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10 março 2017

HISTÓRIAS ACONTECIDAS NO ONIBUS: O DIREITO AO LUCRO E OS MATADOUROS

Imagens capturadas na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Essa aconteceu na linha circular 1500, em João Pessoa. Ela liga tantos lugares da cidade que nem sei por onde começar, então vou ignorar. Peguei na Ruy Carneiro em direção a Universidade Federal da Paraíba.
Estava chovendo e tive dificuldade em chegar até o fundo, com minha mochila cheia de livros. Nas duas últimas cadeiras do lado esquerdo, duas mulheres com camiseta de uma escola técnica conversavam animadamente sobre seus cursos. Falavam dos professores, do custo mensal, das taxas extras para isso e aquilo e aquilo outro, etc. Comentavam das disciplinas, dos professores. Lá pelas tantas uma disse:
- Tem 110 alunos na sala.
A outra respondeu.
- Vixi Maria, como consegue estudar numa sala assim?
- E não é, mulher?
- E como o professor aguenta?
- Nem sei.
- Deveriam dividir a turma.
- Tem gente demais procurando o curso, acho que por que é barato. Mas não precisa dividir a turma, têm muitas despesas, podiam aumentar o tamanho da sala.
Como pode?
110 estudantes na sala e a estudante acha que o necessário é aumentar o tamanho da sala, talvez até para poder aumentar o número de vagas no curso.
A necessidade de lucro, esse mesmo que torna os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, a ponto de 8 famílias no mundo ter a mesma soma de recursos que 50% da humanidade, é coisa tão sagrada no Brasil e no mundo que nem precisa quem lucra defender. O próprio explorado e gerador de lucro defende o direito do outro ter lucro. Cada vez mais verdade o que Marx disse: as ideias dominantes na sociedade são as ideias das classes dominantes. O trabalhador miserável, o desempregado miserável, o remediado miserável, a classe média miserável, afogada no desejo desenfreado de consumir, defende o direito ao lucro que ela não vai ter, mas sonha ser possível um dia ter.
O lucro, na visão desta estudante, parece ser mais importante do que receber um ensino de qualidade. Será que ela percebe o absurdo do que falou e nós percebemos o absurdo em que vivemos? 
Quando uma pessoa aceita numa boa que tenha 110 estudantes em uma mesma sala de aula, está ao mesmo tempo aceitando que não precisa ter um bom ensino, que basta receber o diploma?
Uma escola que coloca numa mesma sala 110 estudantes está assumindo que não tem interesse no ensino, que ele é apenas uma desculpa para fazer dinheiro?
O professor que aceita dar aula uma condição tão absurda, por necessidade, algum dia conseguira deixar de fingir que ensina?
Lembrei, ouvindo essa menina, outro caso. Li dia deste que houve uma reunião interprofissional na Bahia/Sergipe, para protestar contra o ensino a distância (EaD). Fiquei me perguntando: as pessoas que organizaram e participaram de tal reunião estão vivendo no século 21 ou ainda no século 19?
Protestar contra EaD, como se esse fosse o problema é no mínimo um contrassenso histórico. O EaD pode ser tão bom ou tão ruim quanto o ensino presencial e frequentemente, com exceções, é tão ruim quanto o presencial.
A manifestação destes profissionais me pareceu tão ridícula e vazia quanto as manifestações dos panelas-cheias que se beneficiam da corrupção, mas não toleram outros corruptos. Esses professores e seus conselhos de classe querem jogar areia em nossos olhos ou são tão ingênuos quanto a menina do ônibus que acha que aumentando o tamanho da sala de aula o problema estará resolvido?
De qualquer forma vale o que disse Renato Russo: “a ignorância é vizinha da maldade” e diria que uma empresta uma xícara de açúcar para outra, sempre que necessário.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

03 fevereiro 2017

SOBRE PATRÕES, MAIS VALIA E UMA CONVERSA NO FACEBOOK

Imagem captada via Google.
Ernande Valentin do Prado

“Eu despedi o meu patrão
Desde o meu primeiro emprego
...
Ele roubava o que eu mais valia
e eu não gosto de ladrão”.
Zeca Baleiro

Verdade, meu amigo, existem patrões (que parecem) bons, como você diz. Dignos, que pensam fazer tudo que podem para ajudar o seu empregado. No entanto a função “patrão” não é digna. É uma falácia dizer que o empregado precisa do patrão mais do que este do empregado, como os empresários gostam de encher a boca.
Imagina, por mais absurdo e irreal que lhe pareça: se hoje todos os trabalhadores do mundo, com ou sem carteira de trabalho, com remuneração que dá para sobreviver ou não, resolvessem cruzar os braços (inclusive as forças militares que poderiam acorrentar e obrigar os empregados a continuar produzindo para os proprietários dos meios de produção), o que aconteceria?
Uma greve impensável, com adesão de todos e todas que não são proprietários dos meios, nem das terras produtivas, causaria o que na economia mundial?
 Uma greve, não por um dia, não por uma semana, não por um mês, não por um ano mas por toda vida. O que os patrões poderiam fazer? Como iriam se alimentar? Como iriam por seus filhos em escolas caras, sem ter as professoras mal remuneradas para lhes ensinar? Como iriam cozinhar, lavar ou abastecer seus carros, defender seus patrimônios contra os que nada têm? Sem ninguém para fabricar, abastecer, trocar os pneus furados de seus carrões, como iriam se deslocar de um canto para o outro?  Como iriam comer sem ninguém para cozinhar, para lhe mostrar onde fica a cozinha, como ligar o gás? Quem iria limpar a bunda de seus filhos, quem iria passear com seus cachorros?
Se acontecesse essa greve e o dinheiro sujo do patrão perdesse o valor, quem iria definhar até morrer de fome e quem sobreviveria, mesmo que fosse comendo o que planta?
A relação patrão/empregado, segundo Maturana não pode ser considerada uma relação social, assim como a relação entre militares. Reconhecer a existência de “bons patrões” seria mais ou menos como dizer que existe ladrão bom, traficante que é bom por distribuir parte do que ganha com a comunidade, que assassinos são bons por matar quem a gente não gosta. Um assassino que mate deputados, que mate corruptos, que mate estupradores e pedófilos continuaria sendo assassino, por mais que uns e outros ou até ampla parcela da sociedade o considere um benfeitor. Concorda?
O patrão precisa extrair a mais valia do empregado e faz isso com prazer sádico, de uma forma que hoje, oito pessoas no mundo têm o mesmo patrimônio que os outros 50% da humanidade, segundo a ONG britânica Oxfam. 99% dos seres que Deus colocou na terra vivem para sustentar os outros 1% com luxos que nem consigo imaginar. Esses números que anunciam o fim do mundo não são produzidos pela esquerda, são de instituições capitalistas, o que quer dizer que a situação pode ser ainda mais detestável.
O mundo caminha para o apocalipse zumbi (se é que já não começou). E quem dirige um carrinho modesto de R$ 110, 180 mil reais, destes que inundam as ruas de João Pessoa (as mesmas que estão ficando encharcadas de pedintes, enquanto os bem nascidos comemoram que já podem encontrar empregadas domésticas para dormir no trabalho por menos de salários mínimo) não se dão conta, não podem admitir que são escravos. A classe média, tão necessária para acumulação de capital nas mãos da alta burguesia, vive situação de subalternidade tanto quantos os que estão abaixo dela, embora com conforto material e espiritual muito superiores. Não podem admitir que são serviçais, tanto quanto qualquer um de nós. A classe média não pode reconhecer que faz o papel do pelego que amacia as costas do trabalhador para que o patrão possa descansar suas bundas brancas – e vamos ser sinceros, a bunda dos patrões são quase sempre bancas.
A diferença substancial entre um trabalhador que ganha 500 reais mensais e um que ganha 15, 25 mil, por mais que determine vidas completamente diferentes, com possibilidades muito distintas, não é tão radicalmente distinta quando se pensa na vida que leva a alta burguesia. Se a classe média admitisse a própria servidão poderia haver suicídio em massa, o que é absurdo demais. Melhor viver na ilusão de que desfrutam da estima e dos privilégios dos que habitam o lugar onde querem e acreditam que vão chegar.  
Se ainda vivemos na época clássica da servidão no Brasil, a comparação seria mais ou menos assim, por mais imprecisa e ridícula que seja (e reconheço que é): o escravo que cortava cana vivia na senzala e o escravo que fazia trabalhos domésticos dormia no quartinho anexo da casa, para melhor servir os desejos do dono, na hora que esses desejassem. Comiam melhor, vestiam-se melhor, tinham um trabalho menos pesado, é verdade. Por outro lado tinha muito menos consciente de sua condição, menos coragem de se rebelar e fugir para os quilombos.  
O patrão, por mais humano que possa ser, extrai a mais valia do empregado. Essa é a principal função da “instituição patrão”. Enquanto pessoas, meu amigo, concordo contigo, o patrão pode ser bom (dentro do conceito de bom dos privilegiados). Penso a mesma coisa de militares, de deputados, de vereadores e até de ladrões e assassinos. Tem quem presta, tem os dignos, honestos (mesmo que não pareça, mesmo que não concorde com seus modos). O problema é que a instituição, a função social deles está errada, não deveria existir. A sociedade deveria se organizar de outra forma, não deveria existir deputados, vereadores, militares, assassinos, ladrões e não deveria existir patrão.  
Estou falando de ideias. Também não sei dizer como iriamos nos organizar sem essas instituições, o que sei é que existem formas mais justas de se viver neste mundo e é papel nosso descobri-las e, se for o caso, inventá-las. Enquanto não fazemos isso ao menos podemos nos indignar, já é algo mais do que a indiferença sádica e sínica em que vive a maioria.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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