Ernande Valentin do Prado
O ser
humano nem sempre apresenta um comportamento lógico. Suas atitudes não podem
ser medidas, pesadas, quantificadas e no final obter-se uma resposta padrão.
Cada ser humano é único e terá, consequentemente, comportamentos distintos para
um número infinito de acontecimentos.
Há alguns anos li no
Jornal Folha de São Paulo a seguinte notícia:
FEIRANTE É
LEVADO PELA ENCHENTE APÓS SALVAR MULHER
Na noite de quarta-feira, o feirante
Italo Cicero Mendonça do Carmo, 24, desapareceu na enxurrada, após resgatar uma
mulher que estava com o carro preso na enchente em uma avenida da zona sul de
SP. Até as 21h de ontem, os bombeiros não haviam localizado o feirante, que
pode ser a 76ª vítima das chuvas de verão no Estado. De acordo com Aleph
Mendonça Avelino, 16, sobrinho da vítima que estava no local, o tio teria
tropeçado em um tronco de árvore submerso na água.
Na
época era responsável pelas aulas de História de Enfermagem em um faculdade na
Bahia e passei a utilizar esse texto como ponto de partida para discutir o
cuidado.
Acho válido
dizer que nem todos os seres humanos na mesma situação de Ítalo Cícero fariam a
mesma coisa que ele fez, mas outra dezena faria. Para maioria talvez o mais
básico seja preservar-se, pois em primeiro lugar vem à própria sobrevivência,
até porque muito pouco se pode fazer estando morto. Mas ao ver uma mulher na
rua correndo risco de vida Ítalo Cícero jogou-se a ajudá-la. Talvez não tenha
percebido o risco que corria, talvez fosse alto autoconfiante demais para medir
os riscos, talvez o amor ao próximo fosse maior e mais urgente que
preservar-se. Mas será que neste momento essas explicações são tão importantes?
Torralba (1998) in: Waldow (2008) diz que a natureza do comportamento humano só
pode ser explicado pela Antropologia Filosófica. Collière in Oguisso (2007) diz
que o cuidado destina-se a preservar e manter a vida, seja individual ou
coletivamente. Isso pode explicar parte do comportamento de Ítalo: agiu para
preservar a vida do próximo. Outra possibilidade que pode ter impulsionado
Ítalo ao salvamento de uma desconhecida é a força interior que move o ser
humano para o bem e o correto. Nas palavras de Boff (1999, p. 33) essa força
interior é o cuidado. Segundo este autor o “cuidado é mais que um ato; é uma
atitude.” Atitude esta que provavelmente impulsionou Ítalo. Haidegger
(1889-1976) in: Boff (1999) diz que o cuidado é ainda anterior a atitude, pois
se encontra na raiz do ser humano. Outra possibilidade, que não exclui as
anteriores, mas apenas complementa, tem a ver com o que diz Waldow (2008) ao
afirmar que o cuidador nem sempre escolher cuidar, mas é acionado por uma força
moral. Força esta que Ítalo parecia ter em abundancia.
Essa
ação moral é comum a todo ser humano. Alguns têm mais outros menos. Alguns
conseguem enxergar mais possibilidades de exercer o cuidado outros menos, mas
todos a possuem, mesmo que não a exerça com frequência. Embora muitos autores,
como Waldow (1998, 2004, 2007,2008), Leininger (1991) Watson (2005) consideram
o cuidado a essência da Enfermagem, não devemos esquecer que cuidado, como já
frisado por Boff e haidegger, consideram todo ser humano capaz de cuidar. O que
difere o cuidado de Enfermagem do cuidado humano em si é que a Enfermagem o
exerce de forma profissional. Oguisso (2007) diz que o cuidado é o objeto da
profissão. Collière in: Oguisso (2007) diz que o cuidado nem sempre pertenceu a
Enfermagem ou a qualquer profissão, mas a todo ser capaz de cuidar. O Pequeno
Príncipe diria que o Cuidado é invisível por ser essencial, uma vez que,
concordando com Boff, Collière, Waldow, entre outros, o cuidado é essencial e
“o essencial é invisível aos olhos.”
O
cuidado pode ser exercido com os seres humano, com os animais, com a flora, com
o planeta, envolvendo a dimensão material e espiritual. Boff (1999) fala que é
necessário ter cuidado com a terra enquanto uma entidade viva, enquanto a casa
da humanidade. Segundo ele se não cuidamos de nossa casa não estamos cuidando
do homem. Quando a gente acaba a nossa toalete pela manhã, começa a fazer com
cuidado a toalete do planeta, resume o Pequeno Príncipe. Boff ainda menciona a dimensão social ao enfatizar que o mundo passa por uma crise moral
que leva crianças, idosos e etnias inteiras a fome e ao abandono. Prado, Santos
e Cubas (2009) descreve essa mesma sensação ao discutir o cuidado com o próximo:
Hoje
vivemos um tempo
em que o
descaso está generalizado,
seja no âmbito institucional com
os pobres serviços
de saúde prestado
pelo estado ou
pelos convênios médicos e sua
filosofia do lucro máximo com
atenção mínima; seja no âmbito da família, com as milhares de crianças
abandonadas logo ao nascer ou nos primeiros anos de vida ou ainda com
os idosos internados
em casas de
repouso e nunca
visitados pelos filhos
e parentes. Ou ainda a violência generalizada, tanto por parte de facções
criminosas, quanto por parte dos órgãos de segurança pública ou privada.
Poderíamos ainda citar os inúmeros conflitos
armados ao redor do mundo ou a exploração
sistemática da África pelos
países centrais, deixando para
trás discursos humanitários
e deixando um
rastro de sangue
e abandono.
Cuidar,
embora seja a tarefa primeira da Enfermagem, como descrito por Waldow (2008),
ainda deixa a desejar. Muitos profissionais confundem cuidar com executar
procedimentos. Sendo cuidado mais que uma atitude moral, não pode ser
confundido com “fazer” embora o fazer seja parte indissociável do cuidado de
Enfermagem. Waldow (2006) in: Waldow (2008, p. 11) diz que “na verdade o
cuidado é uma arte que pressupõe a técnica.” Pode se apreender disto que a
técnica, o procedimento pode ser executado sem cuidado, apenas com o objetivo
de sanar uma necessidade física e profissional, mas que isto nem sempre se
traduz em cuidado, como pode ser visto no texto o estado das coisas. No filme o nome do Cuidado, um dos personagens
diz “que não se cuida de quem não se conhece”, sentimento que Maturana também
se refere ao discutir ética. Porém procedimentos podem ser executados em
desconhecidos. “só cuida quem sabe o nome do cuidado.” Prado, Falleiros e Mano (2011) dizem, para
finalizar, que cuidado é escuta.
E
para você, cuidado é o que? Qual sua explicação para o que fez Ítalo Cícero?
Referencias:
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar, Ética do Humano - Compaixão Pela Terra. 4.
ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
FOLHA DE SÃO PAULO.
Feirante é levado pela enchente após
salvar mulher. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1902201022.htm> Acessado em:
23 fev. 2009.
LAMA, Leo. O nome do cuidado (vídeo).
2019.
MATURANA, R. Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. 203p.
OGUISSO, Taka. (Org.) Trajetória histórica e legal da enfermagem. 2. Ed.
Barueri-SP: Manole, 2007.
PRADO, E. V. D.; FALLEIRO, L. D. M.; MANO., M. A. Cuidado, promoção de
saúde e educação popular – porque um não pode viver sem os outros. Rev APS, v.
14, n. 4, p. 464-471, 2011
PRADO, Ernande Valentin; SILVA, Adilson
Lopes; CUBAS, Marcia
Regina. Educação em saúde: utilizando rádio como estratégia. 1. ed. Curitiba :
Editora CRV, 2009.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine. Pequeno Príncipe.
São Paulo: Circulo do Livro, 1994.
WALDOW, Vera Regina. Bases e princípios do conhecimento e da
arte da Enfermagem. Petrópolis: Vozes, 2008.
[Ernande
Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]