“Certo dia existia uma pequena vila na beira de um rio.
Nesta vila as pessoas eram boas e a vida na vila era boa. Um dia um morador da
vila viu uma criança no rio. Ele pulou na água e foi até a criança para
salvá-la. Nos próximos dias mais e mais crianças apareceram descendo correnteza
abaixo. Com o tempo a vila organizou equipes de resgate para descer o rio e
salvar as crianças, lugares para aquecê-las e alimentá-las. Mas parecia que só
piorava e tinha muitas crianças descendo rio abaixo e a vila passou a se
contentar só com os que eles salvavam e o seu esquema de ajuda. E a vida da
vila seguiu assim. Até que um morador ao invés de pular no rio para salvar
decidiu subir o rio para descobrir quem (ou o que) que jogava as crianças rio
abaixo. Quando outro morador viu ele subindo o rio ele esbravejou: ‘Onde você
vai? Precisamos de todos aqui envolvidos para salvar essas crianças’ e o homem
respondeu ‘Vou descobrir o que está jogando elas no rio’. Alguns moradores da
vila não gostaram da ideia, falaram que ‘era muito arriscado’, e eles falaram ‘com
o número de crianças descendo rio abaixo precisamos de mais apoio aqui’”. (Manchada,
2013)
Estava em mais um dia cansativo de atendimentos.
Paciente atrás de paciente, história atrás de história, dias atrás de dias.
Porém, no primeiro paciente da manhã começo a conversar com a mãe. Paciente com
história de uma anomalia digestiva e que precisava para não precisar realizar
novamente uma cirurgia de uma alimentação adequada, rica em fibras e que fosse
garantir que ele defecasse com frequência. Na consulta acontecem todas essas
explicações e orientações e olho para a mãe e pergunto: “você tem como
conseguir comprar frutas?”. Ela balança timidamente a cabeça com um “não”. Abaixo
a caneta, a anamnese, e começamos a conversar.
História doída. Moram no interior, sem energia elétrica,
trabalham muito, ganham pouco. Muito amor no cuidado da criança, até leite com
achocolatado todo o dia eles dão para criança - a pequena transgressão que o
estreitamento financeiro permite. Mas frutas e verduras eles já tentaram plantar
várias vezes, mamão, cenoura, maça e tudo mais. Porém, ataques subsequentes de
formigas impedem a produção. “E ir para a cidade comprar fruta?”, nem pensar,
cidade só uma vez a cada duas semanas. Diz ela que a criança adora bananas,
compram um cacho uma vez a cada duas semanas para ele comer. Sem geladeira e
eletricidade é mais difícil armazenar, ela me explica. Este cacho de bananas é
a fruta, a fibra, o cuidado possível.
A criança não está bem, não está defecando tanto quanto
deveria. A mãe sabe e me diz resoluta: “A culpa é das formigas” e desata a
falar que vão destruir as formigas agora, que vão vencer as formigas - a
vontade de ser mais do que as formigas. E que depois vão plantar mamão, manga,
todas as frutas da fruteira. Olho para ela e me dá uma dor no peito, uma
vontade de chorar. Mas ela é forte e me consola: “Eu sei que tá difícil e que
ele tem que comer bem, nós faz o que pode”. O plano é exterminar as formigas e
até já descobriram onde o formigueiro fica.
Volto para conversar com o preceptor, “então a orientação
das frutas não vai dar muito certo...”. Optamos por uma medicação que ajude a
criança a defecar, retorno e acompanhamento – e tapamos o sol com uma peneira. Mas
o que a medicina pode fazer contra formigas?
É como a parábola do rio, as crianças aparecendo rio abaixo,
aqui são como as formigas. Mas a culpa não é das formigas. A culpa é a falta de
acesso a alimentação adequada, energia elétrica, saneamento básico, e tudo
mais, a culpa, meu caro, está muito além das formigas é uma culpa econômica,
política e social. É uma culpa da luta por direitos humanos e da falta de
acesso aos direitos básicos como alimentação de qualidade.
Porém, enquanto não conseguimos resolver as grandes culpas, aguardo o retorno e o desfecho das formigas.
Referências:
Manchada R.
The Upstream Doctors: Medical Innovators Track Sickness to Its Source. 38
ed.: TED Conferences; 2013. Diponível em: http://www.amazon.com/The-Upstream-Doctors-Innovators-Sickness-ebook/dp/B00D5WNXPE
Fonte da imagem: http://meioambiente.culturamix.com/natureza/a-relacao-das-formigas-com-os-seres-humanos
Voam abraços,
Mayara Floss