Bloc de Educação Popular em Saúde com foco em crônicas, contos e poesias. Reflete o dia a dia de trabalhadores do Sistema Único de Saúde e Saúde Pública e Coletiva.
(cotidiano, saúdes, vidas, poéticas, sensibilidades, ternuras, raivas, gritos)
- Doutora, preciso da alta..
- Mas agora? Ainda estamos iniciando o seu tratamento...
- Mas eu preciso dar alta... Não posso ficar baixada...
(... silêncio...)
- Posso perguntar o que aconteceu?
- Meu marido doutora, meu marido disse que chega desse negócio de hospital, estou com medo que minha filha fique sem roupas para usar...
(um suspiro)
... preciso voltar ... para lavar a roupa.
Em um desses dias de plantão uma paciente, entre tantas outras, em trabalho de parto de uma criança prematura e "usuária de crack". Sem pré-natal, sem documentos, sem familiar, sem acompanhante, quase sem roupa. Tudo acontece muito rápido não deram nem dez minutos. Ela após o parto ajoelha-se no chão para rezar pela filha que nasceu. Fica na sala de recuperação do parto chorando desconsolada. Eu indo e vindo com uns papéis decido entrar no quarto, colocando de lado meu turno de sono para conversar com ela. Toco no ombro e peço se ela quer conversar, ela vira-se, chora e diz: "é tudo culpa minha". Eu só escuto, a história, o filho perdido, o ex-marido, a vida que se costurava entre as lágrimas. História doida. Começamos a conversar e de repente a barriga dela "fala mais alto". Ela coloca a mão na barriga e confessa: "Não como há três dias, fui vender crack para conseguir comida e acabei usando" - respira fundo e diz - "é sempre assim". A copa já está fechada, estamos adentrando a madrugada e insisto para conseguirmos algo para ela comer, pergunto se posso dar um chocolate que eu tenho, a enfermeira dá de ombros com um "sim". Levo meu chocolate para ela, ela dá um pulo da cama, "Eu adoro chocolate, faz tanto tempo que não como um". Eu sorrio ela lê a embalagem: "Sem açúcar, sem leite, sem glúten" e ela diz para mim "essa coisa é porque quer emagrecer?" eu digo que "não" e rimos juntas com uma certa cumplicidade entre nós. Os olhos castanhos com um brilho verde ao comer o chocolate. Nós duas, tão mulheres, tão humanas, tão chocolate.
- Estou bem, só quero ir para casa, logo é natal e temos que ensaiar para o Natal.
- É mesmo D. L. ...
- Sim, eu canto no coral e ela também – apontando para a acompanhante.
- Quais músicas vocês cantam?
- Ah várias...
- Cantam noite feliz?
- Sim...
E começamos a cantar na enfermaria do hospital por volta das 21 horas um mês antes do Natal Noite Feliz. Ela estava sem levantar da cama há dias, com o oxigênio e começou a cantar em alto e bom som Noite Feliz.
Na enfermaria cheia, com os cinco pacientes em seus leitos, seus acompanhantes, todos cantaram Noite Feliz sorrindo, dona L. era a maestra da noite com sua voz rouca e afinada.
Quando terminamos eu estava com os olhos cheios d’água e ela bateu na minha bochecha com um sorriso e uma vibração contagiante, como quem diz: “ensaiei para o Natal”. A acompanhante dela saiu do quarto emocionada para me abraçar.
Quando fui visitá-la no dia seguinte ela estava em um sono tranquilo, seguiu assim pelos próximos três meses, até que se foi como um sopro e uma canção.
Quando eu era pequena e comecei a usar canetas na escola um
dos meus objetivos era chegar até o fim de uma caneta, terminar ela, daquelas
bic azul. Eu pensava que eu já teria escrito tanto quando terminasse uma caneta
que ia ser muito esperta. Mas no final das contas eu sempre perdia a dita
caneta antes de chegar no fim. Nas últimas semanas, brigo com as canetas que
terminam, uma por semana, nas minhas mãos.
Isso me faz pensar no que esqueceram de me contar sobre a
medicina – é mais tempo preenchendo papel do que com os pacientes. O pior:
esqueceu o carbono em baixo da folha: repete. Um dado errado: repete. Errou:
repete. No plantão às 4 horas da manhã, preencher papéis se torna muito mais
maçante e cheio de repetições. E talvez junto com a tinta da caneta, vá se construindo
um conhecimento, um exame, um dado, e o principal, uma história.
Hoje terminou uma caneta no começo de uma consulta. Escrevi
tanto que ela chegou ao fim. Isso me deu uma alegria ao segurar e olhar o
plástico transparente só com aquela bordinha azulada da caneta. Comecei a
procurar outra caneta, até que a paciente tirou uma caneta da bolsa: - Ó doutora
fica pra você, você escreve bastante -.
A evolução clínica foi sobre quadrinhos,. Mas nada de quadrinhos Marvel ou grandes quadrinhos de super
heróis. Foi Mickey, Tio Patinhas, Tex e Turma da Mônica. Entrei no quarto e vi
a revistinha do Mickey, prato cheio para conversa. No meio da anamnese que
parecia mais conversa de clube de gibi perguntava como ele estava.
O que você gosta mais de ler? - ele disse.
Eu gostava de Turma da Mônica, mas meu primo tinha Tex, também li
alguns.
Nossa eu adorava Tex! Bang bang tenho as edições antigas em
casa.
Tudo certo para engolir?
Tá bem melhor, depois dos caninhos tá bem melhor. Sabe que
eu acho as histórias antigas bem melhores? Esse último gibi que comprei tá bem
menos emocionante.
Depois de falar dos gibis acabamos completando uma página de
palavras cruzadas juntos.
Acho que aqui é “rinoceronte”.
Você é boa nisso.
E com está para ir aos pés?
Tá bem doutora agora
que estou comendo está melhor.
Deixa eu ver aqui acho que é “esverdeado”, isso!
Agora ficou difícil.
Posso examinar o senhor?
Claro. Você gosta mais de palavras cruzadas ou caça
palavras?
Palavras cruzadas.
Olha aqui (me apontando a revista) eu adoro também jogo dos
7 erros.
É muito bom. Respira
fundo e solta o ar pela boca.
Sempre vem pouco jogo dos 7 erros nas revistas, eu também
gosto.
Dormiu bem?
Sim, tudo tranquilo quero ir para casa, logo vai faltar
revista.
“Certo dia existia uma pequena vila na beira de um rio.
Nesta vila as pessoas eram boas e a vida na vila era boa. Um dia um morador da
vila viu uma criança no rio. Ele pulou na água e foi até a criança para
salvá-la. Nos próximos dias mais e mais crianças apareceram descendo correnteza
abaixo. Com o tempo a vila organizou equipes de resgate para descer o rio e
salvar as crianças, lugares para aquecê-las e alimentá-las. Mas parecia que só
piorava e tinha muitas crianças descendo rio abaixo e a vila passou a se
contentar só com os que eles salvavam e o seu esquema de ajuda. E a vida da
vila seguiu assim. Até que um morador ao invés de pular no rio para salvar
decidiu subir o rio para descobrir quem (ou o que) que jogava as crianças rio
abaixo. Quando outro morador viu ele subindo o rio ele esbravejou: ‘Onde você
vai? Precisamos de todos aqui envolvidos para salvar essas crianças’ e o homem
respondeu ‘Vou descobrir o que está jogando elas no rio’. Alguns moradores da
vila não gostaram da ideia, falaram que ‘era muito arriscado’, e eles falaram ‘com
o número de crianças descendo rio abaixo precisamos de mais apoio aqui’”. (Manchada,
2013)
Estava em mais um dia cansativo de atendimentos.
Paciente atrás de paciente, história atrás de história, dias atrás de dias.
Porém, no primeiro paciente da manhã começo a conversar com a mãe. Paciente com
história de uma anomalia digestiva e que precisava para não precisar realizar
novamente uma cirurgia de uma alimentação adequada, rica em fibras e que fosse
garantir que ele defecasse com frequência. Na consulta acontecem todas essas
explicações e orientações e olho para a mãe e pergunto: “você tem como
conseguir comprar frutas?”. Ela balança timidamente a cabeça com um “não”. Abaixo
a caneta, a anamnese, e começamos a conversar.
História doída. Moram no interior, sem energia elétrica,
trabalham muito, ganham pouco. Muito amor no cuidado da criança, até leite com
achocolatado todo o dia eles dão para criança - a pequena transgressão que o
estreitamento financeiro permite. Mas frutas e verduras eles já tentaram plantar
várias vezes, mamão, cenoura, maça e tudo mais. Porém, ataques subsequentes de
formigas impedem a produção. “E ir para a cidade comprar fruta?”, nem pensar,
cidade só uma vez a cada duas semanas. Diz ela que a criança adora bananas,
compram um cacho uma vez a cada duas semanas para ele comer. Sem geladeira e
eletricidade é mais difícil armazenar, ela me explica. Este cacho de bananas é
a fruta, a fibra, o cuidado possível.
A criança não está bem, não está defecando tanto quanto
deveria. A mãe sabe e me diz resoluta: “A culpa é das formigas” e desata a
falar que vão destruir as formigas agora, que vão vencer as formigas - a
vontade de ser mais do que as formigas. E que depois vão plantar mamão, manga,
todas as frutas da fruteira. Olho para ela e me dá uma dor no peito, uma
vontade de chorar. Mas ela é forte e me consola: “Eu sei que tá difícil e que
ele tem que comer bem, nós faz o que pode”. O plano é exterminar as formigas e
até já descobriram onde o formigueiro fica.
Volto para conversar com o preceptor, “então a orientação
das frutas não vai dar muito certo...”. Optamos por uma medicação que ajude a
criança a defecar, retorno e acompanhamento – e tapamos o sol com uma peneira. Mas
o que a medicina pode fazer contra formigas?
É como a parábola do rio, as crianças aparecendo rio abaixo,
aqui são como as formigas. Mas a culpa não é das formigas. A culpa é a falta de
acesso a alimentação adequada, energia elétrica, saneamento básico, e tudo
mais, a culpa, meu caro, está muito além das formigas é uma culpa econômica,
política e social. É uma culpa da luta por direitos humanos e da falta de
acesso aos direitos básicos como alimentação de qualidade.
Porém, enquanto não conseguimos resolver as grandes culpas, aguardo o retorno e o desfecho das formigas.
Eu é que sei, pergunte para quem deu. Todas as mulheres terminam com ina e todos os homens com
ino. Minha mãe quis assim.
Tá bem. Nunca procurou o significado?
Não, nunca procurei, mas agora estou curiosa!
Vou procurar e amanhã te digo!
Certo, vou ficar esperando.
E não é que o google não achava nenhum significado, procurei
com “c” com “s” e no masculino, nem terminando em ino. O que iria dizer para ela? Descobri um parente distante do nome que significava:
“carneiro”.
Cheguei no dia seguinte.
“E então, encontrou meu nome?”
Encontrei um significado meio bobo só.
O que é?
Significa carneiro. Mas eu queria dar um significado meu.
Ela sorri, e diz “carneiro”, gostei.
Eu digo, que bom.
Mas qual é o significado que você quer?
“Aquela que ilumina meus dias”
Ah venha cá menina, você que sempre alegra meus dias.
Ah se eu conseguisse resolver as depressões com dicionários
de nomes.