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29 agosto 2014

O CUIDADO

Ernande Valentin do Prado


O ser humano nem sempre apresenta um comportamento lógico. Suas atitudes não podem ser medidas, pesadas, quantificadas e no final obter-se uma resposta padrão. Cada ser humano é único e terá, consequentemente, comportamentos distintos para um número infinito de acontecimentos.
Há alguns anos li no Jornal Folha de São Paulo a seguinte notícia:

FEIRANTE É LEVADO PELA ENCHENTE APÓS SALVAR MULHER

Na noite de quarta-feira, o feirante Italo Cicero Mendonça do Carmo, 24, desapareceu na enxurrada, após resgatar uma mulher que estava com o carro preso na enchente em uma avenida da zona sul de SP. Até as 21h de ontem, os bombeiros não haviam localizado o feirante, que pode ser a 76ª vítima das chuvas de verão no Estado. De acordo com Aleph Mendonça Avelino, 16, sobrinho da vítima que estava no local, o tio teria tropeçado em um tronco de árvore submerso na água.

Na época era responsável pelas aulas de História de Enfermagem em um faculdade na Bahia e passei a utilizar esse texto como ponto de partida para discutir o cuidado.
Acho válido dizer que nem todos os seres humanos na mesma situação de Ítalo Cícero fariam a mesma coisa que ele fez, mas outra dezena faria. Para maioria talvez o mais básico seja preservar-se, pois em primeiro lugar vem à própria sobrevivência, até porque muito pouco se pode fazer estando morto. Mas ao ver uma mulher na rua correndo risco de vida Ítalo Cícero jogou-se a ajudá-la. Talvez não tenha percebido o risco que corria, talvez fosse alto autoconfiante demais para medir os riscos, talvez o amor ao próximo fosse maior e mais urgente que preservar-se. Mas será que neste momento essas explicações são tão importantes? Torralba (1998) in: Waldow (2008) diz que a natureza do comportamento humano só pode ser explicado pela Antropologia Filosófica. Collière in Oguisso (2007) diz que o cuidado destina-se a preservar e manter a vida, seja individual ou coletivamente. Isso pode explicar parte do comportamento de Ítalo: agiu para preservar a vida do próximo. Outra possibilidade que pode ter impulsionado Ítalo ao salvamento de uma desconhecida é a força interior que move o ser humano para o bem e o correto. Nas palavras de Boff (1999, p. 33) essa força interior é o cuidado. Segundo este autor o “cuidado é mais que um ato; é uma atitude.” Atitude esta que provavelmente impulsionou Ítalo. Haidegger (1889-1976) in: Boff (1999) diz que o cuidado é ainda anterior a atitude, pois se encontra na raiz do ser humano. Outra possibilidade, que não exclui as anteriores, mas apenas complementa, tem a ver com o que diz Waldow (2008) ao afirmar que o cuidador nem sempre escolher cuidar, mas é acionado por uma força moral. Força esta que Ítalo parecia ter em abundancia.
Essa ação moral é comum a todo ser humano. Alguns têm mais outros menos. Alguns conseguem enxergar mais possibilidades de exercer o cuidado outros menos, mas todos a possuem, mesmo que não a exerça com frequência. Embora muitos autores, como Waldow (1998, 2004, 2007,2008), Leininger (1991) Watson (2005) consideram o cuidado a essência da Enfermagem, não devemos esquecer que cuidado, como já frisado por Boff e haidegger, consideram todo ser humano capaz de cuidar. O que difere o cuidado de Enfermagem do cuidado humano em si é que a Enfermagem o exerce de forma profissional. Oguisso (2007) diz que o cuidado é o objeto da profissão. Collière in: Oguisso (2007) diz que o cuidado nem sempre pertenceu a Enfermagem ou a qualquer profissão, mas a todo ser capaz de cuidar. O Pequeno Príncipe diria que o Cuidado é invisível por ser essencial, uma vez que, concordando com Boff, Collière, Waldow, entre outros, o cuidado é essencial e “o essencial é invisível aos olhos.”
O cuidado pode ser exercido com os seres humano, com os animais, com a flora, com o planeta, envolvendo a dimensão material e espiritual. Boff (1999) fala que é necessário ter cuidado com a terra enquanto uma entidade viva, enquanto a casa da humanidade. Segundo ele se não cuidamos de nossa casa não estamos cuidando do homem. Quando a gente acaba a nossa toalete pela manhã, começa a fazer com cuidado a toalete do planeta, resume o Pequeno Príncipe. Boff ainda menciona a dimensão social ao enfatizar que o mundo passa por uma crise moral que leva crianças, idosos e etnias inteiras a fome e ao abandono. Prado, Santos e Cubas (2009) descreve essa mesma sensação ao discutir o cuidado com o próximo:

Hoje vivemos  um  tempo  em  que    o  descaso  está  generalizado,  seja  no  âmbito institucional  com  os  pobres  serviços  de  saúde  prestado  pelo  estado  ou  pelos  convênios médicos e  sua  filosofia do  lucro máximo com atenção mínima;  seja no âmbito da  família, com as milhares de crianças abandonadas logo ao nascer ou nos primeiros anos de vida ou ainda  com  os  idosos  internados  em  casas  de  repouso  e  nunca  visitados  pelos  filhos  e parentes. Ou ainda a violência generalizada, tanto por parte de facções criminosas, quanto por parte dos órgãos de segurança pública ou privada. Poderíamos ainda citar os inúmeros conflitos  armados  ao  redor do mundo ou  a exploração  sistemática da África pelos  países centrais,  deixando  para  trás  discursos  humanitários  e  deixando  um  rastro  de  sangue  e abandono.
  
Cuidar, embora seja a tarefa primeira da Enfermagem, como descrito por Waldow (2008), ainda deixa a desejar. Muitos profissionais confundem cuidar com executar procedimentos. Sendo cuidado mais que uma atitude moral, não pode ser confundido com “fazer” embora o fazer seja parte indissociável do cuidado de Enfermagem. Waldow (2006) in: Waldow (2008, p. 11) diz que “na verdade o cuidado é uma arte que pressupõe a técnica.” Pode se apreender disto que a técnica, o procedimento pode ser executado sem cuidado, apenas com o objetivo de sanar uma necessidade física e profissional, mas que isto nem sempre se traduz em cuidado, como pode ser visto no texto o estado das coisas. No filme o nome do Cuidado, um dos personagens diz “que não se cuida de quem não se conhece”, sentimento que Maturana também se refere ao discutir ética. Porém procedimentos podem ser executados em desconhecidos. “só cuida quem sabe o nome do cuidado.”  Prado, Falleiros e Mano (2011) dizem, para finalizar, que cuidado é escuta.
E para você, cuidado é o que? Qual sua explicação para o que fez Ítalo Cícero?

Referencias:
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar, Ética do Humano - Compaixão Pela Terra. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

FOLHA DE SÃO PAULO. Feirante é levado pela enchente após salvar mulher. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1902201022.htm> Acessado em: 23 fev. 2009.

LAMA, Leo. O nome do cuidado (vídeo). 2019.

MATURANA, R. Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. 203p.

OGUISSO, Taka. (Org.) Trajetória histórica e legal da enfermagem. 2. Ed. Barueri-SP: Manole, 2007.

PRADO, E. V. D.; FALLEIRO, L. D. M.; MANO., M. A. Cuidado, promoção de saúde e educação popular – porque um não pode viver sem os outros. Rev APS, v. 14, n. 4, p. 464-471,  2011

PRADO, Ernande Valentin; SILVA, Adilson Lopes; CUBAS, Marcia Regina. Educação em saúde: utilizando rádio como estratégia. 1. ed. Curitiba : Editora CRV, 2009.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine. Pequeno Príncipe. São Paulo: Circulo do Livro, 1994.

WALDOW, Vera Regina. Bases e princípios do conhecimento e da arte da Enfermagem. Petrópolis: Vozes, 2008.


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]

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