Maria Amélia Mano
Vejo a liberdade como uma forma de beleza e essa beleza me falta.
Clarice Lispector
Sou composta de carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e urgências, principalmente em forma de água. Minhas ligações atômicas são atônitas, intensas e produzo um facho de luz vermelha, fóton forte que se desloca no vácuo, quantum de rara e imensa energia que não uso porque descontrolo. Porque desconheço. Porque não aprendi. Beleza que me falta.
Minhas ancestrais lutavam pela sobrevivência em manada; nômades, lentas, espreitando o mundo com respeito, fartas, francas, fluidas, fortes. Férteis em feitiços e fugas eternas. Desenharam nas pedras, escreveram versos impossíveis nas montanhas, nos leitos dos rios e deixaram marcas em árvores e ventos. Sou o pó que resta de todas elas. Sou memória.
Chegou o dia em que cantei, falei e escutei as vozes suaves de minhas irmãs mais velhas. Senti o sabor dos temperos da minha mãe nos alimentos que fiz sem receitas. Dancei e dancei e dancei como minhas avós dançaram em volta da fogueira. Chorei e meus soluços eram os das minhas bisavós. Como elas, escrevi poemas na terra, na água e no ar. Comecei a (me) enxergar.
No espelho, vi as faces delas refletidas quando me olhei. Percebi que estavam sempre comigo. Mais que as da minha linhagem, me vi igual a todas as do meu tempo, na angústia da espera, no tremor da escolha e do medo. As mesmas rugas nos mesmos lugares. As mesmas intuições, inquietações e internações involuntárias; os mesmos eletrochoques de aliviar nossas loucuras. Livres e líquidas.
De guardiã de segredos que podem levar universo à ruína ou ao rastro de respostas que dão sentido à existência, fui, até então, essa mulher comum, presa ao que desejavam de mim. Em tempo, percebi e resgatei beleza e palavras. E palavras são tambores que chamam rituais, flautas doces que chamam pra contar histórias. Precisamos.
Aranha fiandeira me balbuciou tormenta. E me despedi de mim, a nado, abraçando todas as minhas ancestrais e todas as da minha aldeia com missão de correr e transbordar, juntas. Porque assim somos fortes. Porque produzimos energia. Porque somos compostas de carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e urgências, principalmente em forma de água. Beleza que nos sobra.
Ilustração: Monica Barengo
Texto parte da coletânea Marias e Clarices, organizada por Rubem Penz
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