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Bergamotas e o cuidado |
Nos últimos tempos tive a oportunidade e o privilégio de como ser humano e médica vivenciar o nascer, o cuidar e o morrer em casa. Vivenciando a casa, a família e as suas possibilidades e potências como espaço de cuidado. A mesma humanidade que saiu das suas casas para as clínicas, unidades, hospitais entre outros, volta para dentro das suas casas, das suas comunidades.
A família que cuida do idoso até o último respirar, os pais que acariciam o filho jovem muito adoecido até a última contração do coração, a primeira mamada no parto feito na cama de casa, com as três gerações (avó, filha e neta) participando. Nascer a muitos olhos pode ser poético, a “celebração da vida”, mas morrer também pode ser esta celebração. Envelhecer é um sinal do tempo, apenas os privilegiados em viver podem envelhecer. E a cada dia o cuidar no núcleo da casa, familiar e comunitário faz mais sentido. É um privilégio muitas vezes dentro da carga de trabalho poder respirar nestes ambientes.
Participei do cuidado de um senhor em uma casa muito simples, não tinha chão, algumas janelas não existiam (só os cortes no concreto), quando chegamos a familiar muito simples não tinha café para oferecer – um clássico mineiro – mas fez o que pode espremendo algumas tangerinas (ou bergamotas). A maior alegria foi a equipe tomar a sua limonada e nós podermos fazer o cuidado em um quartinho improvisado até o último minuto, foram semanas cuidando da família e olhando pelos cortes do concreto a comunidade e a visão privilegiada do cemitério, segundo ela, sabia melhor do que ninguém quem vivia e que morria na comunidade.
Nascer também, após finalmente a dequitação (saída da placenta) poder tomar um chimarrão, cobrir a parturiente, levar café da manhã na cama. Saborear a primeira mamada, a primeira troca de roupas, o primeiro “xixi”, o primeiro sono. Assim como nascer em casa é um sinal de empoderamento - cuidar e morrer também. Nunca esquecerei quando estava sentada na mesa da cozinha fazendo o atestado de óbito, também triste, respirando a partida e vendo (mais ouvindo) o choro da família de longe que uma senhora, a vizinha percebeu que eu estava lá triste e rapidamente serviu um copo de refrigerante de laranja para mim: “toma doutora”. Era o que tinha e o que ela sentia que poderia me cuidar.
Outro dia, um senhor que já não podia viver na sua casa na zona rural pois os filhos tinham que trabalhar na cidade, acabou mudando-se para a cidade e estava morando com um deles. Eu, no meio do caminho, de uma outra visita domiciliar passei na frente da sua casa e colhi as bergamotas da bergamoteira do quintal. A grande vantagem de trabalhar com isso e na Atenção Primária a Saúde é que os cachorros já te conhecem, apesar de sempre ser um risco levar uma mordida no interior rural. Levei as bergamotas para ele na cidade, a consulta pouco o interessou, já cansado, mas as bergamotas essas eu vi ele rapidamente pegar uma bacia para acomodar as bergamotas. O cuidado em casa carrega esse senso de comunidade, de quintais e bergamoteiras. Bergamotas que levei também como presente para a mãe ainda grávida na volta do trabalho e que comi depois que o parto terminou.
A casa em si não é o tocante, por definição “um espaço destinado a moradia”, mas o humano da casa que cuida, alimenta, acaricia e divide bergamotas. Esse sim faz o nascer, o viver, o cuidar e o morrer em casa ter sentido.
*Bergamota: conhecida em outras regiões como tangerina ou mixirica.
Abraços que pousam,
Mayara Floss