Mostrando postagens com marcador amizade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador amizade. Mostrar todas as postagens

31 maio 2020

HÉRCULES QUERIDO, VAMOS A BARRETOS


Querido amigo,
Preciso ir a Barretos prá lhe ver, abraçar, ficar de mãos dadas, conversar tudo e conversar nada.
Não é você que precisa que eu lhe visite, sou eu que preciso de você, muito embora eu fale pros meninos e prá quem lhe conhece que você precisa das amigas nessa fase da sua vida. Eu sei que torci a verdade... eu necessito do seu calor gential, de gente gentil genial, gente.  
O face e o watts já não bastam. Mesmo quando fazemos vídeo não sinto o movimento rápido dos seus olhos, o afago das suas mãos e o movimento do corpo vindo para o abraço... num dá, compa! Quando o amigo adoece, sou eu, aparentemente sã, que preciso do seu esperanceio...
Hoje estive pensando que amizade é uma forma de amor, desses que não há exigências nem interesses para estar juntos. Na verdade, na verdade mesmo, provocada pelo Hédio que não identifica o interesse na amizade que me une à Sola, pensei cá comigo: meu interesse na amizade é grande... não sou desinteressada messssmo! Sinto-me segura em saber que fios de aço e seda - invisíveis aos demais - estão do outro lado me abastecendo de afeto e cuidado. Só saber que estão aí, os amigos nem precisam estar aqui.
Mas você preciso estar face-a-face!
Desde que soube que o câncer lhe encontrou lembro dos combinados de comemorarmos nossos aniversários juntos.... VIAJANDOOOOOOO... e ainda não o fizemos... tá... já sei que as dores que sente já não permitem horas de voo, nem tampoco viagens largas de carro... então vamos ter que viajar juntos de outras maneiras... e, sendo nós dois, tão sonhadores, até música nos põe a turistar... E Cuba.. como iremos?
Pensei em levar sopa paraguaia ou carne de sol para o arroz carreteiro. Só que ainda não consigo conversar sobre o que não pode comer... ainda não me preparei prá essa conversa. Lembro de um tempo em que íamos a restaurantes e a pores-do-sol em Brasília e em Campo Grande e nos lambuzávamos de gozos visuais e gastronômicos e conversávamos de quase tudo...
Pensei que talvez eu não consiga ser a alegre saltitante e sarcástica piadeira durante minha estada com você... e, então, convidei o Chico prá ir. Ele, quando encontrar você, vai provocar celos em mim... vão ser tão amigos que vou ter que me conformar em ser mais uma na vida de vocês... Acho que essa é outra função da amizade... apresentar um amigo para outro amigo e, olhando contra a luz, ver que sua teia aumenta em gramatura de fios... Já achei mais uma função da amizade.
Ah, também convidei a Cida para ir conosco até Andradina e, na volta a pegamos. Ela é da região do Brasil caipira que tanto gosto. Lá tem o homi que inspirou o rei do gado... imagina que o cara, dono de milhares de vacas foi discriminado porque não era da elite do café... é cada coisa nesse Brasilllllll. A forma de vencer a discriminação é que era rico e podia comprar muita coisa, inclusive o café dos outros... e, virou estátua como símbolo da cidade. É cada jeito que rico tem de enfrentar a discriminação.... kkkk nóis é que sifu, mermão!
Estou preparando as músicas para ouvir... ainda lembro das fitas cassete do caminhão do papai... um mercedes benz 1313 com toca-fitas. Ele sempre tinha uma caixa delas. Pensando bem, acho que isso era quando eu era maior, pq quando eu era pequena, o que eu tinha mesmo era meu pai cantando Milionário e Zé Rio, Lio e Léo... não lembro direito, mas tinha também a Inezita, Cascatinha e Inhana, Luiz Gonzaga...ainda sei as letras de várias músicas... e viajar é sempre lembrar da boleia do caminhão. Mamãe e eu íamos juntas com o papai levar madeira de Itaporã para São Paulo.
Sabe o que tenho pensado aqui? Se o papai canta “Índia” será que ele previa que ia ter uma filha guarani?... lembro que ficava vermelho de tanto cantar alto junto conosco... a poesia ainda me põe a pensa sobre o cheiro da flor. Às vezes, quando converso com a Geise a música toca na minha cabeça e fico a ronronar... Ah, você lembra da conversa da dupla ser negra ou indígena ou misturada? Eita que a gente tem papo prá sempre em nossas vidas.
O Brasil caipira vive em mim...talvez seja por isso que me irrita tanto o tal do sertanejo universitário que nem sabe os significados de luar do sertão... e fica cantando por aí prá vender lives... oh capitalismo bosta que toma conta até os nosso sentimentos e da nossa história... sabem lá o que era nós três cantarmos “a moda da pinga” encenando enquanto passávamos perto de São Roque prá comprar vinho de garrafão?
Mas afinal, amigo, como é que vou chegar até você? Ainda ontem, procurando na internet a estrada que vamos seguir, fiquei surpreendida... ou se vai à cidade dos rodeios riquíssimos ou se vai à cidade que está incrustada sob o signo de câncer... nosso signo...
Que porra é essa que a pessoa que sabe do rodeio só fala do câncer com os artistas que fazem show e dão dinheiro para o hospital e, quem sabe do hospital do câncer (ainda estou pensando sobre essa história de hospital do amor) pensa no rodeio como algo distante de si? Conversei com motoristas do SUS, de municípios pequenos daqui de Mato Grosso do Sul que levam os doentes de câncer, a maioria nunca foi no parque do Rodeio...
Oh trabalho ardido esse de motorista do SUS... bem diferente do meu pai que levava madeira e pensava que estava “desenvolvendo” São Paulo... e, nem sabia que estava participando mesmo era dos desastres ambientais do Brasil... imagino uma conversa do Mário Mantovani com o meu pai... como seria? Sim, papai foi um homem do seu tempo... a natureza como infinita, São Paulo como centro do mundo... Você acha que ia ser de acolhida ou tolerância esse papo?
Amigo, uma coisa que ainda falta... qual é a entrada de Barretos que vou ao seu encontro? Vai que vou prá cidade do rodeio e encontro um heterossexual, limpinho, bem humorado, que não bata em mulher e não tenha votado no enfaixado de presidente e fique por lá... melhor me falar certo... senão posso ser abduzida para um mundo e me alienar do outro! Kkkkkkkkkkk em todos os sentidos da alienação!
A gente vai tomar vinho, cerveja ou água? Ou os três? Vamos fazer lista de assunto... já vi que dois dias serão nadica de nada... mas temos uma vida inteira ainda... kkkkk não sei o que isso significa mas é bonito de falar!
Saio amanhã cedo, mas já estou aí há mais de um mês... desde que me decidi ir alimentar-me de você!
Manda a praca da estrada, criatura! Kkkkkkkkkkkk que aqui já tô cantando


Estela Márcia Rondina Scandola, 57 na inteireza de mulherices, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.

25 dezembro 2015

MAIS UMA DO ROQUE

Roque desceu para o pátio da companhia antes de todos os outros soldados. Ainda viu os “condenados” da guarda daquele dia, disputando local e horário, mas não prestou muita atenção, precisava encontrar o capitão antes que todos os pelotões começassem a se formar.
Felizmente, na sala ao lado do escritório do sargentiante, onde os oficiais costumavam se reunir antes da formatura da companhia, viu o capitão Ricardo, Ricardão, para os soldados.
Sujeito curioso, alto, corpulento, com uma voz muito grave que se podia ouvir de longe, inspirava muita confiança. Era bastante orgulhoso de sua companhia, não costumava maltratar os soldados. Quando chamava um soldado pelo seu nome no diminutivo, era sinal de ele estava encrencado. Era capaz de falar sobre como reprimir grevistas e comunista, acertar um tiro no inimigo há dois mil metros, como extrair informações do interrogado, durante o dia e, à noite fazer cultos evangélicos na cantina, onde pregava o amor ao próximo. Por falar nisso, havia um culto agendado para próxima semana, toda primeira companhia estava convidada, seria no refeitório. 
Roque aproximou-se do capitão, em pé na porta da sala. Ele viu Roque, e posicionou-se para ouvir. Todo soldado sabe reconhecer essa disposição corporal. Roque não era diferente. Ficou ereto o mais que pode na frente do capital, bateu continência, com os dedos tão esticados que quase sentiu câimbras.
- Capitão, permissão para falar?
Ricardão não respondeu, apenas fez aquela expressão entediada de que o soldado poderia continuar falando.
- Não estou me sentido bem, permissão para ir à FS[1].
Roque não dormira bem, sentia-se com o estômago embrulhado, dor de cabeça, coceiras e tinha o corpo todo inchado.
Os primeiros soldados começavam a descer a rampa do alojamento, sargentos e oficiais começavam a chegar para formatura da companhia, hora e lugar onde o capitão se preparava para formatura do batalhão, quando desfilavam em frente ao coronel.
O capitão, sem rodeio disse:
- Você vai morrer se for à formatura?
E antes que Roque pudesse responder, encerrou o assunto:
- Vá depois.
A formatura é uma espécie de demonstração, para os oficiais do estado maior do batalhão, que a tropa está bem disposta, alinhada e com a moral elevada. Cada pelotão, cada companhia quer marchar mais alinhada, gritar mais alto na frente o coronel. Cada soldado quer apresentar-se com sua melhor farda, limpa, passada, engomada. Enfim, um desfile de moda fútil e inútil para ocupar o tempo dos soldados, como se na vida real nada tivesse que fazer.
Roque se aguentou durante a formatura, embora, em sua imaginação, ficasse pensando na eventualidade do coronel parar em sua frente, como fazia aleatoriamente na formatura, e, justo nesta hora, ele vomitasse no coturno brilhante do coronal, que algum lacaio deveria ter engraxado. Também imaginou que poderia ser flagrado se coçando durante a posição de sentido ou desmaiar durante a apresentação de armas, como vira acontecer certa vez com um antigão[2]. Mas nada disso aconteceu. A formatura terminou, a primeira companhia voltou para seu pátio, posicionando-se na lateral esquerda, em baixo das árvores. Como sempre acontecia, o capitão passou o comando da companhia ao oficial mais graduado, depois dele mesmo. Estavam em formação mais ou menos 110 soltados perfilados um ao lado do outro em posição de descansar, pernas ligeiramente separadas e os braços atrás das costas, entre eles Roque, sentindo-se cada vez mais enjoado, rezando para aquela cerimônia acabar logo e poder procurar ajuda.
- Primeira companhia ao meu comando – disse o tenente, olhando para o capitão.
Os dois trocaram continências e o tenente, dando meia volta ficou de frente para tropa e falou o mais alto que pode, talvez tentando impressionar o capitão, que parecia especialmente indiferente aquela manhã:
- Vanguardeira, sentido!
Roque?
Bem, ele se aguentava...
Quando o tenente passou o comando do pelotão para o sargento, este o tirou de forma, Roque correu para FS. Nem viu o sargento do PELOPES comandar fora de forma para os soldados, mas deixar Pradinho, sozinho, na posição de sentido.  
Na FS, haviam alguns soldados de outras companhias aguardando atendimento, mas Roque, por sua aparência sofrível, foi atendido primeiro. O tenente médico, após um rápido exame com os olhos, disse que era uma alergia, provavelmente causada por alguma coisa que o soldado comeu.
- Vamos fazer uma injeção – disse o tenente, com um ar zombeteiro[3] no canto da boca. - Tire a gandola.
O médico, para espanto de Roque, segurou seu braço e, com uma caneta desenho um alvo no local onde deveria aplicar a injeção.
Roque estranhou aquele procedimento, mas há muito tempo havia deixado de prestar atenção nas coisas absurdas que percebia nos oficiais. Nenhum parecia muito certo do juízo. Ele preparou a medicação, segurou a seringa como se fosse um dardo, girou no ar por três vezes, como se fosse um aviãozinho em rota de colisão, deu um grito alucinado e acertou o alvo desenhado no braço de Roque, que perplexo, ficou sem fala, sem saber o que fazer: correr, esperar ou agredir o sujeito, que deveria estava doidão. 
O tenente deixo a seringa pendurada no Braço de Roque, girou sobre o próprio corpo, como se executasse um passo de dança, cantarolou:
- I can't get no satisfaction – e começou a lavar as mãos.
Neste momento entrou outro oficial no consultório, talvez atraído pelo grito alucinado do médico. Quando a porta se abriu, Roque, ainda desconcertado, imaginando que talvez tudo aquilo fosse uma alucinação induzida pelo seu estado, viu os rostos assustados dos outros soldados que aguardavam atendimento.
- Coitado do soldado, tenente. O braço dele está sangrando - disse subserviente, mas preocupado, o oficial. Era evidente que era menos antigo que o médico.
- satisfaction... - repetiu o médico com a farda branca, mas ainda do exército. E perguntou, com ar muito natural, mas olhos vidrados:
- Quer que injete o líquido aos poucos ou de uma vez só, mocorongo?
Roque, começou a perceber, neste momento, que tudo aquilo não era uma alucinação, que, por mais absurdo que pudesse ser, estava acontecendo mesmo. Nada conseguiu responder, nem foi preciso.
O tenente alucinado, doidão, olhou para o outro oficial, apertou a seringa de uma vez e disse, abrindo a porta:
- Tá terminado, só liberar.
Roque saiu sem entender o que tinha acontecido, sem acreditar naquilo. No corredor pediu para um soldado ver se realmente tinha um alvo desenhado em seu braço.
Preciso dormir, pensou Roque, sentindo as pernas bambas, as vistas escurecerem-se e muita dor no braço. O tenente, de dentro do consultório, gritou:
- O próximo mocorongo.
Os soldados, sentados um ao lado o outro, entreolharam-se, indecisos, como que dizendo com o olhar:
- Vai você.
Ninguém se mexeu, o médico fardado repetiu:
- próximo, acelerado...
Como ninguém entrou, ele saiu à porta do consultório e comandou:
- De pé um, dois, mocorongos.
Os soldados, como se curados de uma vez, levantaram-se assustado e tomaram posição de descansar.
- Sentido! – comandou o médico com farda branca, que lhe dava um ar mais ridículo do que aos demais fardados.
Ouviu-se o som das palmas batendo contra as coxas dos soltados, o que atraiu atenção de outros oficiais e sargentos do corpo de saúde do exército.
- Sua vez, soldado! – disse o tenente.
O soldado, apontado pelo tenente, indeciso, mas resoluto, apesar da voz gaguejante, disse:
- O soldado Roque não está conseguindo caminhar direito, Tenente, vou acompanha-lo até o alojamento, pode atender o Soldado Silva primeiro. – E saiu imediatamente, sem dar tempo do tenente vestido de branco, com estetoscópio pendura no pescoço, dar outro comando.
Por sua vez, o soldado Silva e, ao mesmo tempo o Marco, Marcão para os mais íntimos, bateram continência com as cabeças erguidas, evitando olhar direito para o rosto do tenente, e disseram, também sem dar tempo de resposta:
- Vamos ajudar a carregar o Soldado Roque até a primeira companhia.
No alojamento, Roque passou o dia e toda a noite em repouso, teve intensa sudorese, alucinações. Antes do dia amanhecer e começar o novo expediente, foi acordado por um sargento que o conduziu a FS novamente. Roque caminhou confuso, sem saber se tudo que se lembrava era real ou alucinações.
Ao entrar no consultório, acompanhado do sargento, suas dúvidas foram dissipadas. O tenente de branco, com cara de doidão sádico, esfregou uma mão na outra e disse:
- Você de novo!?
Mas, desta vez, atendeu Roque corretamente, o que o deixou em dúvida novamente – tudo que se lembrava, do primeiro atendimento, foi real ou alucinação?


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]




[1] Fundação de saúde, no linguajar milico.
[2] Antigão era como chamavam os soldados que voluntariamente haviam engajado no exército para continuar servindo após primeiro ano obrigatório.
[3] Essa palavra, pouco usual hoje em dia, está escrita aqui, por dar a dimensão exata da situação, mas principalmente pela influência da leitura de Guerra e Paz, de Liev Toltói, que um dos autores estava lendo no momento em que escreveu essa história. 

13 junho 2014

O ROQUE E EU

Faz alguns dias que o Roque me disse que tem diabetes. O médico da empresa lhe passou uma medicação de mais de 100 reais. Absurdo, eu disse. Dê ai seu endereço completo que vou lhe conseguir uma consulta em uma Unidade de saúde de Curitiba.
Primeiro Roque disse que não queria incomodar, que isso daria trabalho. Mas insisti, disse que falaria com um amigo que ajeitaria as coisas. Aí ele disse:
- Eu odeio médico. Respondi que meu amigo é enfermeiro.
- Eu odeio Enfermeiro também, disse Roque.
Fiquei preocupado, mas a vida é assim mesmo. O Roque vai sobreviver.
Mas quem é o Roque?
Bem, o pai dele é o Diabo, disse Raul, sendo assim eu morava ao lado do diabo quando era adolescente. A porta da cozinha de minha casa dava para porta da sala do Roque, em um conjunto habitacional em Pirapó, distrito de Apucarana, no norte do Paraná. Temos a mesma idade e servimos no mesmo quartel - Trigésimo Batalhão de Infantaria Motorizada (30° BIM). Mesma companhia: 1ª companhia – vanguardeira. Ele no terceiro pelotão e eu no Pelotão de operações especiais (PELOPES) - onde ninguém queria estar: lembram-se do treinamento mostrado no filme Tropa de elite?
O treinamento do PELOPES era bem parecido. Foi, talvez, o pior ano de minha vida. No final, próximo da gente finalmente deixar o exercito, fui preso por zombar do coronel ou de um sargento (não lembro mais). Era fim de ano, festas natalinas e, nessa época, alguém sempre faltava à guarda no final de semana. Tanto no Exército quanto na Enfermagem, se alguém falta, outro tem que substituir. A guarda não para. Um soldado teria que perder o domingo (ou o natal) e desta vez quem se deu mal foi o Roque.
Quando fiquei sabendo quem teria que dobrar a guarda, avisei:
- Fale para o Borba (Sargento) que eu fico no seu lugar (não era nada de mais, eu já estava preso mesmo, teria que passar o domingo na cela). Roque falou! Mas Borba contra argumentou:
- O Prado? Ele não foi voluntário nem para servir. Imagina se vai ser voluntário para dobrar a guarda!
De fato. Não fui voluntário. Sempre odiei a ideia até de usar farda. Fiz tudo que podia para escapar, mas não deu. Muitos garotos, como eu, vão forçados para o quartel, porém, uma vez não podendo sair, são forçados a declararem-se voluntários, sob pena de aumentar o sofrimento. Naquele ano, 1988, apenas dois soldados não se declararam voluntários até o fim do ano. Eu e outro louco que nunca cheguei saber quem era. O Batalhão era enorme, mas diziam que era um cara da Companhia de Comandos e Serviços (CCS) e que vivia preso, que até já tinha batido em um sargento, mas acho que era tudo lenda. Mas a coisa era tão sinistra que volta e meia, até o último dia de quartel, soldados, cabos, sargentos, tenentes e capitães continuavam me questionando sobre eu ser voluntário. E eu neguei até o fim:
– Estou aqui obrigado. Mas fui voluntário para dobrar a guarda, mas isso porque era o Roque quem seria condenado.
O Roque odeia Enfermeiros, mas eu continuo amando o Roque.

 [Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

23 novembro 2013

A colcha de retalhos


    Chega um momento da faculdade que você percebe quase todos ao seu redor infelizes, tristes com o curso, com o ser médico, abatidos porque estão internados, porque são pacientes. Gira um certo descontentamento por todos os motivos desde a dor até a carga horária. A felicidade é estar no lugar certo e poder ser sem fazer o tempo inteiro. E foi nessa felicidade original que cada um constrói para si que decidi fazer da medicina meu autoconhecimento, não que eu consiga fazer isso o tempo inteiro, mas é a minha tentativa.

    Caso contrário a vida é muito curta para ser pequena. Sempre vai faltar alguma coisa, o que importa é saber se isso, mesmo depois de suprir essa falta, irá me fazer plena ou deixar-me mais vazia. Eu preciso transbordar. Hoje, a Liga de Educação em Saúde estava lá junto com a comunidade para o anúncio da implementação da Estratégia de Saúde da Família na Comunidade da Barra.

    Estava um dia de sol, mas de vento gelado, como são a maioria dos dias da Barra. Chegamos (eu e a Clarissa) cedo e encontramos o enfermeiro Beto e sua esposa Rosane no CTG – Xirú da comunidade. Apesar de dias de cansaço e de certo desanimo, porque somos todos humanos, sempre tem aquela força e energia para encontrar pessoas especiais que tem um sentido muito mais profundo do que apenas ter, mas de fazer diferente. Sair do mundo de concreto e diretrizes médicas é revigorante. Já chegamos e começamos a organizar o espaço, varrer todo o salão central, carregar os bancos, organizar o local para a recepção da Secretaria de Saúde e dos representantes da Estratégia de Saúde da Família.
Foto: Clarissa Côrrea
     Sabe, mesmo que a ciência queira subdividir as patologias, sistematizar o corpo humano, o ser humano não nasceu com manual de instruções. A comunidade não tem manual de instruções e é esse eterno desvendar é que faz o tempo valer a pena. A parte mais marcante da reunião foi certamente a Suzi (líder dos Grupos de Artesã da Barra) perguntando e cobrando sobre a Construção do Conselho Local de Saúde e saber que essa movimentação que começamos com conversas sobre o Sistema Único de Saúde e a tentativa de construção do Conselho Local de Saúde influenciaram na decisão da implementação da Estratégia de Saúde da Família na Barra.
Foto: Clarissa Côrrea
     Essa vontade de ser mais de cada um é o que faz não sentir medo de ser feliz, de poder estar completo junto com os outros, de compreender que mesmo completamente diferentes e originais, somos muito iguais, independente de formação, faculdade, graduação, MBA, mestrado, doutorado, alfabetização. Não é essa educação de níveis que nos faz saber mais ou menos, é perceber as nossa pluralidade humana. No final da reunião me perguntaram (o pessoal da prefeitura) se eu morava na comunidade, eu disse que não, mas é absolutamente incrível perceber que eu faço parte dela, mesmo morando a 20km de distância. Afinal, todos fazemos, mas nem sempre nos damos conta.
    Fazemos parte da mesma linha que costuram os pedaços de nós em uma colcha infinita de retalhos. E devemos parar de deixar a felicidade para a próxima parada, vou ser feliz depois que o ano letivo terminar, depois que eu me formar, depois que eu comprar um carro, depois que eu tiver dinheiro, depois que meus filhos crescerem, depois que eu me aposentar. Deixamos a vida para a próxima estação, enquanto ela se desdobra, como se desdobram as ondas da lagoa na Barra, como se enrola a linha que a artesã costura para formar nossa colcha de retalhos. A felicidade está na Barra, na medicina e por onde os meus pés me levarem, sem paradas ou estações. 

Reunião para conversar sobre a tireoide depois da reunião com a secretaria, nós segurando as colchas de retalho que servirão para a capa do Livro de vivências da Liga de Educação em Saúde.
Voam abraços,

Mayara Floss

07 junho 2013

Aos amigos do meu coração





Maria Amélia Medeiros Mano


Aos amigos do meu coração.


Lendo o Pequeno Dicionário de Palavras Jogadas ao Vento da Adriana Falcão, vem a frasezinha bem humilde para pensar neste dia que pode ser amanhã ou depois:

BONDADE - aquilo que sai do coração quando a torneira está aberta...
Aos que têm o coração sempre gastador de boas águas:

Cuidados em regar esperanças, em preservar a coragem, em acolher as incertezas, em emprestar sorrisos.

Que sejam águas de matar sede, regar e cuidar do outro como alguém que nos importa.

Águas de limpar pensamentos e ser, sempre, de verdade, para os que olhamos nos olhos...

Bom dia do amigo adiantado!

Mas em tempo, porque deve haver sempre tempo de abrir a tal torneira do coração e ser "mais melhor de bom".

Porque de mãos dadas pela rua, pela vida, aguamos o melhor de nós, dentro e fora do coração orvalhado.

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog