01 junho 2013

Viagem às terras geladas (de corações quentes)

Ernande Valentin do Prado

Tudo começou há bastante tempo. Foi bem planejado. Intenção: conhecer o trabalho da Liga de Educação em Saúde da FURGS. Amélia garantiu que faziam um trabalho excepcional, diferenciado, fazendo Educação Popular do modo como acreditávamos.
Uma viagem de sete dias, para um terra gelada (Rio Grande, no extremo sul do Brasil) e mais Pelotas. Em principio não me agradava muito, apesar das referências. Mas lá fui por confiança em Amélia e Julio, outro conspirador (do bem). Horas de viagem entre Paripiranga e Aracaju, outras horas até Porto Alegre, pensando na blusa que esqueci em casa. E mais tempo no ônibus entre Porto Alegre e Rio Grande. Mas cheguei.
 Na rodoviária um dos “meninos” me esperava (Arnildo), e tudo começou a mudar.

NO LAR DOS IDOSOS
Da rodoviária, Arnildo levou-me para o lar dos idosos, que eles chamam de Asilo lá no sul. Um grupo de estudantes já esperava. Encontramo-nos no portaria, onde estavam sentados com as pessoas, conversando sem compromisso. Isso já me impressionou muito.
“Como assim, estudantes de saúde conversando sem compromisso, sem ensinar nada, sem dizer como o outro deve viver sua dor ou sua saúde?” Isso já não é normal.
Fiquei na espreita, esperando as mesmas coisas de sempre, as mesmas conversas, a mesma destilação de teorias, de citações de Paulo Freire. Pensei. “Daqui a pouco começa”.
Aí, entramos. Fomos para uma sala de reunião (se bem que essa não é a palavra certa). Os “meninos” e as “meninas”, uns oito ou dez (não contei) saíram pelo prédio, enorme, convidando as pessoas para conversar. Não abrigaram ninguém a ir, não impuseram com sua autoridade de estudantes de saúde que têm coisas novas para ensinar. Foi quem quis ir. Reuniram-se umas dez pessoas. Entre eles apenas uma mulher. Entre os estudantes apenas dois homens.
Pensei: “é agora que vão começar a dar ordens, ensinar as regras e a importância de respeitá-las para o bem viver”. Mas começou a demorar. Os estudantes foram se apresentando na ordem em que estavam e sentavam entre os moradores do lar. Os morados também falavam, contavam como eram, de onde vieram, seus gostos. Percebia-se que não era a primeira vez que faziam isso, que contavam suas vidas.
Os meninos e meninas, jovens entre o primeiro e o quarto ano do curso de Medicina, ainda tiveram a intenção de organizar uma ordem, um sequência lógica de falas, mas em instantes perceberam que não era isso que as pessoas precisavam ou queriam.
Entendi que desejavam mostrar um trabalho organizado para o visitante da Bahia, mas não se incomodaram quando os idosos quebraram com a ordem, a sequência e as suas intenções.  Alguns entravam e saiam para fumar (e ninguém falava nada). Ficamos por ali ouvindo as histórias de anos de vida vivida, sem ninguém julgar se foram bem ou mal vividas, conversando, permitindo-se ser tocado por aquelas vidas, sem condenar, sem impor. Era um sonho. Estudantes de saúde não se impondo, não prescrevendo.
Já estava maravilhado, mas mesmo assim pensei:”alguém vai falar do cigarro daquela senhora”. Mas fomos embora para próxima atividade sem ninguém falar nada.

A LIGA DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE

Saímos do lar dos idosos e fomos para o prédio da Fundação Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FURGS). Nele, fui informado, aconteceria a reunião da Liga de Educação em Saúde. Umas 15 pessoas reunidas e desculparam-se por ter ido pouca gente, pois estão em período de provas. Alguns já de férias, e viajaram para casa.
Como assim, disse eu espantado, tem mais gente do que isso?
Tem, disseram, hoje só veio metade.
Cada um se apresentou, contou sua história, como foi parar nesta Liga, como a Liga foi pensada e posta em prática. Não vou aqui discorrer sobre isso, pois não tenho competência para lembrar de tudo. Este é um texto sobre meu espanto e apenas isto. Essa história, da Liga, cabe à outra e outros contar. Mas uma coisa devo dizer, ninguém, como no lar dos idosos, obedeceu regras ou ordens de falas estruturadas e certinhas, como num “teatro” de Educação Popular em Saúde.
Primeiro espanto – a Liga nasceu da iniciativa dos próprios estudantes. Não foi da cabeça de um professor esquisito (no bom sentido). Estudantes inconformados como o modo de vivenciar a saúde no curso de Medicina tomaram a iniciativa de reunir outras pessoas para pensar saídas e soluções. Poderiam ter saído do curso, mas acreditaram que existe algo mais do que o modo hegemônico de fazer. Apostaram e outros foram se juntando. Bonito demais um depoimento, que não tenho certeza de quem e nem se foi exatamente assim, mas é a ideia: “eu vi na fala deles uma chance de entender o tipo de médica que eu queria ser.”
Muito bonito e essa fala não veio de um formando, mas de uma primeiranista ao ouvir a fala de um secundanista.
Depoimentos como esse foram se somando e fui entendendo mais e mais e mais. Inclusive o professor, que os acompanha uma vez a cada 15 dias, deu seu depoimento, riquíssimo, contando sua trajetória também inusitada até chegar à Liga.
Segundo espanto – só tinha estudante de Medicina na sala. Quando acontece uma reunião de pessoas para falar de Educação em Saúde é normal ser uma iniciativa multidisciplinar. Mas esta não era. E não era por um motivo muito simples: não conseguiram ainda construir essa possibilidade, não por desejo de estarem sós, mas por dificuldades em dialogar, em ser aceito pelos outros cursos. Entendo perfeitamente isso. A gente (que não é médico ou médica) fica sempre com os dois pés atrás com médico ou estudantes de medicina. É como se tivessem o tempo todo que provar que estão bem intencionados.
Eu mesmo devo confessar que se soubesse que iria para um encontro apenas com estudantes de medicina pensaria mais de uma vez antes de aceitar. Mas que bom que fui engando, pois assim pude desfazer (e desfazer é mais difícil que fazer e muitas vezes mais importante) uma série de conceitos que fui desenvolvendo em minha vida sobre o ser médico e médica. Há vida na medicina. Sempre soube disso, mas não conseguia encontra nada além de exceções. Para mim a regra era sempre aquele profissional especialista em doenças que não via as pessoas.
Na verdade, isso é cada vez mais verdade para todos os profissionais de saúde e não exatamente para médicos. Mas algo esta mudando e esse grupo é um exemplo do que vem por aí.

O FIM
Foi uma visita de descobertas. Descobri paisagens lindas, frio que não é exatamente insuportável, afetos gratuitos que vivem por anos submersos até que emergem.
Conheci gente vivenciando a Educação Popular em Saúde e a construção cotidiana do SUS sem precisar de palco ou estreias monumentais em teatros municipais regrados a dinheiro sem dono.
Ainda existe vida, mesmo que por baixo de camadas cada vez maiores de cinzas.

Obrigado.

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