se conseguir provas, vamos agir. Saí feliz, fui prá sala e, no caminho encontrei Linda. Ela tinha chegado mais cedo, estava vendo uns vídeos quando viu o Mariano chegar, cheio de si, com um “ar esquisito” e respirava fundo, quase fungando. Olhou pros lados, entrou na sala, escreveu “coisas” no quadro e saiu. Agora que Linda tinha entendido o corre do rapaz.

 

Entrei na sala, coloquei o filme “a história das coisas”  e fui à sala da coordenação. Descrevi tudo o que eu havia sabido. E, a resposta: “vou ver com a direção sobre o que fazer”.

Foram mais três reuniões de professoras e várias mensagens. Ao final, “fui informada” informalmente pelo informe: a Universidade não quer comprar briga com estudantes. Tem muita gente conservadora e vai que o rapaz denuncia como calúnia. A Universidade pode ser processada porque não tem prova.

Eram tantos os argumentos que não conversei mais sobre o assunto.

 

Ó terra
Mais um dia a nascer
Ai, é menos um dia a perder
Ó terra
Mais um dia a nascer
Ai, é menos um dia a perder
É menos um dia a perder

 

Eu sentia cheiro de violência contra os professores, os defensores de direitos humanos, as mulheres, os negros, os indígenas... eu sentia. Não tinha muito com quem conversar. Ainda lembro do choro nervoso que fiz no banheiro, do rosto que lavei, da garganta que não gritei. Lembrava no Madredeus e me dizia diante do espelho: sim... tem um senhor da guerra... e ele está a serviço... 


O oxiúros 1, aquele chamado de cunha, estava no auge. O menino gostava da coragem dele de enfrentar a Dilma. Era um tempo que os  “da esquerda” estavam abobados e não sabiam como agir diante das violências contra eles próprios.

Não, eu não sabia o que fazer, mas a Universidade sabia. Os alunos do pro-uni não podiam ser prejudicados... e eu não tinha prova. Eles mantinham a universidade... o pro-uni alimentou as universidades privadas e comunitárias.

Sim, ele terminou o curso de Administração e minha Mírian o ajudou a fazer o TCC. Sim, eu fui demitida. Sim, ele agora é Uber.

E eu tenho sentimentos contraditórios:

A)     Chamá-lo por um aplicativo e dizer “ o que virou de você, criatura? Quando será gerente de banco?” É um tipo de abordagem prá desopilar o fígado.

B)     Ou, no auge da minha prepotência, convidar a Mírian para um suco e um calzone e dizer para convidá-lo e aí dizer: como está a vida? Que bom que está trabalhando em tempos de tantos desempregos...! tomara que a vida lhes proporcione alegrias...

C)      Ou ainda, preparar-me para encontrar ao acaso, olhar nos olhos e dizer: que bom que está bem... Ah, você sacaneou comigo lá na universidade... então, mesmo desejando que a Mírian fique bem, poderia evitar que a vida promova encontro entre nós?

... penso, penso e penso e não sei como fazer para sair do imbróglio que os educadores estão metidos na sociedade... Só sei que o Mariano não é gado.

E eu fico cá pensando como falar com ele, como apoiar a Mírian que a ele ama, como manter a amorosidade freiriana?

Escutar a denúncia/anúncio dos Senhores da Guerra, ver o Madredeus fazer música disso quase que me convence por inteiro que é possível manter o canto em tempos de violência...

Não, eu não fui assassinada... mas perdi grande parte da esperança... Mas soube que ele agora é aluno da mesma escola de dança que eu.... oh cruzcredo!

E preciso cantar e cantar e cantar até igual ao Cauby... e que o povo do Harmonia me ajude!

E se eu o encontrar na escola de dança de salão, faço o que, minhas deusas?

 Vou cantarolar o Madredeus enquanto qualquer outra música tocar... e.... kkkkkk Espero estar ereta e com sapatos de baile.

                                                                                                                                 Ó terra

Mais um dia a nascer
Ai, é menos um dia a perder
Ó terra
Mais um dia a nascer
Ai, é menos um dia a perder
É menos um dia a perder

Estela Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.

2 comentários:

  1. Fantástico, amada Dra.Estela ler seus textos, embriaga-nos a querer mais, transporta-nos como coadjuvantes no contexto das suas "estórias"...👏👏👏🙌🙌⚘🌷🌹🌻😍💖💐

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  2. O que dizer dessa experiência?Que a história não acabou. Que a vida segue seu curso com gente que não quer ver que é explorado porque é menos dolorido viver, talvez. E gente que sabe o que é exploração e resiste a ela como pode, mesmo sofrendo exploração mas esperançando porque quer um mundo melhor não só pra si. Estela, esta é uma história dolorida demais porque nos traz a concretude do capitalismo sinuoso, envolvente e destrutivo da vida com amor, solidariedade, afetividade. O que o livro Engrácia diria?

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