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23 dezembro 2014

MARIA E JOSÉ [Maria Amélia Mano]




MARIA E JOSÉ

Há quem tenha medo que o medo acabe.
Mia Couto

            Maria estava com amigas quando José ligou para a irmã. Ele, distante. A irmã ao lado. A irmã disse que ele conhecia Maria ou, ao menos, a irmã de Maria que morava no mesmo bairro. A irmã de José deu o telefone para Maria para que se falassem. Ela gostou da voz. Ele gostou da conversa. Maria permitiu que dessem seu telefone a José. E, daí em diante, todos os dias eles se falavam. José mandou foto pelo celular e Maria, muito insegura, mandou também. Gostaram do que viram.

            José estava preso. Diz que se envolveu com mulher usuária de drogas, mas que a amava muito. Ela tinha algumas "amizades do crime". Ele quis dar vida melhor para todos e se aliou aos amigos da então namorada e tentou assaltar um banco. Foi pego em flagrante. Depois descobriu que ela estava com o melhor amigo. Confessou que tinha medo de se envolver. Sofreu muito. Nove anos na prisão. Nunca casou, não teve filhos. Saiu, uma vez, no natal e resolveu não voltar para a prisão. Foi pego e preso novamente e sua pena aumentou.

            Maria foi casada com um “homem ruim” que vivia dizendo o quanto era feia, gorda e desajeitada. Quando se separaram, ele a deixou sem ajuda para criar os dois filhos. Ela não foi atrás dos “seus direitos”, isso significava encontros e incomodações e era melhor ficar distante de alguém que a fazia tão mal. Sua autoestima piorou quando fez uma cirurgia de emergência para a retirada da vesícula. A cicatriz na barriga ficou grande e agora, ela aguarda a cirurgia plástica.

            Maria falou para José do ex companheiro, da cicatriz, do trabalho para criar os filhos sozinha. Falou de seus medos. José falou de sua situação no presídio, de seus crimes e seu amor perdido. Falou ainda que não tinha muito contato com a família, nem muitas visitas, se sentia só e triste. Resolveram se encontrar. José disse que o presídio em que estava não era um qualquer, mas o de segurança máxima, em cidade vizinha. Isso significava uma viagem e uma revista mais demorada. Ela aceitou. Foi. E quando se viram, ela confessa que gostou dele desde o primeiro instante. Começou a gostar cada vez mais das ligações e sentir falta quando não conseguiam se falar.

            Desde então, dois anos se passaram. Todas as semanas se falam. Sempre que possível Maria visita José no presídio. Não é fácil pelas revistas na entrada e saída e pelo constrangimento da “visita íntima” que é anunciada aos quatro cantos das celas e todos ficam observando as mulheres passarem. Leva comida, agrados e ainda, conseguiu pagar um advogado para José. Maria trabalha com limpeza e fez empréstimo no banco. Acha que ele merece pois diz que quis roubar de rico, dono de banco. José diz que jamais seria traficante pois isso significa tirar dinheiro de família, de pobre. Ela fala isso com orgulho.

            Maria, agora, está ansiosa. Conversa comigo e lhe pergunto o que há. O advogado que contratou fez bom trabalho. José vai para o regime semiaberto na semana do natal. Vai ser solto. Era o que queria, mas, agora, me diz ela: “ele não precisará mais de mim”. Teme que ele volte para o crime, teme que ele não a queira mais. Terá outras opções. Estará livre durante o dia. Vai procurar trabalho e tentar resgatar o tempo perdido. Ele quer passar o natal e o ano novo com ela. Depois de 9 anos, o primeiro natal livre.

            E lembro das mães que atendo e que visitam os filhos nas prisões. E lembro das esposas e do natal, tempo de saídas, pausas em família, liberdades temporárias, tempo de indultos, de perdões e reencontros, vidas novas, vidas antigas se refazendo ou se desfazendo em continuidades de tristezas, culpas e reincidências. Novas despedidas ou novas fugas. Mundo sempre entre grades. Mesmo antes das sentenças, das celas, da segurança máxima. Mundo sempre entre ausências. Mesmo antes do isolamento, do abandono, da vergonha, da culpa, da pena. Mundos que tentam viver o mundo em que vivemos, com estrela, árvore e noite de natal.

            E lembro de tantas prisões que nos impomos, em tempos, horários, obrigações e tarefas que não acreditamos. Mundos que se fingem libertos. Mundos que simulam alegrias e presenças. Mundos solitários, encarcerados. E penso: podemos fugir, podemos não mais voltar, podemos nos presentear com a liberdade de sermos o que queremos ser, sem medo dos julgamentos e sentenças que virão de olhares e palavras: sempre os piores castigos e mágoas.

            Só vou reencontrar Maria no ano que vem e daí vou saber das festas, da liberdade, do amor de José. Vou saber do resultado das ligações clandestinas de celulares ilegais em prisões de segurança máxima que permitem o tráfico, a morte e os amores nem sempre certos, nem sempre abertos, nem sempre livres. E que de um mundo escuro e sem colorido, possa nascer, enfim, uma esperança, um dia e um ano melhor, com medos e incertezas, mas com o afago de quem acredita em nós, apesar dos nossos “crimes”.

            Este tempo de dezembro é tempo como outro, pois todo dia pode ser confraternizado, pode ser festejado como fim de um ciclo, tempo de nova chance. Mais do que pelo nascimento de Jesus, acontecido em outro calendário, vamos brindar também e sem julgamentos, pelas famílias que se refazem em um dia, pelas esposas e mães com seus filhos e esposos presentes, por Maria e José, por nós e pelas chances sempre novas que temos de nos reparar, nos reconstruir, nos libertar, nos recomeçar e amar sem medo.


[Maria Amélia publica na Rua Balsa das 10 às terças-feiras]

12 agosto 2014

O MEU Robin Williams [julio wong]







Para Paula, confiando que um dia aprenda que 
a liberdade se luta a cada segundo. E sempre com humor e graça. 
Como Robin.

Hoje estou longe pra caramba do meu cotidiano. De alguma forma me encontro e descubro nos gestos, vozes e olhares de pessoas inesperadas a milhares de quilômetros dos meus lares afetivos. No norte da América do Sul, refugiado em Boyaca, eu me emociono como quem vê o filho andar pela primeira vez; ou sobreviver a uma cirurgia longa e muito arriscada. Comovido e algo choroso.

Hoje se faz duro digitar. E, como fazia há mais de vinte e cinco anos, criar para mim era digitar. Tive o meu primeiro PC ainda estudante de medicina em 1985. Fazia poemas que guardava em grandes discos flexíveis. Os achava poéticos e mágicos. 

Hoje, depois dos sismos de 2014, é duro digitar. Mas. 

Mas o Robin Williams se foi e então eu devo e quero escrever. Mesmo que seja com os polegares. Sim, sei que soa dramático. Mas não o é tanto. É só força de costume e manias de quem valoriza demais o criar. Ato inusitado. Sempre espantoso. Arranjos de espírito e corpo que recentemente perderam esse conforto, essa harmonia. 

Robin. 

Em 1992 eu voltava de morar em Cuzco. Contra a minha vontade sai de lá. Amava minha vida lá. Meus amigos. As paisagens. A mistura de Inca e espanhol que encontrava em cada parede da cidade. 1991 foi ano único, singular e singelo. Mas, burro de mim, não fui capaz de argumentar que não queria. Que estava nem aí para a idéia de sair e estudar. Calei e fui embora. Só queria a alegria e a tranqüilidade dos outros. 

Cheguei a Lima fragilizado. E, numa noite de Miraflores, assisti The Fisher King, um filme do ex-Monty Python Terry Gillian. Com Robin de protagonista. Eu, pouco proclive a prantos, chorei demais ao longo de toda a projeção. 

E foi no cinema com uma amiga canadense, Anne Hajer, que passava por Lima de volta a Toronto. Não foi na TV. Depois pedi desculpas. Mas chorei é muito. Fazia 30 anos e era ainda uma criança. 

Dai para frente eu tive em Williams um refúgio. A fala rápida, a imitação de vozes, o repetitivo e outros trejeitos não me importavam. Eu tinha uma versão do Robin que me consolava. Que me dava esperança de algum dia aprender, dentro de mim mesmo, a dizer o que morava no coração e não o que os outros achavam o melhor para mim. Demorou muito. Demora. 

Quando Victor Valla faleceu eu escrevi que cada um de nós tinha seu Valla particular. Cada um de nós acaba inventando um próprio Valla. É o que acontece com os homens que são transcendentes. Só conseguimos ver e entender partes. Por isso podem aparecer contraditórios. 

O importante é que o Humano nega o catecismo, rejeita a simplificação e a conversão do contraditório e do continente de fraquezas e heroísmos em panfleto, consigna, política nacional de controle mental pela mediocridade. Em mera reprodução e não em criação. 

Por isso ainda acalanto no peito o meu Robin Williams. Meu. Aquele que citava Whitman com empolgação. Que esqueceu que foi o Pan para depois renascer. O que desvirava robô em filme ruim, o que pulou no mundo dos tormentos para encontrar o amor que se foi, suicidado, de impossível redenção. Aquele que fez o Patch, herói de muitos dos meus alunos da UFF. 


Hoje a roda da vida avançou. Novos dilemas, novos aprendizados, alguns arrependimentos inúteis... E repetições com cheiro de karma em pessoas baixinhas, pessoas que amo. Que são de mim. Mas mais são do mundo. 

Por isso vale lembrar o seize the day de Robin em Dead Poets Society. Caaaaaarpe. 

Eu confio. Porque nada há como o poema. Como o canto selvagem no meio da ordem mais férrea. 

Gracias Robin. 


[Julio Alberto Wong-Un publica na Rua Balsa das 10 às 2das]

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