Comecei a dar aulas na UCDB em 2014, mais de
30 anos depois de formada... e, todos os dias era como atravessar as três
décadas prá chegar lá... Ter feito movimento estudantil, não me submeter ao
padre orientador da pastoral universitária fez a diferença... mas, sem dúvida,
foram os processos trabalhistas que assinei como presidenta do Sindicato das
Assistentes Sociais que me colocaram no breu.
Voltar era como retornar passando por um
corredor de história e lembrar sorrindo e chorando o que me constituía como ser
social.
Às vezes chegava mais cedo prá ficar no pátio
e ganhar a energia de alunos e alunas.
Era sempre uma forma bem egoísta... Eu sempre
precisei dos jovens para lembrar como é bom ousar sem muito medo. Ou, ousar e,
apesar do medo, fazer a diferença.
Num dia desses, sem marcar nada, uma dessas
meninas empobrecidas, daquelas que dormiam em três mulheres adultas numa cama
porque não cabia mais nada na casa, apresentou-me o seu amigo.
Ele tinha um queixo elevado, cabelo feito
Dirting Dancing e óculos de aros pretos finos. E disse: - Professora, você
podia conversar com ele... ele acha que eu tô mentindo quando digo que a Sra. é
doutora, que estuda em Portugal...
- Uai, é? Então... tô estudando doutorado
ainda... vou ser doutora até o ano que vem...
- Boa noite, ou boa tarde... a Mirian fala que a Sra. é dos direitos
humanos...
- Então, sou... você não é?
- Sou da administração. Tenho nada a ver com
isso...
- Acho que tem... rimos os três e eu olhei e
pensei: esse menino, tipo 20 anos, branco, será que é quem?
Falou que era estagiário de um banco privado,
ganhava salário mínimo e 6 horas de trabalho. Tinha vários direitos garantidos
e o povo do banco gostava bastante dele porque fazia tudo, gostava de aprender.
Quando se formasse ia ser bancário e ia chegar a gerente. Aí iria ter uma casa
boa, um carro bom e viajar uma vez por ano prá conhecer primeiro os Estados
Unidos e depois a Europa.
- Não quer conhecer o Brasil?
- Aqui é muito subdesenvolvido... tem sempre que
ir prá cima, nada de ir prá baixo...
Entrava em sala e minha disciplina era
“Questão Social”. Todas as
segundas-feiras, quatro aulas... sempre de desgraceira e esperança...
Ah, imediatamente pensei: tenho motivos
imensos para ser professora de uma universidade católica... estudantes são meus
motivos!
Os Senhores da guerra
Lá fora estão os senhores da guerra
E cantam já hinos de vitória
Lá fora estão os senhores da guerra
E cantam já hinos de vitória
Qual é a história desta terra?
É o medo
Ali mesmo
Todas as segundas-feiras ele passou a chegar de
mãos dadas com a Mirian. Roupa feito bancário, jantavam a promoção do dia e ele
já ficava me esperando...
Um dia queria entender a tal equidade...
conversamos e fui falando e ele perguntando... era uma pergunta atrás da outra.
Passei a gostar daquele menino curioso da administração e que não era dos
direitos humanos.
Numa semana entabulou a conversa sobre a demarcação
das terras indígenas e o desenvolvimento. E já foi falando logo: quero saber a
sua opinião, professora... porque perguntei para o meu professor e ele falou
que os índios atrapalham o progresso... Fiz as perguntas primeiras: quem está
ficando com o dinheiro do “progresso” ? o progresso melhora ou piora a nossa
vida? É possível riquezas prá todo mundo?...
- Mas...
oh professora, desse jeito a Sra. quer todo mundo pobre...
- Quero
não... quero todo mundo com direitos a uma vida digna! No banco que você
estagia, quem fica com os lucros?
- Então,
professora, eu conversei lá no banco... todo mundo acha que as suas ideias são
só sonhos... não tem jeito.
- Oh
Mariano, então você conversa comigo, conversa no banco, na sala de aula... e
onde mais que você discute o que conversa comigo?
- Lá em
casa... minha mãe acha que a Sra. tem alguma razão, inclusive quando a Mirian
vai almoçar domingo... mas meu pai falou que a Sra. deve ser dessas ricas que
não precisa de dinheiro... por isso que pensa assim.
E aí ia
prá sala de aula... discutir “questão social”... Eu sempre pensava... essa
disciplina traz mais sofrimento que esperança... e se o namorado da Mirian está
sendo atingido pelas discussões... se tô fazendo certo... as discussões na
Universidade estão chegando em vários cantos... é, devo estar certa...
Encantava
suas perguntas e eu realmente acreditava que ele acreditava no que eu
acreditava: o direito de fazer perguntas e ir se colocando na Universidade para
aprender... Como disse uma vez minha compa Diane a uma aluna: se você passa
pela Universidade e sai igual do que entrou, significa que não viveu a universidade...
Eu
acreditei... aquele menino com o corpo troncudo e baixo estava aprendendo na
universidade... talvez desaprendendo...
Cá dentro estão os homens à espera
Unidos no destino da terra
Cá dentro estão os homens à espera
Unidos no destino da terra
Já não há memória de paz na terra
É o medo
Ali mesmo
Um dia o Mariano queria saber minha descendência,
quando eu havia me tornado “desse jeito”... pensei em tudo: italiana de quatro
costelas, política discutida todos os
dias em casa, minha mãe no apostolado da oração lá em Itaporã... minha avó
falando prá mudar o lugar da compra por causa do preço, o plantio de sementes
de alface no fundo de casa, a pastoral e o
movimento estudantil, o Sindicato, o PT e a CUT... e meu desejo permanente
de estudar. Mas, o que eu gostava mesmo era de conversar...
Ele ficou quieto... parecia pensativo... fez umas
perguntas de anos aqui outros lá... e depois disse que precisava preparar o
trabalho prá aula. Vi que tinha ido com poucas falas, só pensando. Na semana
seguinte, perguntou pouco. Pensei como a curiosidade como se cria uma comunista
tinha sido aplacada. Passou a chegar tarde, depois que a Mirian me encontrava e
saía antes. Incomodava o seu não perguntar.
Numa das aulas, às 18h50 entrei na sala prá “abrir
o Sistema” e toda envolvida em acolher cada estudante, eu não havia olhado prá
lousa, ou quadro verde... ou quadro negro... Na Universidade era quadro branco
com canetas... Aí, uma aluna percebendo meu abobamento perguntou: professora, o
que a Sra. achou do quadro?
Havia um quadro branco com escritos azuis e algumas
palavras em vermelho.
“Comunista da porra, vai TNC”; “professora comunista é atraso para o Brasil”; “professora fala de direitos mas quer mesmo é
implantar o comunismo”; “fora a professora dos direitos humanos e prega
o comunismo”; “Fora, professora, vai procurar sua turma”.
Fiquei meio atordoada, mas professora que é professora toma providência
e não deixa se intimidar... kkkkkk pensa que sim... já é alguma coisa.
Perguntei se alguém sabia do que se tratava e todos se calaram... só a Míriam
saiu da sala balançando a cabeça. Vi que estava atordoada. Comecei a aula e a
discussão do dia era sobre as desigualdades e o povo negro... pronto, me enchi
de coragem. Enviei mensagem para os professores que precisava de reunião
emergencial no recreio. Fiz foto dos registros, conversei com os estudantes
sobre os ventos fundamentalistas que se avizinhavam. Acho que fiz tudo... eu
que achava.
Ó terra
Mais um dia a nascer
Ai, é menos um dia a perder
É tão pouca a glória duma guerra
E os homens que fazem as vitórias
Já não há memória de paz na terra
É o medo
Ali mesmo
Na reunião, todas assistentes sociais, gente do projeto
ético-político. Eu, confiante. Contei o ocorrido e a primeira intervenção foi:
é... estão acontecendo coisas esquisitas! O que podemos fazer? Foram falas e
falas e falas... e, no final: não podemos fazer nada, não temos prova. Se conseguir
provas, vamos agir. Saí feliz, fui prá sala e, no caminho encontrei Linda. Ela
tinha chegado mais cedo, estava vendo uns vídeos quando viu o Mariano chegar,
cheio de si, com um “ar esquisito” e respirava fundo, quase fungando. Olhou
pros lados, entrou na sala, escreveu “coisas” no quadro e saiu. Agora que Linda
tinha entendido o corre do rapaz.
Entrei na sala, coloquei o filme “a história das
coisas” e fui à sala da coordenação.
Descrevi tudo o que eu havia sabido. E, a resposta: “vou ver com a direção
sobre o que fazer”.
Foram mais três reuniões de professoras e várias mensagens.
Ao final, “fui informada” informalmente pelo informe: a Universidade não quer
comprar briga com estudantes. Tem muita gente conservadora e vai que o rapaz
denuncia como calúnia. A Universidade pode ser processada porque não tem prova.
Eram tantos os argumentos que não conversei mais
sobre o assunto.
Ó
terra
Mais um dia a nascer
Ai, é menos um dia a perder
Ó terra
Mais um dia a nascer
Ai, é menos um dia a perder
É menos um dia a perder
Eu sentia cheiro de violência contra os professores, os defensores de direitos humanos, as mulheres, os negros, os indígenas... eu sentia. Não tinha muito com quem conversar. Ainda lembro do choro nervoso que fiz no banheiro, do rosto que lavei, da garganta que não gritei. Lembrava no Madredeus e me dizia diante do espelho: sim... tem um senhor da guerra... e ele está a serviço...
O oxiúros 1, aquele
chamado de cunha, estava no auge. O menino gostava da coragem dele de enfrentar
a Dilma. Era um tempo que os “da
esquerda” estavam abobados e não sabiam como agir diante das violências contra
eles próprios.
Não, eu não sabia o que
fazer, mas a Universidade sabia. Os alunos do pro-uni não podiam ser
prejudicados... e eu não tinha prova. Eles mantinham a universidade... o pro-uni
alimentou as universidades privadas e comunitárias.
Sim, ele terminou o curso
de Administração e minha Mírian o ajudou a fazer o TCC. Sim, eu fui demitida.
Sim, ele agora é Uber.
E eu tenho sentimentos contraditórios:
A)
Chamá-lo por um aplicativo e dizer “ o que virou de
você, criatura? Quando será gerente de banco?” É um tipo de abordagem prá
desopilar o fígado.
B)
Ou, no auge da minha prepotência, convidar a Mírian
para um suco e um calzone e dizer para convidá-lo e aí dizer: como está a vida?
Que bom que está trabalhando em tempos de tantos desempregos...! tomara que a
vida lhes proporcione alegrias...
C)
Ou ainda, preparar-me para encontrar ao acaso,
olhar nos olhos e dizer: que bom que está bem... Ah, você sacaneou comigo lá na
universidade... então, mesmo desejando que a Mírian fique bem, poderia evitar
que a vida promova encontro entre nós?
... penso, penso e penso e
não sei como fazer para sair do imbróglio que os educadores estão metidos na
sociedade... Só sei que o Mariano não é gado.
E eu fico cá pensando como
falar com ele, como apoiar a Mírian que a ele ama, como manter a amorosidade
freiriana?
Escutar a denúncia/anúncio
dos Senhores da Guerra, ver o Madredeus fazer música disso quase que me convence
por inteiro que é possível manter o canto em tempos de violência...
Não, eu não fui
assassinada... mas perdi grande parte da esperança... Mas soube que ele agora é
aluno da mesma escola de dança que eu.... oh cruzcredo!
E preciso cantar e cantar
e cantar até igual ao Cauby... e que o povo do Harmonia me ajude!
E se eu o encontrar na
escola de dança de salão, faço o que, minhas deusas?
Vou cantarolar o Madredeus enquanto qualquer outra música tocar... e.... kkkkkk Espero estar ereta e com sapatos de baile.
Mais um dia a nascer
Ai, é menos um dia a perder
Ó terra
Mais um dia a nascer
Ai, é menos um dia a perder
É menos um dia a perder
Estela
Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua
Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.
Fantástico, amada Dra.Estela ler seus textos, embriaga-nos a querer mais, transporta-nos como coadjuvantes no contexto das suas "estórias"...👏👏👏🙌🙌⚘🌷🌹🌻😍💖💐
ResponderExcluirO que dizer dessa experiência?Que a história não acabou. Que a vida segue seu curso com gente que não quer ver que é explorado porque é menos dolorido viver, talvez. E gente que sabe o que é exploração e resiste a ela como pode, mesmo sofrendo exploração mas esperançando porque quer um mundo melhor não só pra si. Estela, esta é uma história dolorida demais porque nos traz a concretude do capitalismo sinuoso, envolvente e destrutivo da vida com amor, solidariedade, afetividade. O que o livro Engrácia diria?
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