Fazer movimento estudantil em universidade privada não é brincadeira,
não!
Sou daquele tempo que participar da pastoral universitária era um espaço
de se discutir a realidade do mundo. Rezava-se pouco ao deus abstrato e
conversava-se muito com o ato dos apóstolos para saber como Jesus agiria em
cada realidade...
Mas fazer isso tinha um custo: ficava-se tatuada como aquela que “fez
movimento”.
Por muitos anos, mas muitos mesmos... tipo quase três décadas (quase
metade da minha idade) fui ´desconvidada´ em atividades oficiais daquela
universidade. Quando fui era na condição de representante do Sindicado das
Assistentes Sociais ou da Direção Única das Assistentes Sociais... participei
de duas seleções para professora e, em uma delas perderam a pasta com os meus
documentos e em outra passei em primeiríssimo lugar e contrataram a segunda... Só
na terceira seleção fui chamada e fiquei por dois anos como professora.
Ser de esquerda, manter o debate é sempre com a coerência das várias
lutas dos direitos humanos e pautar o capitalismo como promotor de violação de
direitos humanos num é fácil, não... é tatuagem que se coloca na testa e na
alma... e se fica assim, marcada.
Mas em 2008 um amigo do mesmo tempo da militância da PU que era mesmo MU
ia coordenar um debate e me chamou para compor a mesa: Extensão Universitária e
Direitos Humanos. Aceitei prontamente e nós dois ficamos aguardando o meu nome
aparecer na programação prá saber se eu seria desconvidada novamente.
Contei prá ele a saga do Pe. Mendez, da pastoral do menor que preparou a
mesa na abertura do ano letivo, lá em meados dos anos de 1990 e que fizemos
juntos as transparências sobre os direitos de crianças e adolescentes. Quando
cheguei no teatro cheinho de estudantes, ele suava feito gente grande e,
tremendo todo me disse que “haviam proibido” minha participação como convidada
da universidade... ainda lembro que estava com os filhos a tiracolo e combinado
com duas amigas prá cuidar deles enquanto eu falasse... Mendez era magnífico no
trabalho com crianças em situação de rua e, confesso, não avaliamos a realidade
direito. Eu, na minha crença imaginava que, sendo ele um padre não haveria
retaliação. Então... nem mesmo a batina o livrou de ser inserido na proibição
que havia comigo. Aí, ele pegou as transparências que eu havia escrito à mão,
foi lá no palco do teatro da avenida Mato Grosso e expôs o que havíamos
combinado. Dizia ele que a todo momento pensava: falo ou não falo que quem
preparou isso foi ela?
Depois, conversando aqui e ali, Mendez tomou conhecimento que além de
movimento estudantil, eu também tinha me tornado dirigente sindical e havia apoiado
dois processos trabalhistas contra a organização religiosa... e, o pior, uma
das assistentes sociais tinha ganhado uma das causas... lá veio mais uma tatoo:
movimento estudantil, movimento sindical...
Um mês depois, Mendez foi em casa lá pelas 10 da noite, vindo das rondas
noturnas e foi me contar minha terceira tatoo: eu havia afrontado o Pe. Nico lá
na periferia onde ele era o cura. Havia dito que a igreja não era dele e que os
meninos do Beco da Liberdade, da Rio de Janeiro e da Eldorado iriam continuar
no quintal da igreja do Jardim Imperial... o cara tinha azedado comigo só
porque eu havia ficado ao lado da gurizada... pior: tinha sido naquelas
reuniões da coordenação da igreja e, quando todo mundo estava aceitando como
ordem a retirada das crianças eu botei a boca na discussão e foi aprovada a
continuidade dos trabalhos ali... todo mundo com medo ficou quieto e, no final,
minha intervenção falando do modo de ser de Jesus tinha vencido... enfim...
terceira tatoo: a igreja não é do padre!
As tatoos da nossa história podem ser cobertas umas roupagens aqui ou
acolá mas não saem nunca da nossa memória e, quando lembramos é como passar a
mão sobre feridas. Às vezes tem só a casca e não dói mais... às vezes, o pus
está abaixo e dói sem parar.
Mas a maioria das tatoos são mesmo formas de discriminação. Sinto sempre
os desconvites como consequência do meu ser inteirinho tatuado...
Então, voltar àquela universidade em 2008 para discutir extensão
universitária e direitos humanos foi algo que palmilhei devagarinho, sem a
certeza que eu iria realmente participar da mesa. Era outubro, dia do aniversário
da vó Stela e eu pensei: se não der certo, vou achar um vinho prá tomar um
tchantchim em homenagem à ela e pronto.
Coração na mão, adrenalina em subida permanente lá fui eu para o teatro
do bloco C e sentei bem atrás. Qualquer coisa eu sairia à francesa. Era só meu
amigo olhar e fazer o sinal de cortar o pescoço e já saberíamos que não havia
tido a autorização.
Compus a mesa e olhei os/as estudantes do período da manhã. É gente com
um pouco mais de condições que os alunos noturnos. Mesmo assim, grande parte de
bolsistas. Eu estava em casa, pelo menos eu achava que estava.
Combinamos a ordem das falas e, o “menino que fala bonito”, como dizia o
Zeca do PT quando foram vereadores em Campo Grande, foi o primeiro. Tem uma
verve de oratória que é um primor. Todo mundo se encanta. É daquela história de
gente que veio da perifa, fez uma carreira ascendente, virou referência
nacional e, num dos desencantos, abraçou a social democracia privatista. Ai que
dor que foi aquele caminho que ele pensou que era dele... ele não tinha ideia
que a dor era de todas nós, pessoas que apostamos nele... Duas falas lindas eu
rabisquei no meu caderninho prá escrever sobre isso depois: “pau que nasce
torto e morre torto é pau. Não é gente”. Esse mantra dizíamos em todos os
lugares que falávamos de Direitos Humanos. “Quem trabalha nas políticas, mesmo
que não goste é operador de direitos humanos”. Ele falava, encantava, fazia
dobradinha comigo e ríamos à mesa e os estudantes riam, batiam palmas. Uau!!!!
Arrasou. Dizia inclusive que a fala dele tinha que ser a primeira porque já
sabia que eu iria arrasar... rimos, nos abraçamos, beijamos e o povo aplaudiu.
Fiquei de olhos marejados e pensava: como não gostar desse filho daquela mulher
que faz doces e salgados deliciosos?
Aí veio a segunda fala, a professora da universidade que coordenava uns
serviços específicos para atendimento jurídico. Pensei comigo: agora é minha
hora de descontrair. Professora de Direitos Humanos é sempre um aprendizado da
porra! Vou relaxar e ouvir. E ela começou dizendo: estou ao lado da Estela,
sempre polêmica e do professor que sempre levanta o auditório. Abri os olhos de
espanto: as tatuagens estavam ali, em mim e nominadas por ela. Olhei pro menino
que fala bonito e balançamos a cabeça negativamente... percebi que estava na
mesa e me contive. Peguei as canetas coloridas e comecei a rabiscar no bloco de
anotações. Fiz a famosa saída de cena pela via da viagem e... tomando água .
Não escutei mais. Ela havia me reduzido a ser polêmica. Lá pelas tantas, me
liguei de novo na fala e era melhor não ter voltado. Ela relatou que, dentre os
feitos da universidade: “temos feito um trabalho grande nos presídios.
Colocamos 300 criminosos de volta à sociedade”. Anotei a frase, a hora e a
autoria. Os direitos humanos que ela falava eram muito diferentes do que eu
falava...
O desenho para a Zany estava quase
pronto!
Quando chegou minha vez, eu fiz um
sinal para a menina que passava os slides do power point para não colocar nada.
Eu havia levado umas três músicas para
encerrar a minha fala do tipo... a depender do clima e das perguntas eu escolho
uma.
Como explicar direitos humanos a
estudantes que tem já fixado que é cuidar de bandido, que é coisa de esquerda, que
é de gente que não gosta de gente “do bem”... enfim... não só preconceitos, mas
também discriminação com o “povo dos direitos humanos”. Pensei em como falar de
um mundo onde os direitos humanos fosse considerar os direitos de lutar,
beneficiar-se dos direitos que lutou e fazer cantoria respeitando todas as
vozes, todas as formas de cantar.
Meu texto nem falava de criminosos
e nem de mocinhos... falava de revolução de conceitos e do direito dos
estudantes universitários de vivenciarem valores de solidariedade e de
colocarem-se na construção de muitos mundos diversos, alegres, solidários,
cantantes e dançantes.
De novo recorri de forma sem-vergonha
e sem vergonha ao Chico, Milton, Pena Branca e Xavantinho.
Levantei, fui até o menino que fala
bonito e ele cantou ao microfone como nos tempos em que era revolucionário.
Depois, ainda com olhos marejando
me disse: o que é isso, Estela?
E eu respondi: socialismo puro!
A moça da universidade: Esses dois
põem a gente prá cima!
E eu respondi: é uma das funções do
“povo dos direitos humanos”.
Para finalizar, li o que eu havia
escrito para iniciar a minha fala: a extensão universitária é o exercício que
estudantes fazem prá saber se estão conseguindo relacionar o viver com o que
anda aprendendo. É passar pelo fogo que precisa queimar as cascas da semente
prá adiantar o nascimento e o broto vir forte. Mas, se passar pela universidade
sem saber do que é plantar, colher e comer – tudo como direitos humanos... a
universidade não fez o certo.
É da alma de estudantes que vai
brotar o decepar a cana, roubar da cana a doçura do mel... mas, e sobretudo e
finalmente afagar e conhecer os desejos da terra... e fecundar o chão que, no
meu caso, é um outro mundo possível, necessário e que já está a caminho!
Estela
Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua
Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.
Tem tudo de Sócrates , Platão e Aristóteles .Tem tudo da Doutrina Cósmica de Nosso Senhor Jesus Cristo.PORTANTO , está no caminho certo.Por procurar a VERDADE que liberta e apresentá - lá aos peregrinos da Escuridão ,a Sua Luz será Ignorada.Jesus Cristo pagou o preço por esta Postura Libertadora.Tudo que você fizer a respeito com o seu Ideal de Levar as ferramentas aos mais próximos que labutam por uma Vida Digna , será pouco neste País Conturbado por falsas Ideologias em todos os Sentidos.Avante Estela !
ResponderExcluirLauro querido, gosto muito de saber o que você pensa sobre as coisas da vida... seu olhar, geralmente de um lugar diverso do meu me alimenta e seguir pensando com a diferença precisa estar mais no meu cotidiano! Que bom que consigo e gosto de conviver com nossa diversidade e respeito!
ExcluirEstela, disse tudo sobre como os estudantes podem mudar a realidade que ora vivemos. Essa é uma luta constante que os jovens precisam estar preparados se querem um mundo melhor não só pra si, mas para todos que aqui estamos e para as gerações futuras. Direitos humanos ainda parece tabu em nossa sociedade escravocrata, autoritária e consumista. Fruto da nossa história de colonizados escravagista e patriarcal. Não faz tanto tempo passamos pela ditadura e ainda não aprendemos a lição do que é liberdade, igualdade, fraternidade. Como diz a deputada federal Erika Kokay, o Brasil não fez o luto das suas subjetividades perdidas perdas, então não consegue ir além da visão estreita do ressentimento, do ódio e se mantém na ignorância de que é possível construir uma realidade onde os direitos humanos é o exercício da humanidade plena.
ResponderExcluirAmiga compa, como é difícil tirar as couraças escravagistas, colonialistas, machistas (quase como se fossem sinônimos!) e conseguirmos conviver sem esse peso feito cimento que tanto nos aliena e nos torna humanos menos humanos... sim... precisamos reconhecer que o luto não foi vivido e isso nos parece que nos impede de enxergar luzes...
ExcluirAdorei o texto, Estela...você sempre inspirando e distribuindo esperanças...na realidade atual eu só consigo pensar como o Chico..."apesar de você, amanhã há de ser outro dia!!"
ResponderExcluirando pensando como construir esse outro dia... ele não virá ao acaso... nós é que vamos ainda sangrar muito prá ver o dia chegar depois do escuro amanhecer!
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