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04 agosto 2017

HUMANIZAÇÃO NOS SERVIÇOS DE SAÚDE

Imagem captada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado
Existe um movimento interessante, da parte de consumidores conscientes (e provavelmente refinados), que exigi carne em suas mesas, porém não aceitam a crueldade contra os animais. Segundo eles os animais devem ser abatidos com humanidade, com o respeito que a vida merece simplesmente por ser vida.
Para esses consumidores é importante saber que seu alimento não sofreu na hora do sacrifício, talvez com isso se sintam menos desconfortáveis diante do pecado da gula (não sei bem). Para atender essa gente sensível, exigente e merecedora de todas as considerações simplesmente por serem gente preocupada com o bem-estar animal, foram pensados e desenvolvidos uma série de procedimentos (políticas públicas) que garantem que os animais não sofrem na hora da morte. O que podem confirmar degustando uma carne em que não se percebe, no sabor e na suculência o estresse, o medo que, sem esses cuidados, ficariam impregnado nas entranhas da carne.
Para conseguir esses resultados os cuidados devem ser tomados não apenas na hora do abete. O transporte entre o criadouro e o frigorífico têm toda uma normatização que deve ser cumprida com rigor, o que os especialistas garantem dar resultados surpreendentes. Para garantir que os bois não fiquem nervosos, com medo e com estresse acima do tolerável, é importante um trabalho limpo, especializado, sem correria, sem gritos, sem violência.
Para atender o rigor das normas de humanização na criação e abate de animais, os currais estão se modernizando, passando por reformas e adaptações importantes. Os novos currais e locais de estada dos animais, antes do abate, seguem alguns princípios arquitetônicos: são ambientes sem pontas, nem quinas que possam ferir os bichos, preferencialmente circulares, parece que os bovinos ficam estressados em ambientes quadrados. Em alguns currais até equipamentos para música ambiente são instalados. Dizem que os bichos ficam mais calmos com música clássica, o rock pesado os deixam irritados.
Os boiadeiros não usam mais de violência ou de instrumentos corto-contusos para direcionar os bois para onde desejam que vá, mas panos, assim os conduzem em direção aos caminhões que os levam para o matadouro, sem pressa, sem correria. Para conseguir essas fineses dos peões, sempre tão grossos em outros tempos, foram investidos tempo e dinheiro em capacitações e treinamentos permanentes (educação permanente significativa).
Do curral das fazendas produtoras os bois são transportados com todos os cuidados em veículos espaçosos, evitando a superlotação, de modo que os animais não fiquem apertados, como ficam os seres humanos em transportes públicos, por exemplo. Deste modo evita-se estressar os bichinhos, ferir e magoa-los. Os caminhões são utilizados no máximo por cinco anos, manutenção sempre em dia: freios funcionando perfeitamente, tacógrafos que acompanham a velocidade máxima dos caminhões e registram se o motorista der freadas bruscas ou desnecessárias, em linha reta por exemplo, e se entra nas curvas em alta velocidade, o que provoca desconforto e coloca em risco de fraturas e ferimentos os bovinos. No ponto final da viagem, ou nos pontos intermediários, os bichos recebem água, banho e são descarregados com todo o cuidado, respeitando o tempo de cada um, sem grito, sem afobação, sem corre-corre. E mesmo assim respeitando o tempo estipulado para o trajeto.
Claro, para conseguir esse resultado, como no caso dos Piões da fazenda, muito se investiu em capacitações, em educação permanente, em monitorização, acompanhamentos constantes, melhoria de vencimentos e premiações. Os profissionais não passam mais do que sessenta dias sem uma atividade de sensibilização, para que continuem compreendendo a importância da humanização no manejo com os animais. Quem não demonstra perfil para a função é transferido de setor e até “descontinuados” do serviço.
As políticas públicas do setor afirmam que o manejo incorreto dos bovinos pode causar medo e sofrimento desnecessários, que são evidenciados com fuga excessiva, comportamento negativo, coices, golpes contra cercas e portas, ferimentos, tais como contusões, lacerações, chifres quebrados e fraturas de chifre e rabos, pernas, comportamento perturbado, entre outras. E é exatamente esse sofrimento que se pretende evitar com todas essas medidas de humanização do setor de carnes.
“Essas normas foram estabelecidas para garantir proteção para as diferentes espécies de animais de açougue, objetivando”, claro, como não poderia deixar de ser, “o bem-estar animal como seres vivos e consequentemente”, claro, como não poderia deixar de ser (porque ninguém é de ferro) “uma carne de melhor qualidade e vida útil[1]”.
Enquanto isso: a médica do Rio de Janeiro, funcionária de convênio de saúde, já com acusações de negligência e violência contra seres humanos no decorrer de suas funções, não prestou atendimento a menino de um ano, que provavelmente em decorrência disso morreu, disse em depoimento na delegacia:
- "Não estou arrependida porque não fiz nada de errado do ponto de vista do código de ética médico[2]”.

PS. Não é a ideia de profissionais de saúde cuidando de gente, pelo simples fato de ser gente, que parece estar fora de moda, mas a própria ideia de humanidade, de nação, que parece não se encaixar mais nestes tempos.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


[1] As informações sobre abete humanitário foram parcialmente obtidas vendo o vídeo disponível em: Acesso em 12 jun. 2017.
[2] Notícia veiculada no UOL. Disponível em: < Goo.gl/BFQicL> Acessado em: 12 jun. 2017.

08 julho 2016

HUMANIZAÇÃO E CLÍNICA AMPLIADA NAS PRÁTICAS EM SAÚDE

Vegetação do Planeta Roxo, segundo Alice. Ernande, 2015.
Ernande Valentin do Prado

Quando se fala em humanização, ao menos uma parte dos profissionais, da gestão e dos usuários, pensam que se está falando exclusivamente em oferecer melhores atendimentos nos serviços, em tratar as pessoas com jeito, com educação. É evidente que humanizar passa necessariamente por dar mais e melhores condições para que as pessoas se sintam acolhidas, bem tratadas e consideradas nos serviços, mas não é só isso e talvez nem principalmente. Pode-se ser barreira de acesso com muita educação, como diz uma amiga querida, e sem ofender ninguém, mas um serviço com barreiras, em que o sujeito não é acolhido, nunca será humanizado.
O tratamento educado, com consideração é o efeito imediato de arranjos que os propicie, que veja no outro a razão de ser dos serviços de saúde. Para conseguir isso é preciso mudanças no modelo de atenção praticado ainda hoje. Por isso, neste texto vamos discutir a humanização e a clínica ampliada nas práticas em saúde como uma mudança de postura, de modo de pensar a gestão e o modelo de atenção no Sistema Único de Saúde (SUS).
Falar em humanização nos serviços é ao mesmo tempo falar em integralidade nos cuidados e na assistência em saúde, que é um princípio do SUS, talvez o mais complexo, pois sinaliza uma imagem do que se espera que o SUS venha a ser, como afirma Mattos (2004). Um sistema de saúde que se guia pela integralidade é necessariamente humanizado. Ao falar de integralidade está-se falando em acolher as pessoas em sua inteireza, com as culturas, histórias, alegrias e tristezas, dores, integrado em sua família, em sua rua e comunidade e sobretudo com capacidades em se recuperar.
Talvez seja difícil imaginar que estamos caminhando para um serviço com essas características, mas a verdade é que, mesmo de forma lenta, o SUS avança na prestação de cuidados cada vez mais complexos e integrais. Isso parece acontecer em pequenos projetos periféricos, como fala Vasconcelos (2010), mas está acontecendo, basta observar a evolução dos serviços oferecidos para comunidade. Há poucos mais de 30 anos o serviço limitava-se a diagnóstico e tratamento de doenças biofisiológicas em hospitais, de forma totalmente centralizada. Esses serviços ainda eram oferecidos apenas para quem tinha carteira assinada, todos os demais tinham que arcar pessoalmente com as despesas ou contar com a boa vontade e/ou a caridade do estado e/ou das igrejas.
Apesar de insuficiente, hoje temos equipes da Estratégia Saúde da Família em praticamente todas as cidades do Brasil e saúde é vista como um direito de todos, não mais como caridade. Ainda não é um serviço integral e totalmente humanizado, mas existem milhares de pessoas, usuários e servidores, trabalhando diariamente para que um dia venha a ser. Outro exemplo destes avanços são as políticas públicas. Além da Própria PNH, que tem sua gênese nas discussões dos anos de 1990, é possível citar as políticas de Práticas Integrativas e complementares, que visa oferecer cuidados mais amplos, menos focados na doença; a de Promoção de Saúde, a de Educação Permanente e a de Educação Popular em saúde, que entre outros objetivos, tem a intencionalidade de promover a democratização dos serviços e pensar as práticas dos serviços de forma dialogada.
No campo das políticas públicas, humanização diz respeito à transformação dos modelos de atenção e de gestão nos serviços, diz Pereira e Barros, em texto publicado no site da Fiocruz. Ao mesmo tempo afirmam que transformar práticas de saúde exige mudanças no processo de construção dos sujeitos dessas práticas. Parece evidente que essa transformação passa necessariamente pelos trabalhadores da saúde e pelos usuários dos serviços, sobretudo ao melhorar e/ou tornar possível e efetivo processos de comunicação entre todas as partes envolvidas. Mas tem que ser uma comunicação que prime pelo diálogo horizontal e transversal e não como comunicado.  A PNH  afirma isso ao dizer que a humanização é um processo que compreende e valoriza os diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde. É importante destacar que uma das preocupações centrais da PNH é sua ênfase em transformar o modelo assistencial e incorporar, entre outras práticas, a clínica ampliada. Para isso é preciso não apenas investir na melhoria da estrutura e dos equipamentos, mas no potencial dos profissionais. É através das pessoas que se pode mudar o modelo assistencial e oferecer serviços realmente humanizados.
Essas mudanças passam pela melhor formação dos trabalhadores, mas principalmente por uma mudança de postura que leve em conta as condições de trabalho e vida dos envolvidos com o SUS. Pessoas tratadas com humanidade tendem a ser mais humanas, ou, como diria o poeta, Gentileza gera gentileza. 
A própria existência da clínica ampliada passa pelo reconhecimento das necessidades humanas de trabalhadores e usuários dos serviços, e pela discussão aprofundada sobre o que é ser um profissional de saúde e pertencer a uma corporação especifica, até para que isso seja ressignificado. Essa discussão, embora conflituosa, é fundamental e tem potencial para melhorar o serviço integralizado como um todo. A própria PNH prevê que trabalhar em equipe é falar em conflito e que este não é necessariamente ruim. Penso que para trabalhar na perspectiva da clínica ampliada e da humanização, é preciso ir além de pensar como equipe, é preciso pensar de forma interdisciplinar e transdisciplinar, vendo no seu colega não alguém hierarquicamente superior ou inferior, com mais ou menos saber do que o seu, mas um outro que sabe diferente e de forma complementar, que pode contribuir com o cuidado.
A construção da visão transdisciplinar é fundamental por diversos motivos, como por exemplo, para melhorar o saber/fazer das profissões da saúde, que se desenvolveram de forma fragmentada e, muitas vezes, sem condições de ver sujeitos em sua inteireza. Em alguns casos, os profissionais nem conseguem ver o problema com um todo, mas apenas partes deles. Neste sentido, pensar a equipe como um corpo e não como corporação, ajuda muito, principalmente porque a clínica ampliada vai além da tradicional. Exige que se pense o sujeito de forma biopsicossocial, tendo em mente o conceito de saúde do SUS, os determinantes sociais do processo saúde/doença/cuidado.
A prática da clínica ampliada parecer ser muito difícil e talvez seja, mas a dificuldade não diz respeito só a equipamentos e custo financeiros, porém a questões relacionais. Essa prática exige uma comunicação transversal, transdisciplinar e interinstitucional, o que é bastante difícil, porém não é impossível caminhar para esse tipo de prática. A PNH diz que, entre outras coisas, é preciso investir na criação de instrumentos de suporte aos profissionais de saúde para que eles possam lidar com as próprias dificuldades; também com a ideia de “neutralidade” e “não-envolvimento” que muitas ainda alimentam no serviço.
Não estamos falando daquela clínica limitada a queixa conduta centrada na doença, mas de uma visão ampla, que tente ao máximo ver o sujeito em suas múltiplas dimensões, não se limitando aos problemas, mas as potencialidades do sujeito.  A PNH diz que a “a Clínica ampliada convida a uma ampliação do objeto de trabalho para que pessoas se responsabilizem por pessoas”. Utópico? Talvez, mas é a utopia uma imagem objetivo, assim como o princípio da integralidade.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Referências

MATTOS, R. A. D. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cadernos de Saúde Pública, v. 20, p. 1411-1416, 2004.
VASCONCELOS, E. M. O significado da educação popular na realidade e na utopia da atenção primária à saúde brasileira. In: MANO, M. A. M. e PRADO, E. V. D. (Ed.). Vivências de educação popular na atenção primária à saúde: a realidade e a utopia. São Carlos-SP: EdUFSCar, 2010.  p.13-18. 
PEREIRA, Eduardo Henrique Passos; BARROS, Pereira Regina Duarte Benevides. Humanização. Disponível em: Acessado em: 09 jan. 2016.
BRASIL. Ministério da saúde. Secretaria de atenção à saúde. Política nacional de Humanização da atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada / Ministério da saúde, secretaria de atenção à saúde, Política nacional de Humanização da atenção e Gestão do SUS. – Brasília: Ministério da saúde, 2009.

25 março 2014

Lá...


Lá onde a luz brilha,
Lá onde o amor vai
nós achamos a trilha
de uma estrela que cai.
— A Turma do Balão Mágico

    Um dia nos planejamos para o batizado, o aniversário, a primeira comunhão, a formatura, o noivado, o casamento, o chá de panela, a despedida de solteiro, o primeiro dia de aula, o último dia do ano, o velório, a missa... Planos de tempos esperados, desejados, festejados ou sofridos, temidos... Histórias que nossos pais e os pais de nossos pais escreveram e registraram em fotos que enfeitam as paredes, os álbuns, os baús de memórias de família.

    De todos os planos, todos os encontros, a nossa necessidade ancestral do rito. Algo que marque nossa passagem, tal qual um portal que nos atravessa para um outro mundo: o mundo dos adultos, dos formados, dos casados e dos órfãos... Em uma série de atos que, geralmente têm uma ordem estabelecida, uma sequência lógica, nós nos despedimos de um momento e inauguramos outro.

    Mas de toda essa vida de esperas e planos, há o real da vida vivida sem estreias com data marcada. Sim, em um dia não riscado com um círculo vermelho em volta, damos um passo a mais, um sorriso a menos, uma palavra nova ou antiga dita de outro jeito, um desejo que não contemos e pronto, nos tornamos alguém que não éramos antes. Nem sempre percebemos. Não há ritual claro, não há aviso, não há vestido novo, nem valsa especial, não há hino ou hastear de bandeira, nem cortar de fitas ou troca de alianças... Simplesmente vamos, somos, nos tornamos e seguimos vida afora, sonhando com um dia novo.

    É verdade que todos os dias, em todos os encontros e desencontros, em todas as palavras e silêncios, há a chance de inaugurarmos e estrearmos, mas falo de coisas mais profundas, dessas que deixam marcas, dessas que deixam cores, cheiros, que deixam raízes onde nos sustentamos e nos alimentamos. Coisas que nos refazem, que ressignificam nossa história e que, de alguma forma até, acredito, mudam a rotação do mundo, a translação, a lua, as estações do ano e as marés. Coisas encantadas.

    Tenho prestado atenção nessas estreias sem aviso. Nessas passagens sem festa. E ainda, afirmo que, mesmo sem perceber, de forma tênue, mas muito especial e concreta, esses momentos têm sim, uma espécie de ritual mágico, escondido, tímido, quase uma névoa, uma neblina no dia claro. Tipo aquelas gotinhas de nada que se escondem no nevoeiro da primeira hora da manhã. Pois está lá, bem lá... E mais! Pode ser mais importante, mais revolucionária, mais significativa que qualquer corte de fita, qualquer assinatura de certidão, qualquer marcha nupcial ou soco no ar ao segurar o diploma. Porque o momento não é percebido no durante como todos esses outros. Ele é percebido depois. E nessa percepção é que nos dizemos em silêncio: “foi lá...”

    Que nem a musiquinha do Balão Mágico que fez parte da minha infância: “lá onde a luz brilha”. Sim, lá onde uma luz brilhou e, nem sempre percebemos. Lá achamos a trilha pra estrela que caiu, o sol que nasceu, para a chuva repentina, para o dia que mudou, para nós mesmos que nos tornamos outros, renascemos, descobrimos...

    15 anos faço de formada em julho. Desde o primeiro semestre a turma se preparava para a formatura. Festas, bingos, planos, reuniões, estratégias de conseguir dinheiro. Depois, empresas, fotos, convites, clube, baile, cerimonial, discursos, oradores, homenageados, músicas, entrada triunfal, togas, diplomas. Tudo sonhado em 6 anos e durou menos que 6 horas. Mas vale e valeu muito: lágrimas, orgulho, gratidão, alegria, sensação de alívio, liberdade e dever cumprido. Mas tenho certeza de que o momento em que a luz brilhou, o momento da minha festa de formatura foi antes, bem antes...

    Era o ano de 1998 e fui para Anguera, sertão baiano, pelo Programa Universidade Solidária. Algo semelhante ao antigo Projeto Rondon: estudantes de diversas áreas atuando em regiões vulneráveis, trocando, aprendendo e ensinando. Meu grupo passou um mês vivendo na pequena cidade. Dias intensos de descobertas, momentos de muita angústia e muita esperança, muita indignação e muita luta. Os dias e noites, todas, passaram tão rápido e tão densos que chegamos ao fim com a surpresa e o cansaço dos que correm, correm, correm e nem sabem para onde. E nem sabíamos mesmo que caminhávamos para uma maturidade e uma experiência que valia por semestres e semestres de salas de aula, laboratórios e provas finais...

    Em Anguera, fizemos um grupo de gestantes e nos mobilizamos, junto com a comunidade, para garantir a assistência pré-natal. Foi uma briga boa. Fiz muitos atendimentos, muitas visitas, muitos grupos de educação em saúde nos lugares mais diversos e até, debaixo de uma mangueira. Um dia, chegamos em uma escola para fazer um grupo e, juntos, nosso grupo e moradores, varremos a sala e limpamos as cadeiras. Descobri uma outra medicina e, naquelas tardes quentes do sertão, naquelas noites enluaradas de festas nas ruas, com as crianças e adolescentes, entendi que seguiria pelo caminho da medicina preventiva e social.

    Na última noite em que passamos em Anguera, a comunidade liderada pelas meninas da Pastoral da Criança organizaram uma serenata de despedida. Na madrugada fomos todos acordados por canções de adeus e agradecimento. Todos fomos chamados pelos nomes e recebemos rosas. O sol foi nascendo e a manhã do dia seguinte, o dia da nossa partida, foi chegando devagarinho, enquanto o forró tocava na calçada, na rua e a gente dançava, todos, tudo junto e misturado... Era fim e era começo...

    Foi lá...

    Lá onde a luz brilha, brilhou... Onde comecei a me tornar a médica que sou hoje. Onde achei a trilha de muitas estrelas que passaram e passam na minha vida. A minha foto junto com as meninas da pastoral, as meninas que me acompanharam em grupos e lutas, festas e orações é a foto da minha formatura. A serenata feita por elas foi a minha música de entrada. A rosa que me deram, foi meu diploma. Mais de um ano antes de me formar oficialmente, dancei a minha valsa de formatura: forró, com o sol nascendo e a alma e o coração recém aprendendo a juntar estrelas. Saindo da meninice da universidade e virando médica, de pés descalços na rua amanhecida e encantada de Anguera.



[Maria Amélia Mano publica na Rua Balsa das 10 às 3as-feiras]

12 dezembro 2013

Capítulos médicos da universidade I – Humanidade


Certamente o segundo ano da faculdade foi palco de muitas histórias e aprendizados (e ainda o é), aqui um texto que fiz depois de quase um ano ter vivenciado o episódio aqui descrito, às vezes precisamos do tempo certo para poder sentar e escrever. Esses "Capítulos médicos da universidade" fazem parte de uma coletânea que estou escrevendo para depois que eu me formar na faculdade, bem depois talvez, os textos falam do que me emocionou, me fez pensar e crescer durante a minha formação. Esse será o primeiro capítulo.

"Se você faz o que sempre fez, você obterá o que você sempre obteve. " -  Anthony Robbins
Muitas vezes a parte mais humana da medicina é o discurso. Faz muito tempo que quero escrever este texto, talvez só uma madrugada de chuva e insônia poderia me dar a combinação perfeita, e essa noite chegou e talvez fique aqui escrita por muito tempo.

Já faz cerca de um ano, eu em meu jaleco branco, cabelo amarrado, estetoscópio no pescoço, pasta no ombro, prancheta na mão – uma aluna de medicina do segundo ano na aula de semiologia. Estávamos no hospital de cardiologia, depois de fazermos a história e examinarmos uma paciente o professor chamou-nos. Começou a falar de um caso muito raro, um paciente com uma cardiopatia difícil de aparecer nos plantões. Na verdade já tinham me falado deste paciente, outros alunos que já haviam examinado ele durante o plantão noturno, e outros que já haviam examinado pela manhã. Era um caso realmente fantástico, “de livro”.

Meu grupo estava ansioso por inspecionar, palpar, percutir, auscultar, aferir, organizar, sintetizar, examinar, descobrir, diagnosticar... Vi colega por colega meu fazer todos os passos, porém no meio de toda aquela ciência, comecei a observar o paciente, não como uma futura médica, mas como uma pessoa – sem esperar ver sinais e sintomas. Ele sem camisa, sentado, seguindo todos os passos de forma cooperativa, depois de cada colega meu examinar e mal dar um “tapinha” em seus ombros agradecendo, ele sorria.

Comecei a observar o sorriso, ele era negro, jovem, sorridente, compreensivo – porém, notei as olheiras, o cansaço, a magreza, a respiração profunda. Como seria estar envolto de vários alunos de medicina, professores, médicos, enfermeiras e afins.  Ele não parecia assustado, porém tinha algo angustiante entre eu e ele.

Um exército de jalecos e estetoscópios aproximava-se e partia, muitas pessoas examinaram ele. Percebi que fui me deixando para trás, até que chegou a minha vez. Quando me aproximei, falei em um suspiro: - Já estamos terminando, sou a última -. Ele apenas sorriu e olhou para baixo, como tinha feito com todos os meus colegas. Examinei.

Quando terminei, chamei-o pelo nome e pedi se ele gostaria de ouvir o que tanto ouvíamos no seu coração. De repente ele sorriu, mas foi um sorriso novo. Ele concordou com a cabeça. Eu procurei um foco cardíaco segurei no peito dele e coloquei o estetoscópio nas orelhas dele. Ele abaixou a cabeça e prestou atenção, ficou todo o tempo escutando-se.

Hoje, queremos nos conectar sem vínculo, sentir sem envolver-se, cuidar sem abraçar. Será que somos solúveis e instantâneos que não podemos segurar a mão de uma outra pessoa. Quantas vezes analisamos ? Quantas vezes nos analisamos? Quantas vezes só cumprimos o protocolo? A medicina é incrível, com o passar do tempo o tato muda, os olhos mudam, os ouvidos, o olfato muda – nós mudamos, e espero poder me reconhecer no espelho.

Poucos minutos depois, senti o professor tocando minhas costas, chamando para sair do quarto para fazermos a discussão, com uma certa pressa e muito incômodo dos meus colegas. Percebendo, ele levantou os olhos cheios úmidos. Havia um brilho e um sorriso. Era como se nossos olhos tivessem ficados conectados , suspensos, cúmplices – agora ele podia ter ouvido o que tanto o examinavam.
Ele me abraçou e me agradeceu, de uma forma profunda e sincera. Nesses momentos exatamente humanos da nossa existência. Deixei meus colegas partirem, auxiliei-o a colocar sua camisa e me despedi, ele sorriu novamente, era diferente.

Quando fechei a porta, estavam todos apavorados comigo, avisando-me para eu ser cautelosa, para eu higienizar meu estetoscópio, aproveitar o tempo da aula, que eu não podia ter essa postura, e etc. Isso não fez nenhuma diferença, estava envolta por uma nuvem de consciência e com um soluço sem lágrimas preso a garganta em silêncio. Segui a aula, segui os dias, estava no hospital quando ele deu alta e ele veio e apertou minha mão e sorriu. O paciente é um universo, como diria um professor.
Mayara Floss

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