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24 novembro 2017

TODOS SURDOS

Macacos. Imagem capturada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Certa vez, numa terra não muito distante, presenciei ação (supostamente) educativa. De tudo que aconteceu, mais fortemente duas coisas ficaram martelando em minha cabeça: 
A enfermeira, vendo que apenas duas mulheres estavam presentes, disse:
- Veja só, duas mulheres, como o povo é interessado.
Uma, das duas mulheres, depois que todos falaram o que queriam falar (meio que sem notar elas por ali), disse:
- Sempre me disseram que não podia dar água para o bebe, até os seis meses, mas eu dava.
Todos os profissionais presentes, inclusive o pessoal do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) e da gestão, os estudantes de enfermagem, de fisioterapia, somando ao menos uns trinta, caíram na risada, como se o que a mulher falou fosse uma piada.
Todos falaram sobre o aleitamento materno e pensaram estar ensinando verdades científicas inquestionáveis e que estas estavam sendo absolvidas, como água por uma esponja. Cada grupo utilizando, com maestria e desenvoltura, suas terminologias e vocábulos próprios.

No mesmo dia, em outra Unidade de Saúde, constatei que os banheiros dos usuários não eram limpados há pelo menos duas semanas, apesar de ter material de limpeza, água e três pessoas contratadas e pagas em dia para fazer isso. Somando a gerente da unidade, eram quatro as pessoas que não deveriam deixar essa situação acontecer.
Uma usuária indignada, neste dia, questionou a gerencia sobre o porquê daquela imundice e ela, abrindo os braços em gesto de: “o que eu posso fazer?”, simplesmente disse, parecendo já saber que os banheiros estavam daquele jeito: “é o povo, minha filha”.
Duas Unidades de saúde distintas, dois procedimentos idênticos: desresponsabilização das obrigações profissionais e culpabilização dos usuários.

No primeiro caso, da reunião em que participaram duas pessoas da comunidade, acompanhei parte do planejamento e estranhei que deliberadamente as mulheres da comunidade não foram convidadas, não ao menos de uma forma mobilizadora. Optaram por restringir o acesso de quem não eram da área, de homens, de mulheres que não fossem gestantes ou que não estivessem amamentando.
Pelo levantamento chegaram ao número de mais ou menos doze pessoas, mesmo assim, durante o período de mobilização optaram por não convidar algumas mulheres (a explicação foi no mínimo estranhíssima). Várias tentativas de mobilização foram boicotadas, como o folder feito pelas estudantes e impedidos de ser distribuídos na comunidade, a indisposição em ir às casas das mulheres, entre outras.
Aconteceu o que se esperava: as mulheres não vieram ou não vieram na quantidade que os profissionais julgavam adequado. Explicações para isso tem várias: choveu na hora do evento, eram poucas mulheres convidadas e poucas sabiam do encontro, nem todas puderam sair de casa na hora que os profissionais desejavam, entre outras hipóteses. Porém a constatação foi única e objetiva, certeira e sem possibilidade de questionamento: o povo não tem interesse na própria saúde.

O encontro em si foi conduzido do emissor para o receptor, de quem sabe para quem não sabe, do profissional para o usuário, sem possibilidade de diálogo. Cada profissional ou grupo de profissionais ocupou seu espaço e falou. No encontro estava uma pesquisadora em Educação em Saúde e outra responsável pelas ações de educação em saúde do distrito sanitário, mesmo com todos esses conhecimentos multiprofissionais: falaram praticamente sozinhas e para si mesmas. Um grupo parecia competir com o outro para ver qual tinha o vocabulário mais incompreensível: lactação, prolactina, alvéolo, ducto lactíferos, glândulas mamárias, progesterona, retenção venosa, diafragma, lordose, escoliose, edema, comer coisas com potássio, sucção, ocitocina, hipófise, entre outras coisas mais cabeludas.
A única coisa realmente interessante dita na reunião foi totalmente ignorada, tratada como piada, ou seja, a fala da mulher da comunidade: “sempre me disseram que não podia dar água para o bebê, até os seis meses, mas eu dava”.
Por que ninguém quis ouvir o que a mulher disse, porque não se problematizou tal afirmação, não discutiu, não procurou entender o que a mulher quis dizer?
A reação dos presentes foi rir, como se aquilo fosse uma piada. Porém, passado o susto inicial, dá para dizer que era sobre isso que Victor Valla falava nos anos de 1990: nós não conseguimos compreender o que a população fala. Arrisco ir mais além: não ouvimos o que o povo fala porque o consideramos inferiores e não é possível dialogar com inferiores. Inferiores devem receber informações, ordem, prescrições. Só se dialoga com iguais, diz Eymard Vasconcelos em um de seus livros.
Essa parece ser uma possível explicação do por que não conversamos com as pessoas, mesmo quando dizemos que vamos fazer uma roda de conversa. O que fazemos é monologar e talvez, se o humor e o tempo permitir, deixar que façam perguntas para gente rir.

Eymard Vasconcelos diz que existe um fosso entre o que a população sabe e o que os profissionais sabem e que esses dois conhecimentos não dialogam. Profissionais de saúde entendem que só o seu saber é verdadeiro e que o saber popular não tem importância, é coisa para ser corrigida, é no máximo piada.
Talvez por isso riram, não ouviram, não se importaram
talvez por isso não se esforçaram, não compreenderam, não problematizaram
talvez por isso nem se lembrem do que a mulher falou.

E a culpabilização?
Não será só para tentar aliviar a consciência, desresponsabilizar-se por suas responsabilidades não cumpridas e talvez dormir tranquilos?

Parece que na cabeça dos profissionais o povo é sempre culpado pelo que lhe acontece: se o banheiro está sujo é porque ele sujou, portanto não precisa limpar, que conviva com banheiro sujo.
O mesmo raciocínio se aplica as eleições: cada povo tem o governo que merece, não é assim que pensa quem acha que votou direito e é obrigado a conviver com as consequências das escolhas erradas, que são sempre do povo?
O fato de ter três profissionais contratados para fazer a limpeza, a gerencia da UBS não se importar com o descaso dos faxineiros, os profissionais não se preocuparem em mobilizar a população, significa que merecem os salários que recebem?
O fato dos profissionais, estudantes, falarem uma língua que só eles compreendem, falarem muito e ouvirem pouco, significa que acham que sabem mais do que os outros?
O fato do povo não estar, aparentemente, interessado nos monólogos dos profissionais sabidos, significa falta de interesse na própria saúde ou falta de interesse no que os profissionais pensam que falam?
Será que na raiz de tudo isso: não convidar, não ouvir, não limpar e culpabilizar, não está o descaso com o outro, já que ele não é igual a mim, portanto menos merecedor?


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

23 maio 2014

TOLERÂNCIA CARECE DE COERÊNCIA OU VIRA CONVIVÊNCIA

Ernande Valentin do Prado

Noite dessas estive debatendo com uma amiga sobre as condições dos PROVABIANOS, que ela acompanha como supervisora de campo do PROVAB e eu como Apoio Pedagógico no curso de especialização ao qual são “obrigados” a cursar.
Ela acredita que as condições em que trabalham são muito difíceis. Não nego as dificuldades, realmente falta muita coisa, mas não são ruins apenas para os PROVABIANOS, são para todos os outros profissionais já inseridos na Estratégia Saúde da Família e, principalmente, para população que depende do serviço. Aliás, penso que se as condições fossem as ideais, esse tipo de estratégia seria completamente desnecessário.
Os profissionais de saúde e não apenas os Médicos estudam em escolas públicas ou particulares com incentivos públicos. Recebem bolsas de diversos tipos, desde incentivo à moradia, iniciação científica, residência e até para estudar no estrangeiro. Até aí tudo bem, acho que tudo isso é importante mesmo, porém o Estado brasileiro, diferente de outros tão ou mais burgueses que o nosso, nada exige do estudante. Pode frequentar ou não as aulas,  pode aprender ou não, pode formar-se ou não, pode, depois de formado trabalhar ou não e ainda escolher onde e tudo bem, nada tem que provar para ninguém, sobretudo para população, que em alguns casos serviram de “cobaias” para que aprendessem seu saber/fazer.
Estudei na PUCPR, com bolsa não reembolsável. Meu compromisso para manter a bolsa, segundo a assistente social, não faltar às aulas e tirar notas boas. Os beneficiados do Programa Bolsa Família (PBF) precisam assumir uma série de compromissos com as condicionalidades, por exemplo, frequentar às aulas, se grávida fazer pré-natal. Concordo, só não entendo porque estas e outras exigências não são para todos independentes da classe social.
Após 6 anos de estudo, o profissional de medicina pode aderir a uma bolsa de especialização em serviço e, além de trabalhar, aprimorar-se, tornar-se apto a entender e praticar Atenção Primária à Saúde. A bolsa prevê 40 horas de trabalho em uma equipe de ESF, e, dessas 40 horas, 8 são dedicadas (em teoria) à especialização. Alguns levam à sério, outros nem tanto, mesmo tendo assinado um contrato comprometendo-se a fazer (o mesmo vale para os beneficiados do Bolsa Família). No meio do curso começam as “desculpas” honestas ou não para não fazer isso ou aquilo. Não seria isso o condicionamento do Estado que “tudo” oferece sem nada pedir em troca (para alguns)? Ninguém está acostumados a dar nada, comprometer com nada que não seja individualizado – essa parece ser uma resposta possível. Outra é que, de fato, a maioria não têm interesse em atenção primária, estão no programa, parece por dois motivos; primeiro, para maioria, por conta do incentivo de 10% de bônus para cursar a residência que escolher depois, segundo lugar, a bolsa de dez mil reais, que  parece pouco pelo valor que se atribuem, mas que de fato não é tão pouco assim.
Porém, estes, a meu ver, são os problemas pequenos. O que incomoda mesmo é o fato de que estão em tese preparando-se para ser melhores profissionais, mas poucos aproveitam essa oportunidade. Conheço PROVABIANOS que alegam que foram obrigados pelo Ministério da Saúde a fazer o curso. O problema é que não se engajam no fazer, não demonstram conhecer nenhuma técnica ou terapêutica além da consulta clínica calcada na distribuição de pedidos de exames e receitas medicamentosas.
Não espero que estes recém-formados tenham condições de enfrentar problemas complexos e os resolver, pois em APS muitos problemas não têm mesmo solução, mas que se importem o suficiente para incomodar-se com eles, para que “infernize” a vida dos colegas e dos gestores em busca de soluções conjuntas e que não simplesmente passem um encaminhamento e acreditem que já fizeram sua parte.
Dia desses falei com um PROVABIANO que está há 10 meses em determinado território que visitei um senhor acamado, com sequelas de AVE em sua área e ele respondeu-me que não sabia da existência desse homem. Realmente ele não sabia, mas esse é exatamente o problema, disse-lhe: como ficar tanto tempo em um lugar e não conhecer seus moradores? Será isso ético, humano, condizente com a profissão e com o PROVAB não conhecer, não saber da existência desse homem?
Diante desse quadro, pergunto-me: A minha tolerância com esse tipo de comportamento é coerente com meu compromisso com a população, com meus deveres éticos e legais?
Acho que não estou pedindo (ou exigindo) muito, na verdade não estou nem mesmo exigindo que faça o que estou fazendo, pois nem dormir direito durmo quando tenho um problema que não consigo encaminhar de modo satisfatório. O que aprendi nestes anos todos trabalhando em APS é que não existem problemas intransponíveis, mas pouca criatividade, pouca insistência, pouca vontade de ser mais e fazer mais.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Revisão – Jailson Conceição – Bahia.

16 maio 2014

ASSIM CAMINHA O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE


Cada vez que tenho contato com uma nova realidade da Estratégia Saúde da Família (ESF) lembro o quanto essa equipe de Rio Negro, Mato Grosso do Sul, era avançada no fazer e no saber em APS. Foram três anos intensos, retratados cotidianamente no blog Cuidado Saúde eCidadania em textos, fotos, vídeos e áudio. 
Uma equipe que foi, não apenas profissional, mas de onde saíram amigos de toda vida.
Toda vez que alguém diz que o Sistema Único de Saúde (SUS) não dá certo, digo: qual não dá certo, o meu dá. E essa é a realidade. Apesar de todas as dificuldades, apesar de tanta gente mal intencionada e/ou incompetente, sempre é possível fazer o SUS dar certo. A equipe de Rio Negro fazia e, para quem usar a desculpa de que éramos especiais para justificar não fazer, quero já desmistificar, não tínhamos nada de especial, construíamos todos os dias nossas possibilidades, driblando as dificuldades, procurando outros caminhos e desviando das conveniências meramente políticas.
Isso pode ser feito em todo lugar? Pode, mas depende de você.
Por essas lembranças postou aqui no Rua Balsa das 10 este vídeo realizado em 2008. Ele condensa 12 meses de trabalhos intensos e felizes (quase sempre).




                                                                                         [Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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