Entre os blocos de salas de aula da UCDB há umas caixas de cimento, todas
pintadas de verde que se confundem com o gramado. Em torno dessas caixas
algumas alunas se reúnem e eu geralmente as abordava ali antes de entrar nas
salas. Evidente que havia grupos mais receptivos e outros menos... e, na turma
da Liandra eu era sempre muito acolhida e ríamos juntas. Adoro encontrar
estudantes e suas histórias... descobri por descuido da mensagem errada no
grupo que eu podia ser chamada de estrelinha e de roxa. Do deboche à admiração
eu seguia rindo, preocupada e alegre.
Mas a Liandra, não! Ela sempre me mirava com os olhos apertados,
geralmente com cigarro entre os dedos e desafiando quaisquer tentativas de
aproximação. Chegava a virar o corpo quando eu fazia movimento em sua direção.
Entrava na sala sempre no limite de 15 minutos para fazer a presença. Quando as
aulas eram as duas últimas então... curvava-se sobre a mesa e dormia durante
até 22h30 quando eu lançava presença. Quando tinha grupo de discussão ou eu colocava
a turma em círculo ficava irritada e brava. Fazia muxoxos com a boca, soltava
grunhidos de irritação. As colegas, com raras exceções, a “deixavam prá lá”.
Ela me desafiava como educadora. Se o saber se constrói nas relações e eu
não consigo me vincular a ela, como é que ela vai se vincular às discussões? E,
pior, o que fazer com o conteúdo da porra da disciplina “Questão Social” se a
moça não fala, não interage, joga o corpo e a alma fora da sala e da conversa?
Ainda lembro que no filme “Germinal”, eu havia batalhado grande pruma
sala confortável, ar condicionado, pipoca e reunião de 4 horas-aulas prá dar
tempo da película, intervalo, cafezinho e do debate. Pois Liandra encostou a
cadeira perto da parede e dormiu quase todo o filme. E eu pensei: vou ter que
abordar de forma mais enfática. As abordagens ocasionais não estão resolvendo.
Lá fui eu no intervalo do filme:
_ Oi, mulher, você está bem?
_ Estou!
_ Vi que você está cansada.
_ Ué, tô!
_ O trabalho tá pesado?
_ Tá!
_ Às vezes eu também chego bem cansada prás aulas. Dar aulas à noite é
difícil... parece que todas estamos cansadas, inclusive eu...
(silêncio geral... tipo 30 segundos sem corpo e sem boca se
movimentando... só o silêncio que mata as forças da educadora. Lembrei da Elô
quando era trabalhadora sexual e ficou cinco anos se negando ao vínculo na
abordagem de rua. Mas lá a gente teve os cinco anos sem sair da rua – em
abordagem contínua e tinha o preservativo prá interagir... aqui na
universidade, não... aqui é um semestre... E tem o conteúdo e a tal da nota...
então eu precisava apressar o vínculo)
_ Olha, se você quiser ir prá casa e dormir tá de boa. Não se preocupe
com as faltas. Eu abono.
Ela me olhou. Levantou da caixa de cimento verde, esmagou o resto do
cigarro com o pé e se foi de nós.
Quando retomamos a aula após o intervalo, ela entrou na sala e, enquanto
terminávamos o filme, seguiu encostada na parede. Parecia dormir.
Ao acender a luzes, fizemos a tão cara discussão sobre o trabalho
organizando a vida em sociedade que o filme proporciona. Liandra nada falou
embora eu perguntasse se ela tinha algo a dizer. Nada. Silêncio. O embotamento
dela me repulsava e me atraía. Eu deveria “mandar prá ponte que caiu” ou
caminhar ao lado dela pelos corredores na esperança que falasse comigo? Fiz
nada.
No encontro seguinte, numa segunda-feira, duas primeiras aulas, ela
entrou as 19h14. Mantinha a resistência e só entrou no último minuto de
tolerância. Sentava sempre na última fila. Era o terceiro encontro da
disciplina e apresentei o projeto “Estudando com música”. Tratava-se de uma
proposta de discutir a realidade a partir de músicas. Eu levei 11 músicas e a
turma era de 23 estudantes. Cada dupla recebeu uma música que eu propus e
deveriam escolher uma outra. Era uma farra e a alegria nessa aula era misturada
às surpresas... Era cada música...
Ninguém fez dupla com Liandra e, como saída que sempre educadores fazem
(lembrei da Mabé e sua aluna africana, aquela que ninguém fazia grupo...)
tornam-se a própria dupla com a estudante que “sobra”. Nesse dia até estudantes
que não estavam em sala fizeram dupla... e Liandra tornou-se a desafiante minha
dupla. Com o calendário de a cada semana apresentar as músicas, falar das
histórias e dançarmos todas em sala, ficamos por último.
A música que nos coube foi do Chico César e da Vanessa da Matta “A força
que nunca seca”. Na nossa conversa de intervalo combinamos que ela iria prá
minha casa em um domingo à tarde (ela me confessou depois que tinha aceitado ir
em casa somente porque não podia reprovar de mais de duas disciplinas senão
perdia a bolsa). A proposta de música da Liandra para a nossa dupla foi
“Epifáfio” dos Titãs. Eu adorei e concordei prontamente. Adoro cantar:
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...
Preparei suco e deixei o café
semi-pronto. Comprei biscoitos de nata e de queijo. Algo ela iria gostar.
Tínhamos que combinar a forma de apresentação das músicas, as questões para
discussão e ainda aprender a cantar.
Chegou pontualmente as 15 horas, olhava tudo desconfiada e por baixo das
pestanas, aceitou o suco pois o café daria vontade de fumar e viu que no apto
não daria prá isso. Comemos os dois biscoitos. Tudo tinha a minha cara...
Começamos pelos Titãs. Fomos lendo a letra e conversando e lá pelas tantas a
pergunta: É possível à classe trabalhadora trabalhar menos? Errar mais? Ver o
sol se por?
A conversa disparou geral: foi um
encontro... rimos muito sobre como nós duas nem tínhamos tempo de ver o sol se
pôr e quando eu estava dirigindo para a UCDB o pôr-do-sol atrapalhava
dirigir... rimos... Aí ela falou: oh professora, parece que temos problemas,
né? E eu: parece... e rimos de novo. E, nisso percebi que ela olhou
tranquilamente em volta e viu a minha quantidade de livros. Aparentava não se
sentir mais agredida por estar ali comigo...
_Você tem tudo isso de livro?
_ São mais de 40 anos comprando livros
_ Por quê?
_ Vício, kkkkk politicamente correto dizendo: tenho
dependência química de livros.
E rimos de novo...
_ Oh professora, nessa música ninguém tem cabelo normal?
Confesso que não tinha pensado nos cabelos dos três.
_ Menina, num é que são diferentes
mesmo? Não tinha pensado nisso... Vai ver que o cabelo é a força que nunca
seca... (ficamos voltando os vídeos e conversando sobre os cabelos dos três).
Bem, mas eu que gosto da música e também não tenho cabelo normal... ou será que
somos normais e os outros é que não são? Vai ver que controlam demais os cabelos
(rimos de novo).
_ Profa., posso falar uma coisa? Eu
já ouvi essa música um monte de vezes e não entendi nada. Não sei o que é que
ela quer dizer...
Nesse momento sei que minha
formação é meu escudo: que olhar conseguir segurar, que boca fazer para não rechaçar,
que movimento de corpo... tudo é decisivo nesse tipo de situação pois o vácuo
está estabelecido. Há uma distância e percorrê-la é tarefa do educador. A
rapidez do pensar e do agir é exigência!
_ Então, esses cabelos esquisitos
cantam uma letra difícil inicialmente... mas se a gente entender a ideia, daí a
coisa fica mais fácil. Eu entendi, nem sei se o Chico cabelo esquisito e a
Vanessa cabelo esquisito quiseram dizer isso, que o que ele fala é da mulher. A
vida que as mulheres levam e que vergam, mas não quebram. Vamos ler de novo e
vamos vendo se é isso...
Fomos linha a linha... eu lia e ela
ficava quieta. Embotou-se novamente. Pedi que lesse e ela ficou quieta. Não
lia.
Já
se pode ver ao longe
A
senhora com a lata na cabeça
Equilibrando
a lata vesga
Mais
do que o corpo dita
Que
faz o equilíbrio cego
A
lata não mostra
O
corpo que entorta
Pra
lata ficar reta
Pra
cada braço uma força
De
força não geme uma nota
A
lata só cerca, não leva
A
água na estrada morta
E
a força que nunca seca
Pra
água que é tão pouca
Não sou capaz de descrever a
conversa de nós duas e a letra da força
que nunca seca. Acho que esqueci. Acho.
Tomar consciência é um trem
dolorido demais... é um permanente rasgar-se, sangrar-se e ir se caseando à
espera da próxima descoberta da violência que é o viver das mulheres mais
empobrecidas, negras, trabalhadoras domésticas, mãe solo, sexualidade à flor da
pele e o desejo de virar a página.
Às vezes a consciência de cada
desgraceira normalizada vem há muito tempo e ela só vai se consolidando. É
quando cada desigualdade, cada discriminação vai tomando corpo e vai entrando
na vida desnormalizada da gente. Por isso que a consciência dói. Ela nos faz
olhar pro viver, ela nos coloca no concreto do cotidiano da sobrevivência.
_ Profa, essa aí sou eu!
Vi que os olhos choravam, a boca se
continha e o corpo se endurecia. Fiquei estática, fui buscar o café e quando
voltei propus descermos para ela fumar. Topou na hora. Quando chegamos embaixo
o vento esfriado de maio nos manteve racionais. Eu não conseguia pensar no que
falar, que passos dar ou mesmo se propunha parar o encontro ou dar por
terminada a tarefa. Ainda não tínhamos combinado a forma de apresentação à
sala.
_ Eita que maio já está indo e o
frio vem chegando, né?
_ Profa., a senhora não desiste
nunca? Porque não me deixou sentada lá na caixa de cimento? Tem dias,
professora que a gente não quer pensar mais na vida. Ela já é dura demais. Sei
lá, ir na faculdade era jeito de sair dos meus problemas... e aí eu chego lá e
suas aula é só coisa ruim... É uma tal de desigualdade que não tem fim... A
gente dança nas aulas, mas deveria mesmo é chorar...
O soco no estômago se fez. Fiquei
muda. É dor demais saber que se causa dor. E a dor na tomada de consciência é
daquelas que entra na vida e nunca mais sai. É dor que não tem cura.
E eu, da minha condição de mulher
branca, hétero, ganhando mais de 3 SM por mês, com apto próprio, carro de três
anos, liderando e participando de movimentos sociais, sexualidade meio
liberta... olhei aquela mulher e só disse:
_ Desculpa, acho que peguei pesado
demais, né?
_ Acho que não tem outro jeito. Eu
gostava de cantar a música dos Titãs e pensar que eu podia ser mais livre...
hoje vi que não posso. Só se eu me formar e conseguir um bom emprego... mas
sendo assistente social a consciência vai pra tudo quanto é canto, né?
_ Mas a gente poderia tomar uma
cachaça e falar de outras coisas... que tal Campary? Cachaça?
Subimos e eu tomei cachaça e ela
café. Conversamos sobre a turma, a faculdade e os casos amorosos... ela se foi
lá de casa às 9 da noite depois de comermos arroz carreteiro com ovo frito.
Estela Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida
mulherida, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada. Hoje
com a imagem em desenho da compa Malu Moura.
Caraca! Eu nunca tinha pensando nesta dor que se provoca, nesta dor de tomar consciência. Acho que também sou do tipo que fica provocando dor nas pessoas. E por falar em música: "O homem nasceu para curar e cutucar a ferida", diria Cazuza. E eu sou deste que cutuca a ferida o tempo todo, fazer o que, alguém tem que fazer isso, custe o que custar e custa muito, pra ser sincero.
ResponderExcluirtalvez seja isso que estudantes pedem prá gente sair! a dor que abriu e não curou.
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