Roque
desceu para o pátio da companhia antes de todos os outros soldados. Ainda viu os
“condenados” da guarda daquele dia, disputando local e horário, mas não prestou
muita atenção, precisava encontrar o capitão antes que todos os pelotões
começassem a se formar.
Felizmente,
na sala ao lado do escritório do sargentiante, onde os oficiais costumavam se
reunir antes da formatura da companhia, viu o capitão Ricardo, Ricardão, para
os soldados.
Sujeito
curioso, alto, corpulento, com uma voz muito grave que se podia ouvir de longe,
inspirava muita confiança. Era bastante orgulhoso de sua companhia, não
costumava maltratar os soldados. Quando chamava um soldado pelo seu nome no
diminutivo, era sinal de ele estava encrencado. Era capaz de falar sobre como
reprimir grevistas e comunista, acertar um tiro no inimigo há dois mil metros, como
extrair informações do interrogado, durante o dia e, à noite fazer cultos
evangélicos na cantina, onde pregava o amor ao próximo. Por falar nisso, havia
um culto agendado para próxima semana, toda primeira companhia estava
convidada, seria no refeitório.
Roque
aproximou-se do capitão, em pé na porta da sala. Ele viu Roque, e posicionou-se
para ouvir. Todo soldado sabe reconhecer essa disposição corporal. Roque não
era diferente. Ficou ereto o mais que pode na frente do capital, bateu
continência, com os dedos tão esticados que quase sentiu câimbras.
-
Capitão, permissão para falar?
Ricardão
não respondeu, apenas fez aquela expressão entediada de que o soldado poderia
continuar falando.
- Não
estou me sentido bem, permissão para ir à FS[1].
Roque
não dormira bem, sentia-se com o estômago embrulhado, dor de cabeça, coceiras e
tinha o corpo todo inchado.
Os
primeiros soldados começavam a descer a rampa do alojamento, sargentos e
oficiais começavam a chegar para formatura da companhia, hora e lugar onde o
capitão se preparava para formatura do batalhão, quando desfilavam em frente ao
coronel.
O
capitão, sem rodeio disse:
- Você
vai morrer se for à formatura?
E antes
que Roque pudesse responder, encerrou o assunto:
- Vá
depois.
A
formatura é uma espécie de demonstração, para os oficiais do estado maior do
batalhão, que a tropa está bem disposta, alinhada e com a moral elevada. Cada
pelotão, cada companhia quer marchar mais alinhada, gritar mais alto na frente
o coronel. Cada soldado quer apresentar-se com sua melhor farda, limpa,
passada, engomada. Enfim, um desfile de moda fútil e inútil para ocupar o tempo
dos soldados, como se na vida real nada tivesse que fazer.
Roque se
aguentou durante a formatura, embora, em sua imaginação, ficasse pensando na
eventualidade do coronel parar em sua frente, como fazia aleatoriamente na
formatura, e, justo nesta hora, ele vomitasse no coturno brilhante do coronal,
que algum lacaio deveria ter engraxado. Também imaginou que poderia ser
flagrado se coçando durante a posição de sentido ou desmaiar durante a
apresentação de armas, como vira acontecer certa vez com um antigão[2]. Mas nada disso
aconteceu. A formatura terminou, a primeira companhia voltou para seu pátio, posicionando-se
na lateral esquerda, em baixo das árvores. Como sempre acontecia, o capitão
passou o comando da companhia ao oficial mais graduado, depois dele mesmo.
Estavam em formação mais ou menos 110 soltados perfilados um ao lado do outro
em posição de descansar, pernas ligeiramente separadas e os braços atrás das
costas, entre eles Roque, sentindo-se cada vez mais enjoado, rezando para
aquela cerimônia acabar logo e poder procurar ajuda.
- Primeira
companhia ao meu comando – disse o tenente, olhando para o capitão.
Os dois
trocaram continências e o tenente, dando meia volta ficou de frente para tropa
e falou o mais alto que pode, talvez tentando impressionar o capitão, que
parecia especialmente indiferente aquela manhã:
-
Vanguardeira, sentido!
Roque?
Bem, ele
se aguentava...
Quando o
tenente passou o comando do pelotão para o sargento, este o tirou de forma, Roque
correu para FS. Nem viu o sargento do PELOPES comandar fora de forma para os
soldados, mas deixar Pradinho, sozinho, na posição de sentido.
Na FS,
haviam alguns soldados de outras companhias aguardando atendimento, mas Roque,
por sua aparência sofrível, foi atendido primeiro. O tenente médico, após um
rápido exame com os olhos, disse que era uma alergia, provavelmente causada por
alguma coisa que o soldado comeu.
- Vamos
fazer uma injeção – disse o tenente, com um ar zombeteiro[3]
no canto da boca. - Tire a gandola.
O
médico, para espanto de Roque, segurou seu braço e, com uma caneta desenho um
alvo no local onde deveria aplicar a injeção.
Roque
estranhou aquele procedimento, mas há muito tempo havia deixado de prestar
atenção nas coisas absurdas que percebia nos oficiais. Nenhum parecia muito
certo do juízo. Ele preparou a medicação, segurou a seringa como se fosse um
dardo, girou no ar por três vezes, como se fosse um aviãozinho em rota de
colisão, deu um grito alucinado e acertou o alvo desenhado no braço de Roque,
que perplexo, ficou sem fala, sem saber o que fazer: correr, esperar ou agredir
o sujeito, que deveria estava doidão.
O
tenente deixo a seringa pendurada no Braço de Roque, girou sobre o próprio corpo,
como se executasse um passo de dança, cantarolou:
- I
can't get no satisfaction – e começou a lavar as mãos.
Neste
momento entrou outro oficial no consultório, talvez atraído pelo grito
alucinado do médico. Quando a porta se abriu, Roque, ainda desconcertado,
imaginando que talvez tudo aquilo fosse uma alucinação induzida pelo seu
estado, viu os rostos assustados dos outros soldados que aguardavam atendimento.
-
Coitado do soldado, tenente. O braço dele está sangrando - disse subserviente,
mas preocupado, o oficial. Era evidente que era menos antigo que o médico.
- satisfaction...
- repetiu o médico com a farda branca, mas ainda do exército. E perguntou, com
ar muito natural, mas olhos vidrados:
- Quer que
injete o líquido aos poucos ou de uma vez só, mocorongo?
Roque,
começou a perceber, neste momento, que tudo aquilo não era uma alucinação, que,
por mais absurdo que pudesse ser, estava acontecendo mesmo. Nada conseguiu
responder, nem foi preciso.
O
tenente alucinado, doidão, olhou para o outro oficial, apertou a seringa de uma
vez e disse, abrindo a porta:
- Tá
terminado, só liberar.
Roque
saiu sem entender o que tinha acontecido, sem acreditar naquilo. No corredor
pediu para um soldado ver se realmente tinha um alvo desenhado em seu braço.
Preciso
dormir, pensou Roque, sentindo as pernas bambas, as vistas escurecerem-se e
muita dor no braço. O tenente, de dentro do consultório, gritou:
- O
próximo mocorongo.
Os
soldados, sentados um ao lado o outro, entreolharam-se, indecisos, como que
dizendo com o olhar:
- Vai
você.
Ninguém
se mexeu, o médico fardado repetiu:
-
próximo, acelerado...
Como
ninguém entrou, ele saiu à porta do consultório e comandou:
- De pé
um, dois, mocorongos.
Os
soldados, como se curados de uma vez, levantaram-se assustado e tomaram posição
de descansar.
-
Sentido! – comandou o médico com farda branca, que lhe dava um ar mais ridículo
do que aos demais fardados.
Ouviu-se
o som das palmas batendo contra as coxas dos soltados, o que atraiu atenção de
outros oficiais e sargentos do corpo de saúde do exército.
- Sua
vez, soldado! – disse o tenente.
O
soldado, apontado pelo tenente, indeciso, mas resoluto, apesar da voz
gaguejante, disse:
- O
soldado Roque não está conseguindo caminhar direito, Tenente, vou acompanha-lo
até o alojamento, pode atender o Soldado Silva primeiro. – E saiu
imediatamente, sem dar tempo do tenente vestido de branco, com estetoscópio
pendura no pescoço, dar outro comando.
Por sua
vez, o soldado Silva e, ao mesmo tempo o Marco, Marcão para os mais íntimos, bateram
continência com as cabeças erguidas, evitando olhar direito para o rosto do
tenente, e disseram, também sem dar tempo de resposta:
- Vamos
ajudar a carregar o Soldado Roque até a primeira companhia.
No
alojamento, Roque passou o dia e toda a noite em repouso, teve intensa
sudorese, alucinações. Antes do dia amanhecer e começar o novo expediente, foi
acordado por um sargento que o conduziu a FS novamente. Roque caminhou confuso,
sem saber se tudo que se lembrava era real ou alucinações.
Ao
entrar no consultório, acompanhado do sargento, suas dúvidas foram dissipadas.
O tenente de branco, com cara de doidão sádico, esfregou uma mão na outra e
disse:
- Você
de novo!?
Mas,
desta vez, atendeu Roque corretamente, o que o deixou em dúvida novamente – tudo
que se lembrava, do primeiro atendimento, foi real ou alucinação?
[Ernande Valentin do
Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
[1]
Fundação de saúde, no linguajar milico.
[2]
Antigão era como chamavam os soldados que voluntariamente haviam engajado no
exército para continuar servindo após primeiro ano obrigatório.
[3]
Essa palavra, pouco usual hoje em dia, está escrita aqui, por dar a dimensão exata
da situação, mas principalmente pela influência da leitura de Guerra e Paz, de
Liev Toltói, que um dos autores estava lendo no momento em que escreveu essa
história.