13 outubro 2020

PRIMEIRA VEZ


 Maria Amélia Mano

    Alpendre, quintal, vento abre porta do galinheiro e pintos escapam aos olhos da  menina descalça, areia fina, chão que vassoura espalha folha seca, galhos e poeira e perto, bate pilão de pilar café e carne seca com farinha, tudo no toco oco da árvore na sombra do tamarindeiro onde, nas raízes, está enterrado umbigo da menina que corre atrás dos pintos, corre tempo, corre infância, corre entre as brechas das roupas nos varais, cheiro de rio, sol e sabão, os pintos fugindo pelas frestras da cerca torta de pau, menina pulando, caindo, esfolando joelhos pela quinta vez no ano e vem ele pela frente, proibido, perigoso, imenso, cacimbão feito garganta do diabo, coberto de tábuas velhas feito dentes, cheio de água suja de óleo de matar mosquito, pintos pulam, escapam, menos o menor deles, o pequeno, o mais frágil, escorrega e cai na fenda, mergulha na água oleosa, tenta nadar, viver, menina na borda, na beira, atira casca de bananeira pra ser bote, balde com corda pra resgate, mas vem cansaço, vem agonia, vem morte, vem choro de menina, vem noite e volta pra casa de taipa, teto de palha, pote de barro, ninhada de gatos no cimento, prato de sopa e confissão pra pai e mãe, sem fome, entre lágrimas, culpa, castigo que aceita de cabeça baixa, dormir cedo, sem doce, sem história e, no ranger das portas e dos armadores da rede, sob mosquiteiro que já foi véu de noiva da mãe, luz da lamparina ilumina dor e remorso da menina que aprende que os miúdos são os mais fáceis de morrer assim, à toa, e reza pela alma do pinto e pra pedir perdão, pela primeira vez.

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