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Praia de Tambaú. Ernande, 2016. |
Ernande Valentin do
Prado
Ontem à noite não foi
diferente.
Agora, oito da manhã,
sinto uma brisa suave e o calor do sol no rosto, empurrada pelo mar na praia de
Tambaú. Ele sorri, diante do vendedor que oferece tatuagens:
- Faz uma tatuagem de
rena na coxa esquerda, vai ficar bonita, amor!
Do lado de nosso
guarda-sol, tem um casal de idosos com uma criança de sete anos, deve ser neto
deles. Com a criança já fez festinha, ofereceu sorvete, brincou de bola e até fez
um castelinho de areia.
- Vocês têm filhos,
disse a senhora de cabelos brancos, como algodão.
- Vamos ter logo, não é
amor?
Respondeu ele passando
a mão pela minha coxa, de modo afetuoso e com aquele olhar.
- Filhos são uma
benção, disse a senhora idosa e emendou contanto uma história sobre um casal que
o homem não queria filhos, mas que depois de vinte anos de casamento, a mulher descobriu
que o marido tinha três filhos com uma amante...
Em minha frente as
ondas do mar esmeralda da orla de João Pessoa, vão e vem, incessantemente,
lembrando que a vida sempre continua, sempre vai e vem, as vezes mais forte, as
vezes mais fraca, mas nunca para.
Já tem três anos que
vivemos juntos, desde aquela tardezinha de sábado na igreja da consolação. Eu
tinha 22 anos, até então nunca havia pensado em me casar, mas quando ele fez o
pedido, não tive como dizer não. Mamãe ficou radiante de alegria:
- Vai ser feliz, minha
filha, disse ela beijando minha face esquerda.
Papai deixou escorrer
uma lagrima pelo canto do olho. Não estava feliz, disse que era muito cedo para
casamento, que o melhor era namorar mais tempo, conhecer melhor.
Não disse nada, quando
entregou-me no altar. Engoliu seco, tossiu, engasgado, rolou uma lágrima. A
face ficou pálida, como se tivesse perdido todo sangue do corpo.
Fazem dois meses que
ele não me bate...
A primeira vez que foi
violento comigo foi durante o noivado, seis meses depois, já com o casamento
marcado, igreja reservada, convite na gráfica. Antes sempre tinha sido muito cuidadoso,
carinhoso, dedicado, mostrava todo seu amor e dedicação, um homem perfeito.
Na primeira vez foi um
tapa na cara porque olhei para o lado, enquanto ele falava alguma coisa.
- Não olhe para o lado,
Márcia, enquanto estou falando contigo.
Fiquei apavorada, sai
do bar onde estávamos, andei sozinha três quarteirões, sem conseguir pegar um
taxi. Ele foi atrás e eu entrei no carro. Fomos para casa, ele prometeu nunca
mais fazer isso, disse que estava muito transtornado com problemas no trabalho.
Cobriu-me de carinho e atenção, presentes, visitava-me em horas inusitadas,
levava flores. Eu me derreti, queria acreditar que foi só um pesadelo, um erro
que nunca mais se repetiria. Não contei nada para ninguém, tive vergonha.
Na outra vez que ele me
bateu foi na saída de uma festa. Eu havia dançado uma música com um amigo dele,
Já estávamos casados há dois meses. Chorei, fiquei magoada, desesperada, mas
não pude admitir que estava errada depois de só sessenta dias de casamento.
Mais uma vez perdoei e ele virou o homem mais dedicado do mundo por seis meses.
Foi uma felicidade intensa e quis acreditar que o ciúmes dele era prova do amor
intenso que sentia por mim. Pensei do fundo da alma que o erro era meu, que eu
o provoquei dançando com o amigo e merecia aquilo.
A terceira vez que ele
me bateu, foi porque cheguei atrasada do trabalho. Era meu aniversário e as
colegas levaram um bolo para comemorar depois do experiente. Ele ficou
transtornado, gritava como um louco que eu não tinha consideração com ele, que
devia ter um amante no trabalho. Tentei trancar-me no quarto, mas ele derrubou
a porta, bateu-me de cinta e me estuprou pela primeira vez.
Depois disso obrigou-me
a abandonar o emprego, não falar mais com minhas colegas, a ficar dentro de
casa. Não podia ir ao cinema, andar sozinha na rua, não podia fazer nada sem a
permissão dele, nem ir à casa de meus pais.
Passou a não mais se
justificar, nem tentava explicar o demônio que se apossava dele. Bateu-me a
semana toda e quanto não batia me ofendia com xingamentos, com ofensas, dizia
que eu não sabia nem cozinhar, que me vestia como puta, que agora, sem emprego,
sem ele morreria de fome. Fazia ameaças todo tempo, dizia que se eu contasse para
alguém, que me mataria, que mataria meu pai, minha mãe e depois sumiria no
mundo.
Não contei nada para
ninguém...
Fiquei quieta, esperando
acordar e descobrir que aquilo era só um pesadelo, sem acreditar no que estava
acontecendo. Ficava em casa a maior parte do tempo, a noite, apavorada, deixa
ele usar meu corpo como queria. Chorava quando ele dormia, por que nem chorar na
frente dele eu podia.
Para os outros eles
ainda era a mesma pessoa, mas em casa era cada vez mais agressivo, qualquer
coisa gritava, tratava-me muito mal, chamava de relaxada, porque passei a não
ter mais coragem nem de usar batom, por um brinco, um vestido mais curto. Emagreci
muito, comecei a ter surtos nervosos, a tomar remédios controlados para
depressão, para dormir, para acordar, para ficar viva.
As vezes visitava minha
família, mas tinha vergonha e não contava nada do que acontecia comigo, ria,
sorria, gargalhava com eles, mas por dentro me sentia suja, nojenta, a mulher
mais desgraçada do mundo.
Uma vez meu pai
perguntou-me por que parecia tão triste, por que os visitava tão pouco.
- Não é tristeza, meu pai,
é canseira, e com esse calor todo não dormi bem ontem. Mas tá tudo bem.
Ele não pareceu
acreditar, mas não insistiu. Eu sorri, levantei-me, fui ao banheiro, lavei o
rosto, arrumei uma desculpa para ir embora.
Tinha vontade morrer.
Por duas vezes, depois de estuprada, tentei suicídio tomando medicações
tarja-preta. Nas duas vezes ele me levou ao pronto socorro, fizeram lavagem
estomacal e voltei a vida sentindo-me incapaz até de tirar a própria vida. Na cama, ainda tonta, amarrada, escutei ele
falando para enfermeira que me amava muito, que não sabia o que fazer para me
curar, que já era a segunda vez que eu tentava me matar, mas que com fé em Deus
essa loucura ia passar.
- E essas marcas roxas
que ela tem no corpo?
- Às vezes ela se jogo
no chão, se machuca de propósito.
- E ainda é tão jovem,
tão bonita. Disse a enfermeira com aquela cara piedosa que as enfermeiras fazem
diante das tragédias dos outros.
Quando ela saiu do
quarto, baixinho só para eu ouvir, ele disse:
- Nem se matar direito
você consegue, meu amor. E não adianta, você é minha, só vai morrer se eu
deixar.
Virei a cabeça para o
lado, sem ânimo para resistir, achando que ele estava certo. Ele puxou minha
cabeça de volta, de modo que ficássemos cara a cara:
- Não olhe para o lado,
eu ainda estou falando, disse ele sorrindo.
Depois beijou de leve
meus lábios. Senti vontade de gritar, mas não conseguia.
Não consigo lembrar
quanto tempo faz que não venho à praia, que não sinto o sol aquecendo minha
face. As ondas estão molhando meus pés. Ao meu lado, a senhora de cabeça branca
continua contanto a história do casal sem filhos:
- E o que essa mulher
fez, quando descobriu que o marido tinha filhos com outra? Perguntou ele.
- A mulher ficou louca,
passou o dia amolando um facão e a noite, quando ele dormiu, matou o safado na
cama...
- Vou entrar na água,
você vem comigo ou posso ir só?
- Vá, mas não demora,
vou terminar de ouvir essa história.
Sinto a água pesada do
mar entrando em contato com minha pele, lavando meu cabelo, minhas manchas
roxas, salgando minha boca, ardendo em meus olhos, lavando minha alma. Poderia
só caminhar rumo ao horizonte, me afundar, mas para que? Agora eu sei o que
fazer: ele nunca mais vai por a mão em mim.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10
às 6tas-feiras]
COLEÇÃO: ALÉM DA ARREBENTAÇÃO
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