Vegetação do Planeta Roxo, segundo Alice. Ernande, 2015. |
Ernande Valentin do Prado
Quando se fala em
humanização, ao menos uma parte dos profissionais, da gestão e dos usuários,
pensam que se está falando exclusivamente em oferecer melhores atendimentos nos
serviços, em tratar as pessoas com jeito, com educação. É evidente que humanizar
passa necessariamente por dar mais e melhores condições para que as pessoas se
sintam acolhidas, bem tratadas e consideradas nos serviços, mas não é só isso e
talvez nem principalmente. Pode-se ser barreira de acesso com muita educação,
como diz uma amiga querida, e sem ofender ninguém, mas um serviço com
barreiras, em que o sujeito não é acolhido, nunca será humanizado.
O tratamento educado,
com consideração é o efeito imediato de arranjos que os propicie, que veja no
outro a razão de ser dos serviços de saúde. Para conseguir isso é preciso
mudanças no modelo de atenção praticado ainda hoje. Por isso, neste texto vamos
discutir a humanização e a clínica ampliada nas práticas em saúde como uma
mudança de postura, de modo de pensar a gestão e o modelo de atenção no Sistema
Único de Saúde (SUS).
Falar em humanização
nos serviços é ao mesmo tempo falar em integralidade nos cuidados e na
assistência em saúde, que é um princípio do SUS, talvez o mais complexo, pois
sinaliza uma imagem do que se espera que o SUS venha a ser, como afirma Mattos (2004).
Um sistema de saúde que se guia pela integralidade é necessariamente
humanizado. Ao falar de integralidade está-se falando em acolher as pessoas em
sua inteireza, com as culturas, histórias, alegrias e tristezas, dores,
integrado em sua família, em sua rua e comunidade e sobretudo com capacidades
em se recuperar.
Talvez seja difícil
imaginar que estamos caminhando para um serviço com essas características, mas
a verdade é que, mesmo de forma lenta, o SUS avança na prestação de cuidados
cada vez mais complexos e integrais. Isso parece acontecer em pequenos projetos
periféricos, como fala Vasconcelos (2010), mas está acontecendo, basta observar
a evolução dos serviços oferecidos para comunidade. Há poucos mais de 30 anos o
serviço limitava-se a diagnóstico e tratamento de doenças biofisiológicas em
hospitais, de forma totalmente centralizada. Esses serviços ainda eram
oferecidos apenas para quem tinha carteira assinada, todos os demais tinham que
arcar pessoalmente com as despesas ou contar com a boa vontade e/ou a caridade
do estado e/ou das igrejas.
Apesar de insuficiente,
hoje temos equipes da Estratégia Saúde da Família em praticamente todas as
cidades do Brasil e saúde é vista como um direito de todos, não mais como
caridade. Ainda não é um serviço integral e totalmente humanizado, mas existem
milhares de pessoas, usuários e servidores, trabalhando diariamente para que um
dia venha a ser. Outro exemplo destes avanços são as políticas públicas. Além
da Própria PNH, que tem sua gênese nas discussões dos anos de 1990, é possível
citar as políticas de Práticas Integrativas e complementares, que visa oferecer
cuidados mais amplos, menos focados na doença; a de Promoção de Saúde, a de
Educação Permanente e a de Educação Popular em saúde, que entre outros
objetivos, tem a intencionalidade de promover a democratização dos serviços e
pensar as práticas dos serviços de forma dialogada.
No campo das políticas
públicas, humanização diz respeito à transformação dos modelos de atenção e de
gestão nos serviços, diz Pereira e Barros, em texto publicado no site da
Fiocruz. Ao mesmo tempo afirmam que transformar práticas de saúde exige
mudanças no processo de construção dos sujeitos dessas práticas. Parece
evidente que essa transformação passa necessariamente pelos trabalhadores da
saúde e pelos usuários dos serviços, sobretudo ao melhorar e/ou tornar possível
e efetivo processos de comunicação entre todas as partes envolvidas. Mas tem
que ser uma comunicação que prime pelo diálogo horizontal e transversal e não
como comunicado. A PNH afirma isso ao dizer que a humanização é um
processo que compreende e valoriza os diferentes sujeitos implicados no
processo de produção de saúde. É importante destacar que uma das preocupações
centrais da PNH é sua ênfase em transformar o modelo assistencial e incorporar,
entre outras práticas, a clínica ampliada. Para isso é preciso não apenas
investir na melhoria da estrutura e dos equipamentos, mas no potencial dos
profissionais. É através das pessoas que se pode mudar o modelo assistencial e
oferecer serviços realmente humanizados.
Essas mudanças passam
pela melhor formação dos trabalhadores, mas principalmente por uma mudança de
postura que leve em conta as condições de trabalho e vida dos envolvidos com o
SUS. Pessoas tratadas com humanidade tendem a ser mais humanas, ou, como diria
o poeta, Gentileza gera gentileza.
A própria existência da
clínica ampliada passa pelo reconhecimento das necessidades humanas de
trabalhadores e usuários dos serviços, e pela discussão aprofundada sobre o que
é ser um profissional de saúde e pertencer a uma corporação especifica, até para
que isso seja ressignificado. Essa discussão, embora conflituosa, é fundamental
e tem potencial para melhorar o serviço integralizado como um todo. A própria
PNH prevê que trabalhar em equipe é falar em conflito e que este não é
necessariamente ruim. Penso que para trabalhar na perspectiva da clínica
ampliada e da humanização, é preciso ir além de pensar como equipe, é preciso
pensar de forma interdisciplinar e transdisciplinar, vendo no seu colega não
alguém hierarquicamente superior ou inferior, com mais ou menos saber do que o
seu, mas um outro que sabe diferente e de forma complementar, que pode
contribuir com o cuidado.
A construção da visão
transdisciplinar é fundamental por diversos motivos, como por exemplo, para
melhorar o saber/fazer das profissões da saúde, que se desenvolveram de forma
fragmentada e, muitas vezes, sem condições de ver sujeitos em sua inteireza. Em
alguns casos, os profissionais nem conseguem ver o problema com um todo, mas
apenas partes deles. Neste sentido, pensar a equipe como um corpo e não como
corporação, ajuda muito, principalmente porque a clínica ampliada vai além da
tradicional. Exige que se pense o sujeito de forma biopsicossocial, tendo em
mente o conceito de saúde do SUS, os determinantes sociais do processo saúde/doença/cuidado.
A prática da clínica
ampliada parecer ser muito difícil e talvez seja, mas a dificuldade não diz
respeito só a equipamentos e custo financeiros, porém a questões relacionais.
Essa prática exige uma comunicação transversal, transdisciplinar e interinstitucional,
o que é bastante difícil, porém não é impossível caminhar para esse tipo de
prática. A PNH diz que, entre outras coisas, é preciso investir na criação de
instrumentos de suporte aos profissionais de saúde para que eles possam lidar
com as próprias dificuldades; também com a ideia de “neutralidade” e
“não-envolvimento” que muitas ainda alimentam no serviço.
Não estamos falando
daquela clínica limitada a queixa conduta centrada na doença, mas de uma visão
ampla, que tente ao máximo ver o sujeito em suas múltiplas dimensões, não se
limitando aos problemas, mas as potencialidades do sujeito. A PNH diz que a “a Clínica ampliada convida a
uma ampliação do objeto de trabalho para que pessoas se responsabilizem por
pessoas”. Utópico? Talvez, mas é a utopia uma imagem objetivo, assim como o
princípio da integralidade.
[Ernande Valentin do
Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Referências
MATTOS, R. A. D. A
integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cadernos de
Saúde Pública, v. 20, p. 1411-1416, 2004.
VASCONCELOS, E. M.
O significado da educação popular na realidade e na utopia da atenção primária
à saúde brasileira. In: MANO, M. A. M. e PRADO, E. V. D. (Ed.). Vivências de
educação popular na atenção primária à saúde: a realidade e a utopia. São
Carlos-SP: EdUFSCar, 2010. p.13-18.
PEREIRA, Eduardo
Henrique Passos; BARROS, Pereira Regina Duarte Benevides. Humanização.
Disponível em:
Acessado
em: 09 jan. 2016.
BRASIL. Ministério
da saúde. Secretaria de atenção à saúde. Política nacional de Humanização da
atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada / Ministério da
saúde, secretaria de atenção à saúde, Política nacional de Humanização da
atenção e Gestão do SUS. – Brasília: Ministério da saúde, 2009.