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25 dezembro 2015

MAIS UMA DO ROQUE

Roque desceu para o pátio da companhia antes de todos os outros soldados. Ainda viu os “condenados” da guarda daquele dia, disputando local e horário, mas não prestou muita atenção, precisava encontrar o capitão antes que todos os pelotões começassem a se formar.
Felizmente, na sala ao lado do escritório do sargentiante, onde os oficiais costumavam se reunir antes da formatura da companhia, viu o capitão Ricardo, Ricardão, para os soldados.
Sujeito curioso, alto, corpulento, com uma voz muito grave que se podia ouvir de longe, inspirava muita confiança. Era bastante orgulhoso de sua companhia, não costumava maltratar os soldados. Quando chamava um soldado pelo seu nome no diminutivo, era sinal de ele estava encrencado. Era capaz de falar sobre como reprimir grevistas e comunista, acertar um tiro no inimigo há dois mil metros, como extrair informações do interrogado, durante o dia e, à noite fazer cultos evangélicos na cantina, onde pregava o amor ao próximo. Por falar nisso, havia um culto agendado para próxima semana, toda primeira companhia estava convidada, seria no refeitório. 
Roque aproximou-se do capitão, em pé na porta da sala. Ele viu Roque, e posicionou-se para ouvir. Todo soldado sabe reconhecer essa disposição corporal. Roque não era diferente. Ficou ereto o mais que pode na frente do capital, bateu continência, com os dedos tão esticados que quase sentiu câimbras.
- Capitão, permissão para falar?
Ricardão não respondeu, apenas fez aquela expressão entediada de que o soldado poderia continuar falando.
- Não estou me sentido bem, permissão para ir à FS[1].
Roque não dormira bem, sentia-se com o estômago embrulhado, dor de cabeça, coceiras e tinha o corpo todo inchado.
Os primeiros soldados começavam a descer a rampa do alojamento, sargentos e oficiais começavam a chegar para formatura da companhia, hora e lugar onde o capitão se preparava para formatura do batalhão, quando desfilavam em frente ao coronel.
O capitão, sem rodeio disse:
- Você vai morrer se for à formatura?
E antes que Roque pudesse responder, encerrou o assunto:
- Vá depois.
A formatura é uma espécie de demonstração, para os oficiais do estado maior do batalhão, que a tropa está bem disposta, alinhada e com a moral elevada. Cada pelotão, cada companhia quer marchar mais alinhada, gritar mais alto na frente o coronel. Cada soldado quer apresentar-se com sua melhor farda, limpa, passada, engomada. Enfim, um desfile de moda fútil e inútil para ocupar o tempo dos soldados, como se na vida real nada tivesse que fazer.
Roque se aguentou durante a formatura, embora, em sua imaginação, ficasse pensando na eventualidade do coronel parar em sua frente, como fazia aleatoriamente na formatura, e, justo nesta hora, ele vomitasse no coturno brilhante do coronal, que algum lacaio deveria ter engraxado. Também imaginou que poderia ser flagrado se coçando durante a posição de sentido ou desmaiar durante a apresentação de armas, como vira acontecer certa vez com um antigão[2]. Mas nada disso aconteceu. A formatura terminou, a primeira companhia voltou para seu pátio, posicionando-se na lateral esquerda, em baixo das árvores. Como sempre acontecia, o capitão passou o comando da companhia ao oficial mais graduado, depois dele mesmo. Estavam em formação mais ou menos 110 soltados perfilados um ao lado do outro em posição de descansar, pernas ligeiramente separadas e os braços atrás das costas, entre eles Roque, sentindo-se cada vez mais enjoado, rezando para aquela cerimônia acabar logo e poder procurar ajuda.
- Primeira companhia ao meu comando – disse o tenente, olhando para o capitão.
Os dois trocaram continências e o tenente, dando meia volta ficou de frente para tropa e falou o mais alto que pode, talvez tentando impressionar o capitão, que parecia especialmente indiferente aquela manhã:
- Vanguardeira, sentido!
Roque?
Bem, ele se aguentava...
Quando o tenente passou o comando do pelotão para o sargento, este o tirou de forma, Roque correu para FS. Nem viu o sargento do PELOPES comandar fora de forma para os soldados, mas deixar Pradinho, sozinho, na posição de sentido.  
Na FS, haviam alguns soldados de outras companhias aguardando atendimento, mas Roque, por sua aparência sofrível, foi atendido primeiro. O tenente médico, após um rápido exame com os olhos, disse que era uma alergia, provavelmente causada por alguma coisa que o soldado comeu.
- Vamos fazer uma injeção – disse o tenente, com um ar zombeteiro[3] no canto da boca. - Tire a gandola.
O médico, para espanto de Roque, segurou seu braço e, com uma caneta desenho um alvo no local onde deveria aplicar a injeção.
Roque estranhou aquele procedimento, mas há muito tempo havia deixado de prestar atenção nas coisas absurdas que percebia nos oficiais. Nenhum parecia muito certo do juízo. Ele preparou a medicação, segurou a seringa como se fosse um dardo, girou no ar por três vezes, como se fosse um aviãozinho em rota de colisão, deu um grito alucinado e acertou o alvo desenhado no braço de Roque, que perplexo, ficou sem fala, sem saber o que fazer: correr, esperar ou agredir o sujeito, que deveria estava doidão. 
O tenente deixo a seringa pendurada no Braço de Roque, girou sobre o próprio corpo, como se executasse um passo de dança, cantarolou:
- I can't get no satisfaction – e começou a lavar as mãos.
Neste momento entrou outro oficial no consultório, talvez atraído pelo grito alucinado do médico. Quando a porta se abriu, Roque, ainda desconcertado, imaginando que talvez tudo aquilo fosse uma alucinação induzida pelo seu estado, viu os rostos assustados dos outros soldados que aguardavam atendimento.
- Coitado do soldado, tenente. O braço dele está sangrando - disse subserviente, mas preocupado, o oficial. Era evidente que era menos antigo que o médico.
- satisfaction... - repetiu o médico com a farda branca, mas ainda do exército. E perguntou, com ar muito natural, mas olhos vidrados:
- Quer que injete o líquido aos poucos ou de uma vez só, mocorongo?
Roque, começou a perceber, neste momento, que tudo aquilo não era uma alucinação, que, por mais absurdo que pudesse ser, estava acontecendo mesmo. Nada conseguiu responder, nem foi preciso.
O tenente alucinado, doidão, olhou para o outro oficial, apertou a seringa de uma vez e disse, abrindo a porta:
- Tá terminado, só liberar.
Roque saiu sem entender o que tinha acontecido, sem acreditar naquilo. No corredor pediu para um soldado ver se realmente tinha um alvo desenhado em seu braço.
Preciso dormir, pensou Roque, sentindo as pernas bambas, as vistas escurecerem-se e muita dor no braço. O tenente, de dentro do consultório, gritou:
- O próximo mocorongo.
Os soldados, sentados um ao lado o outro, entreolharam-se, indecisos, como que dizendo com o olhar:
- Vai você.
Ninguém se mexeu, o médico fardado repetiu:
- próximo, acelerado...
Como ninguém entrou, ele saiu à porta do consultório e comandou:
- De pé um, dois, mocorongos.
Os soldados, como se curados de uma vez, levantaram-se assustado e tomaram posição de descansar.
- Sentido! – comandou o médico com farda branca, que lhe dava um ar mais ridículo do que aos demais fardados.
Ouviu-se o som das palmas batendo contra as coxas dos soltados, o que atraiu atenção de outros oficiais e sargentos do corpo de saúde do exército.
- Sua vez, soldado! – disse o tenente.
O soldado, apontado pelo tenente, indeciso, mas resoluto, apesar da voz gaguejante, disse:
- O soldado Roque não está conseguindo caminhar direito, Tenente, vou acompanha-lo até o alojamento, pode atender o Soldado Silva primeiro. – E saiu imediatamente, sem dar tempo do tenente vestido de branco, com estetoscópio pendura no pescoço, dar outro comando.
Por sua vez, o soldado Silva e, ao mesmo tempo o Marco, Marcão para os mais íntimos, bateram continência com as cabeças erguidas, evitando olhar direito para o rosto do tenente, e disseram, também sem dar tempo de resposta:
- Vamos ajudar a carregar o Soldado Roque até a primeira companhia.
No alojamento, Roque passou o dia e toda a noite em repouso, teve intensa sudorese, alucinações. Antes do dia amanhecer e começar o novo expediente, foi acordado por um sargento que o conduziu a FS novamente. Roque caminhou confuso, sem saber se tudo que se lembrava era real ou alucinações.
Ao entrar no consultório, acompanhado do sargento, suas dúvidas foram dissipadas. O tenente de branco, com cara de doidão sádico, esfregou uma mão na outra e disse:
- Você de novo!?
Mas, desta vez, atendeu Roque corretamente, o que o deixou em dúvida novamente – tudo que se lembrava, do primeiro atendimento, foi real ou alucinação?


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]




[1] Fundação de saúde, no linguajar milico.
[2] Antigão era como chamavam os soldados que voluntariamente haviam engajado no exército para continuar servindo após primeiro ano obrigatório.
[3] Essa palavra, pouco usual hoje em dia, está escrita aqui, por dar a dimensão exata da situação, mas principalmente pela influência da leitura de Guerra e Paz, de Liev Toltói, que um dos autores estava lendo no momento em que escreveu essa história. 

13 junho 2014

O ROQUE E EU

Faz alguns dias que o Roque me disse que tem diabetes. O médico da empresa lhe passou uma medicação de mais de 100 reais. Absurdo, eu disse. Dê ai seu endereço completo que vou lhe conseguir uma consulta em uma Unidade de saúde de Curitiba.
Primeiro Roque disse que não queria incomodar, que isso daria trabalho. Mas insisti, disse que falaria com um amigo que ajeitaria as coisas. Aí ele disse:
- Eu odeio médico. Respondi que meu amigo é enfermeiro.
- Eu odeio Enfermeiro também, disse Roque.
Fiquei preocupado, mas a vida é assim mesmo. O Roque vai sobreviver.
Mas quem é o Roque?
Bem, o pai dele é o Diabo, disse Raul, sendo assim eu morava ao lado do diabo quando era adolescente. A porta da cozinha de minha casa dava para porta da sala do Roque, em um conjunto habitacional em Pirapó, distrito de Apucarana, no norte do Paraná. Temos a mesma idade e servimos no mesmo quartel - Trigésimo Batalhão de Infantaria Motorizada (30° BIM). Mesma companhia: 1ª companhia – vanguardeira. Ele no terceiro pelotão e eu no Pelotão de operações especiais (PELOPES) - onde ninguém queria estar: lembram-se do treinamento mostrado no filme Tropa de elite?
O treinamento do PELOPES era bem parecido. Foi, talvez, o pior ano de minha vida. No final, próximo da gente finalmente deixar o exercito, fui preso por zombar do coronel ou de um sargento (não lembro mais). Era fim de ano, festas natalinas e, nessa época, alguém sempre faltava à guarda no final de semana. Tanto no Exército quanto na Enfermagem, se alguém falta, outro tem que substituir. A guarda não para. Um soldado teria que perder o domingo (ou o natal) e desta vez quem se deu mal foi o Roque.
Quando fiquei sabendo quem teria que dobrar a guarda, avisei:
- Fale para o Borba (Sargento) que eu fico no seu lugar (não era nada de mais, eu já estava preso mesmo, teria que passar o domingo na cela). Roque falou! Mas Borba contra argumentou:
- O Prado? Ele não foi voluntário nem para servir. Imagina se vai ser voluntário para dobrar a guarda!
De fato. Não fui voluntário. Sempre odiei a ideia até de usar farda. Fiz tudo que podia para escapar, mas não deu. Muitos garotos, como eu, vão forçados para o quartel, porém, uma vez não podendo sair, são forçados a declararem-se voluntários, sob pena de aumentar o sofrimento. Naquele ano, 1988, apenas dois soldados não se declararam voluntários até o fim do ano. Eu e outro louco que nunca cheguei saber quem era. O Batalhão era enorme, mas diziam que era um cara da Companhia de Comandos e Serviços (CCS) e que vivia preso, que até já tinha batido em um sargento, mas acho que era tudo lenda. Mas a coisa era tão sinistra que volta e meia, até o último dia de quartel, soldados, cabos, sargentos, tenentes e capitães continuavam me questionando sobre eu ser voluntário. E eu neguei até o fim:
– Estou aqui obrigado. Mas fui voluntário para dobrar a guarda, mas isso porque era o Roque quem seria condenado.
O Roque odeia Enfermeiros, mas eu continuo amando o Roque.

 [Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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