Ernande Valentin do Prado
Em
05 de novembro de 2015, quando ocorreu o rompimento da barragem de rejeitos de
minério de ferro, eu estava em Mariana, no Brasil. Você era, nesta época, um
dos maiores acionistas individuais da Mineradora Samarco, fundada por seu pai
em 1975 e incorporada a Vale do Rio Doce e a Australiana BHP. Entre 2010 e 2014
o lucro de sua empresa foi de 13,3 bilhões, o que lhe proporcionava uma vida de
luxo e ostentação que humilhava a existência de pessoas como eu, meus
familiares e amigos. Nossas vidas, para você e sua gente, não significava nada
além de um incomodo ou benefício, dependendo do momento. Mas, de fato, não
precisa de todos nós, apenas alguns bastavam.
Desta
vez não morri de exaustão, morri antes de chegar a ser um trabalhador
explorado. Não fui esmagado, esfaqueado, assassinado e amarrado no fundo de um
rio, nem devorado por animais selvagens, mas nem por foi uma morte natural.
Foi, como sempre, outra vítima de sua ganância cega, cruel, devastadora e
indiferente. Morri aos poucos, durante 10 anos, desajustado, traumatizado, sem
poder ouvir barulho de trovão sem ter uma crise nervosa, sem pai, sem mãe, só
com um tio, tão desesperado quanto eu. A vida que deveria ter foi soterrada por
40 bilhões de litros de lama tóxica que escorreram sobre o vale do córrego
Santarém, no caminho de minha casa, de minha vida, encobrindo as possibilidades
que nunca conheci.
Eu,
meu pai e minha mãe, morávamos no povoado de Bento Rodrigues, um lugarejo
localizado abaixo da Barragem de fundão. Toda vila tinha pouco mais de 500
pessoas, todos trabalhadores explorados pela ganancia do ferro, uma vida de
escravos do luxo alheio. Mas só hoje vejo isso, naquele tempo não tinha noção
de nada, era apenas uma criança de seis anos, preocupada em brincar com os
amigos da rua, cuidar de meu cachorro, pescar e nadar no córrego que passava
nos fundos de casa.
Você
disse, na imprensa, com olhos vermelho, que avisou os moradores por telefone,
mas na rua de minha casa raramente tinha sinal de telefone. As sirenes de
emergência não tocaram, ninguém veio avisar. Quando ouvimos o estrondo da
tsanme de barro rompendo tudo que havia pela frente, já era tarde pra correr.
Meu pai conseguiu tirar-me do fundo do quintal, onde brincava com meu cachorro,
mas foi arrastando pela lama enquanto eu corria com meu tio.
Passei
três semanas em um abrigo público, vivendo de doações de estranhos. Distraia-me
com brinquedos doados, com a agitação de centenas de pessoas amontadas no mesmo
lugar. No começo tudo era divertido, novo, fiz novos amigos, ganhei roupas
novas, tomava agua mineral, tinha atenção. Mas aos poucos fui percebendo que
minha mãe não voltava, que meu pai estava demorando demais a retornar, que meu
irmão deveria estar com eles, mas que também não voltaria. Meu tio era o rosto
mais conhecido, mas nem parecia mais ele. No seu rosto via o mesmo medo que via
quando me olhada no espelho.
Um
dia apareceram umas mulheres da mineradora, falaram com o tio, trouxeram roupas
escuras. Fui vestido com uma camisa preta, calça e sapatos e levado para o
enterro, coisa que nunca tinha visto antes. Disseram que meu pai, minha mãe e
meu irmão nunca mais voltariam, que tinham ido morar no céu.
Depois
nos mudamos para uma casa alugada pela sua empresa. Disseram que cuidariam da
gente. Duas moças loiras, bem jovens e engraçadas conversaram comigo, fizeram
um monte de perguntas sobre como eu me sentia, sobre o que pensava de meus pais
estarem no céu, o que gostava de comer, se gostava da escola, de meu tio, de
ver tv.
Não
era só de meus pais que sentia falta. Queria ir pra casa, dormir em meu quarto,
conversar com meu cachorro, subir nas arvores da rua, caminhar de tênis pela
rua poeirenta até a escola. Onde estavam meus amigos, a tia da escola, a moça
que servia merenda gostosa?
Vi
na tv a casa coberta de barro até o telhado. Não tinha mais as ruas aonde
andava, não tinha mais arvores, nem rio, nem escola, nem o campinho de terra
aonde os moleques mais velhos não me deixava jogar futebol. Não tinha para onde
voltar. Isso deu uma tristeza tão grande quanto a morte de pai, de mãe. Olhei o
rosto de meu tio, mordendo sem vontade um pão com mortadela e descobri de onde
vinha tanta tristeza, tanta falta de esperança de que ainda tinha uma vida pra
gente.
Perdi
a fome, sentei ao lado de meu tio, de frente para tv que mostrava as imagens da
represa se rompendo e arrasando tudo em sua frente, mais uma vez, e outra e
outra e outra vez. Um espetáculo de horror. Segurei a mão dele, sem falar nada.
Não precisava.
Foi
aí que lhe vi de terno e gravata, consternado, dizendo que faria tudo que fosse
possível para devolver a dignidade para as pessoas que perderam suas casas,
suas vidas.
Primeiro
acreditei, afinal, como alguém poderia mentir numa situação dessas?
Mas
o tempo foi passando, as coisas não acontecendo.
Arrumaram
uma escola pra eu ir, trouxeram cadernos, lápis de cor novos, mochila. Mas na
escola não conseguia me concentrar no que a professora falava, sentia sono o
tempo todo, mas em casa não conseguia dormir e quando dormia acordava assustado
imaginando que a lama estava, de novo, invadindo meu quarto, entrando pelo meu
nariz, minha boca e me sufocando. As tarefas que a professora dava não
conseguia terminar. No meio da aula, sem motivo, sentia vontade chorar. As
outras crianças riam, tiravam sarro. As vezes não conseguia reagir, achava-me
incapaz, um coitado, outras vezes reagia: uma vez bati em um colega mais novo
até tirar sangue. A professora, no começo tinha paciência, depois foi perdendo,
colocou-me no castigo, ameaçou suspensão. Depois fui trocado de sala. Depois de
novo e de novo. No fim do ano, deste e de outros, fui aprovado, mas sem
conseguir aprender o que tentavam me ensinar.
-
Coitadinho, diziam as professoras, não consegue aprender.
Até
que um dia desistiram: aluno especial, disseram.
Da
sala dos especiais fui internado pela primeira vez:
Agressividade
excessiva, disse a diretora pro médico.
-
O que você pensa de sua vida, perguntou o médico?
-
Penso em morrer e encontrar minha família no céu, respondi.
Passei
três meses internado, tomava vários comprimidos por dia e não tinha forças pra
nada. O corpo doía. A primeira vez que acordei de verdade, joguei-me do
terceiro andar, quebrei os dois braços, e a bacia. Na cama, sem me mexer, sem
poder ir ao banheiro, passava quase todo dia sujo, cheirando mal. Babava e
balbuciava coisas que ninguém entendia nem queria ouvir.
Em
pouco tempo abriu uma ferida nas costas, que aumentou, infeccionou, cheirava
cada dia pior. A enfermeira dizia:
-
Tem que fazer mudança de decúbito.
Aí
me viram para um lado e deixavam o dia todo. Abriu outra ferida na coxa
esquerda e aumentou, depois na coxa direita e passei a ficar de bruços, babando
no chão.
-
Meu tio, único parente que ainda estava vivo, veio me ver uma vez. A
enfermeira, novinha, com uma cara de tristeza pior do que a minha e de meu tio,
disse:
-
Se não tirar ele desse hospital, vai morrer. Suspirou fundo e acrescentou: é só
uma criança, não é justo.
Meu
tio pareceu não entender. Passou a visita toda sentado em frente à tv. Tentou
acender um cigarro, disseram que era proibido, mas que poderia fumar lá fora.
Ele foi e a gente nunca mais se viu.
Não
é justo, a vida não é justa com a maioria de nós. Mas você, sua gente, vivem em
outro mundo, justificam seus luxos como um direito de nascença, igualzinho em
qualquer tempo, em qualquer monarquia.
Morri
sozinho, de madrugada, na ala infantil do hospital psiquiátrico. A enfermeira
só descobriu meu corpo, morto, no dia seguinte. Vi quando rolou uma lágrima
pela sua face rosada e lembrei-me que essa não foi a primeira vez que me matou.
A nossa história era muito longa.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]