07 fevereiro 2021

EDUCADORA CAUSA(DOR)


 


Entre os blocos de salas de aula da UCDB há umas caixas de cimento, todas pintadas de verde que se confundem com o gramado. Em torno dessas caixas algumas alunas se reúnem e eu geralmente as abordava ali antes de entrar nas salas. Evidente que havia grupos mais receptivos e outros menos... e, na turma da Liandra eu era sempre muito acolhida e ríamos juntas. Adoro encontrar estudantes e suas histórias... descobri por descuido da mensagem errada no grupo que eu podia ser chamada de estrelinha e de roxa. Do deboche à admiração eu seguia rindo, preocupada e alegre.

Mas a Liandra, não! Ela sempre me mirava com os olhos apertados, geralmente com cigarro entre os dedos e desafiando quaisquer tentativas de aproximação. Chegava a virar o corpo quando eu fazia movimento em sua direção. Entrava na sala sempre no limite de 15 minutos para fazer a presença. Quando as aulas eram as duas últimas então... curvava-se sobre a mesa e dormia durante até 22h30 quando eu lançava presença. Quando tinha grupo de discussão ou eu colocava a turma em círculo ficava irritada e brava. Fazia muxoxos com a boca, soltava grunhidos de irritação. As colegas, com raras exceções, a “deixavam prá lá”.

Ela me desafiava como educadora. Se o saber se constrói nas relações e eu não consigo me vincular a ela, como é que ela vai se vincular às discussões? E, pior, o que fazer com o conteúdo da porra da disciplina “Questão Social” se a moça não fala, não interage, joga o corpo e a alma fora da sala e da conversa?

Ainda lembro que no filme “Germinal”, eu havia batalhado grande pruma sala confortável, ar condicionado, pipoca e reunião de 4 horas-aulas prá dar tempo da película, intervalo, cafezinho e do debate. Pois Liandra encostou a cadeira perto da parede e dormiu quase todo o filme. E eu pensei: vou ter que abordar de forma mais enfática. As abordagens ocasionais não estão resolvendo. Lá fui eu no intervalo do filme:

_ Oi, mulher, você está bem?

_ Estou!

_ Vi que você está cansada.

_ Ué, tô!

_ O trabalho tá pesado?

_ Tá!

_ Às vezes eu também chego bem cansada prás aulas. Dar aulas à noite é difícil... parece que todas estamos cansadas, inclusive eu...

(silêncio geral... tipo 30 segundos sem corpo e sem boca se movimentando... só o silêncio que mata as forças da educadora. Lembrei da Elô quando era trabalhadora sexual e ficou cinco anos se negando ao vínculo na abordagem de rua. Mas lá a gente teve os cinco anos sem sair da rua – em abordagem contínua e tinha o preservativo prá interagir... aqui na universidade, não... aqui é um semestre... E tem o conteúdo e a tal da nota... então eu precisava apressar o vínculo)

_ Olha, se você quiser ir prá casa e dormir tá de boa. Não se preocupe com as faltas. Eu abono.

Ela me olhou. Levantou da caixa de cimento verde, esmagou o resto do cigarro com o pé e se foi de nós.

Quando retomamos a aula após o intervalo, ela entrou na sala e, enquanto terminávamos o filme, seguiu encostada na parede. Parecia dormir.

Ao acender a luzes, fizemos a tão cara discussão sobre o trabalho organizando a vida em sociedade que o filme proporciona. Liandra nada falou embora eu perguntasse se ela tinha algo a dizer. Nada. Silêncio. O embotamento dela me repulsava e me atraía. Eu deveria “mandar prá ponte que caiu” ou caminhar ao lado dela pelos corredores na esperança que falasse comigo? Fiz nada.

No encontro seguinte, numa segunda-feira, duas primeiras aulas, ela entrou as 19h14. Mantinha a resistência e só entrou no último minuto de tolerância. Sentava sempre na última fila. Era o terceiro encontro da disciplina e apresentei o projeto “Estudando com música”. Tratava-se de uma proposta de discutir a realidade a partir de músicas. Eu levei 11 músicas e a turma era de 23 estudantes. Cada dupla recebeu uma música que eu propus e deveriam escolher uma outra. Era uma farra e a alegria nessa aula era misturada às surpresas... Era cada música...

Ninguém fez dupla com Liandra e, como saída que sempre educadores fazem (lembrei da Mabé e sua aluna africana, aquela que ninguém fazia grupo...) tornam-se a própria dupla com a estudante que “sobra”. Nesse dia até estudantes que não estavam em sala fizeram dupla... e Liandra tornou-se a desafiante minha dupla. Com o calendário de a cada semana apresentar as músicas, falar das histórias e dançarmos todas em sala, ficamos por último.

A música que nos coube foi do Chico César e da Vanessa da Matta “A força que nunca seca”. Na nossa conversa de intervalo combinamos que ela iria prá minha casa em um domingo à tarde (ela me confessou depois que tinha aceitado ir em casa somente porque não podia reprovar de mais de duas disciplinas senão perdia a bolsa). A proposta de música da Liandra para a nossa dupla foi “Epifáfio” dos Titãs. Eu adorei e concordei prontamente. Adoro cantar:

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...

 

Preparei suco e deixei o café semi-pronto. Comprei biscoitos de nata e de queijo. Algo ela iria gostar. Tínhamos que combinar a forma de apresentação das músicas, as questões para discussão e ainda aprender a cantar.  Chegou pontualmente as 15 horas, olhava tudo desconfiada e por baixo das pestanas, aceitou o suco pois o café daria vontade de fumar e viu que no apto não daria prá isso. Comemos os dois biscoitos. Tudo tinha a minha cara... Começamos pelos Titãs. Fomos lendo a letra e conversando e lá pelas tantas a pergunta: É possível à classe trabalhadora trabalhar menos? Errar mais? Ver o sol se por?

A conversa disparou geral: foi um encontro... rimos muito sobre como nós duas nem tínhamos tempo de ver o sol se pôr e quando eu estava dirigindo para a UCDB o pôr-do-sol atrapalhava dirigir... rimos... Aí ela falou: oh professora, parece que temos problemas, né? E eu: parece... e rimos de novo. E, nisso percebi que ela olhou tranquilamente em volta e viu a minha quantidade de livros. Aparentava não se sentir mais agredida por estar ali comigo...

_Você tem tudo isso de livro?

_ São mais de 40 anos comprando livros

_ Por quê?

_ Vício, kkkkk politicamente correto dizendo: tenho dependência química de livros.

E rimos de novo...

Começamos a conversar sobre a força que nunca seca. E vimos as versões cantadas pelo Chico César, Bethânia e Vanessa da Mata. Juntos e separados... adoro versões de músicas. Os intérpretes são como os tradutores... traidores nos sentimentos iniciais da obra!  


_ Oh professora, nessa música ninguém tem cabelo normal?

Confesso que não tinha pensado nos cabelos dos três.

_ Menina, num é que são diferentes mesmo? Não tinha pensado nisso... Vai ver que o cabelo é a força que nunca seca... (ficamos voltando os vídeos e conversando sobre os cabelos dos três). Bem, mas eu que gosto da música e também não tenho cabelo normal... ou será que somos normais e os outros é que não são? Vai ver que controlam demais os cabelos (rimos de novo).

_ Profa., posso falar uma coisa? Eu já ouvi essa música um monte de vezes e não entendi nada. Não sei o que é que ela quer dizer...

Nesse momento sei que minha formação é meu escudo: que olhar conseguir segurar, que boca fazer para não rechaçar, que movimento de corpo... tudo é decisivo nesse tipo de situação pois o vácuo está estabelecido. Há uma distância e percorrê-la é tarefa do educador. A rapidez do pensar e do agir é exigência!

_ Então, esses cabelos esquisitos cantam uma letra difícil inicialmente... mas se a gente entender a ideia, daí a coisa fica mais fácil. Eu entendi, nem sei se o Chico cabelo esquisito e a Vanessa cabelo esquisito quiseram dizer isso, que o que ele fala é da mulher. A vida que as mulheres levam e que vergam, mas não quebram. Vamos ler de novo e vamos vendo se é isso...

Fomos linha a linha... eu lia e ela ficava quieta. Embotou-se novamente. Pedi que lesse e ela ficou quieta. Não lia.

Já se pode ver ao longe

A senhora com a lata na cabeça

Equilibrando a lata vesga

Mais do que o corpo dita

Que faz o equilíbrio cego

A lata não mostra

O corpo que entorta

Pra lata ficar reta

Pra cada braço uma força

De força não geme uma nota

A lata só cerca, não leva

A água na estrada morta

E a força que nunca seca

Pra água que é tão pouca

Não sou capaz de descrever a conversa de nós duas e  a letra da força que nunca seca. Acho que esqueci. Acho.

Tomar consciência é um trem dolorido demais... é um permanente rasgar-se, sangrar-se e ir se caseando à espera da próxima descoberta da violência que é o viver das mulheres mais empobrecidas, negras, trabalhadoras domésticas, mãe solo, sexualidade à flor da pele e o desejo de virar a página. 

Às vezes a consciência de cada desgraceira normalizada vem há muito tempo e ela só vai se consolidando. É quando cada desigualdade, cada discriminação vai tomando corpo e vai entrando na vida desnormalizada da gente. Por isso que a consciência dói. Ela nos faz olhar pro viver, ela nos coloca no concreto do cotidiano da sobrevivência.

_ Profa, essa aí sou eu!

Vi que os olhos choravam, a boca se continha e o corpo se endurecia. Fiquei estática, fui buscar o café e quando voltei propus descermos para ela fumar. Topou na hora. Quando chegamos embaixo o vento esfriado de maio nos manteve racionais. Eu não conseguia pensar no que falar, que passos dar ou mesmo se propunha parar o encontro ou dar por terminada a tarefa. Ainda não tínhamos combinado a forma de apresentação à sala.

_ Eita que maio já está indo e o frio vem chegando, né?

_ Profa., a senhora não desiste nunca? Porque não me deixou sentada lá na caixa de cimento? Tem dias, professora que a gente não quer pensar mais na vida. Ela já é dura demais. Sei lá, ir na faculdade era jeito de sair dos meus problemas... e aí eu chego lá e suas aula é só coisa ruim... É uma tal de desigualdade que não tem fim... A gente dança nas aulas, mas deveria mesmo é chorar...

O soco no estômago se fez. Fiquei muda. É dor demais saber que se causa dor. E a dor na tomada de consciência é daquelas que entra na vida e nunca mais sai. É dor que não tem cura.

E eu, da minha condição de mulher branca, hétero, ganhando mais de 3 SM por mês, com apto próprio, carro de três anos, liderando e participando de movimentos sociais, sexualidade meio liberta... olhei aquela mulher e só disse:

_ Desculpa, acho que peguei pesado demais, né?

_ Acho que não tem outro jeito. Eu gostava de cantar a música dos Titãs e pensar que eu podia ser mais livre... hoje vi que não posso. Só se eu me formar e conseguir um bom emprego... mas sendo assistente social a consciência vai pra tudo quanto é canto, né?

_ Mas a gente poderia tomar uma cachaça e falar de outras coisas... que tal Campary? Cachaça?

Subimos e eu tomei cachaça e ela café. Conversamos sobre a turma, a faculdade e os casos amorosos... ela se foi lá de casa às 9 da noite depois de comermos arroz carreteiro com ovo frito.

Estela Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada. Hoje com a imagem em desenho da compa Malu Moura.

 

 

2 comentários:

  1. Caraca! Eu nunca tinha pensando nesta dor que se provoca, nesta dor de tomar consciência. Acho que também sou do tipo que fica provocando dor nas pessoas. E por falar em música: "O homem nasceu para curar e cutucar a ferida", diria Cazuza. E eu sou deste que cutuca a ferida o tempo todo, fazer o que, alguém tem que fazer isso, custe o que custar e custa muito, pra ser sincero.

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    1. talvez seja isso que estudantes pedem prá gente sair! a dor que abriu e não curou.

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