29 maio 2013

Rendamar (Parte 2)




Vivia em uma casa antiga de família perto da praça com uma cunhada viúva, Deolinda. Caçula de 10 irmãos, sendo nove homens, Ritinha nunca se casou e nem se soube que tenha tido um namorado. Passou parte da vida se ocupando da mãe, dona Alzira, que tinha reumatismo. Dona Alzira também fazia crochê pra fora com perfeição, mas depois de um tempo de doença, não conseguia dar conta das encomendas. Foi aí que a Ritinha assumiu esse ofício ensinado pela mãe e passou, muito cedo, a ter obrigações, prazos e encomendas. A primeira flor que fez era simples e sem jeito, azulzinha e, como não combinava com nada, acabou sendo esquecida no fundo de uma caixa de sapatos. Pouco tempo sobrou para o estudo e a diversão maior era ver a banda no coreto da praça. Até porque dava pra fazer crochê ao mesmo tempo em que ouvia música. O Aderbal, dizem, foi o que a fez erguer os olhos pequenos da agulha e da linha branca. Ele tocava tuba e era bem maior que a Ritinha. Ele se empolava todo com o instrumento, tentando chamar a atenção. Ela seguia com os olhos entre um ponto e outro. Mas Ritinha via tudo tão distante e tão diferente dela. Tinha receio daquele som tão alto, daquele homem tão corpulento com modos tão bruscos. Ela sempre na pequeneza das suas flores, do talco que espalhava no rosto, com cuidado... Eram mundos muito distantes e não tardou para Ritinha desistir dessa aventura tão grande.
O Aderbal casou com a Emília e teve seis filhos. Ritinha fez os enfeites tanto do enxoval da Emília quanto dos filhos. Quando Raul, o mais velho, morreu de pneumonia, nem a Emília e nem o Aderbal se conformaram. Acabaram se mudando de Água Santa e ninguém mais soube deles e nem dos filhos. Ninguém a não ser a Ritinha, que sabia do paradeiro de todo mundo, até do Valter que tinha fugido depois do crime contra o irmão. É que mesmo de longe, as pessoas ainda queriam as flores dela. Tinham saudade do capricho e do perfume de cada pedacinho de linha. Tinham lembranças da meninice quando viam os finos pontinhos de linha. Era como uma linha do tempo, de muitos tempos e de muitas histórias. Assim, quando a tristeza ficou menos triste, dizem, a Emília encomendou uma cortina nova toda florida. Queria que a janela do seu quarto ficasse mais bela e seu olhar mais condescendente com as coisas do mundo e de Deus. Esse Deus estranho que nos tira as pessoas da nossa vista e do nosso toque e deixa só essa tal de saudade que vem e vai, e vive para além de todas as lágrimas choradas.
E por essas coisas de Deus que ninguém entende a razão, a Ritinha caiu doente um dia, uma noite e mais um dia ainda. Não se sabia quando isso tinha acontecido na história dela. Água Santa, que não tinha uma só casa que não tivesse uma flor de Ritinha, ficou triste e preocupada. Era só esse o assunto na venda, na padaria, na missa, na praça. O sobrinho, Genival, filho da Deolinda veio da capital para ver a tia e tomar providências. Uma semana se passava e nada da Ritinha caminhar pelas ruas, arrastando novelos de linhas coloridas. Depois de 12 dias e 12 noites, ela finalmente apareceu na janela de casa. Um pouco mais pálida, mas já com linha e agulha na mão. No dia seguinte da aparição, o carro de Genival volta para a capital com a Ritinha no banco de trás. Estaria indo pra capital? Logo ela que o mais que tinha saído era em Brejo Doce, cidade ao lado só separada de Água Santa por uma ponte. Deolinda explicou que Ritinha tinha visto a morte de perto e que, de toda a agonia que sofrera, ficava um desejo de pequena, um sonho de sempre: ver o mar. E Genival, o sobrinho e afilhado, queria satisfazer aquele capricho de quem tão pouco tinha pedido da vida.
Genival levou a tia em uma parte mais tranquila da praia. Ritinha caminhava devagarinho pela areia. Pés descalços, via pouco e escutava até demais. As ondas, as gaivotas, o vento. E como ventava diferente! Os cabelos de algodão voavam com as gaivotas, perdidos! Como nas ventanias de abril, Ritinha descobriu um corredor de calmaria e ali permaneceu sem se abalar, por um tempinho. Ergueu os olhos em direção ao horizonte. Passou os dedos cheios de pequenos calos na água e pôs nos lábios para saber o sabor, se era salgado mesmo. Acariciava o próprio peito como que consolando de uma dor, de um mal ou de um bem perdido. Deixava a mão pousada tranquila como quem canta uma música que fala de verdades e amores, e cantou mesmo, cantou uma ciranda, bem baixinho. Cantiga de menina, de renda e mar. Cantando, Ritinha caminhou mais até que a água lhe molhasse os pés. E primeiro veio a espuma, depois a água grossa de areia e sal, morna de sol. Ergueu a saia e a renda da anágua passou pela espuma da onda. Ela achou graça da travessura, da falta de respeito do mar...
Ritinha catou as conchas mais coloridas e fez desenhos na areia. Brincou com as gaivotas. Dançou com o vento e depois que o assombro passou, a canção terminou e ela riu e chorou ao mesmo tempo. Sossegada do seu desejo, Ritinha suspirou como há muito não suspirava e pediu para voltar pra casa. Olhou de novo para a imensidão furiosa, verde-azul sem tempo e sem idade e acenou, se despedindo como se faz com velhos amigos. No caminho, tirou a agulha e a linha e começou sua última renda, a que nunca terminaria, renda sem horizonte, renda espuma do mar que começava com uma única florzinha azul sem jeito, sem dó, que combinava com pouca coisa nessa vida que vida só tem que combinar mesmo é com a hora que passa e a hora que fica, não é mesmo?

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