23 julho 2013

A vida e o viver - ou morrer - faz parte da vida



Ernande Valentin do Prado


Seu Agenor, (vamos chamá-lo assim), estava vivendo seus últimos dias neste plano. Um câncer de laringe há mais ou menos oitos anos. Porém o diagnóstico só foi feito há pouco mais de seis meses. Até então “era um problema de tireoide”.
Seu Agenor morava a mais ou menos cinco minutos de minha casa e um dia fui chamado para fazer uma avaliação de sua situação. Segundo a família, ele estava com a respiração estranha.
Fui até lá. Deparei-me com toda família (enorme, cinco ou seis filhos, netos, noras e genros). A voz apenas um fiapo, mas cumprimentou-me com toda elegância de outrora. Seu Agenor era uma pessoa muito ativa antes de adoecer e mesmo depois, enquanto ainda aguentava, manteve-se digno e dono de seu destino. Lembro-me dele pela cidade, em sua casa, na feira, na roça. Como era falante, imponente em suas opiniões, como recebia bem os amigos, como era simpático e atencioso.
Logo no início de sua doença, estive em sua casa. Foi na semana em que começou a usar sonda para alimentação. Mesmo assim, fez questão de receber os vizinhos na sala.  E eram muitos, muitos vizinhos estiveram naquela casa durante o fim de semana. E, mesmo deitado em uma cama na sala, comandava a família e os afazeres em torno da hospitalidade. Para ele era uma questão de respeito aos vizinhos recebê-los e deixar claro: “ainda estou aqui.”
Seu Agenor, nesta manhã, estava bem, apesar de tudo. Pulso regular, respiração tranquila, pressão arterial dentro da normalidade. Pulmão sem roncos ou chiados. Apenas um pouco hipotérmico.
Alguns minutos após minha avaliação, chegaram outros dois enfermeiros na casa. Não conheciam seu Agenor, nem a família (não sei de onde vieram ou quem os chamou). Entraram correndo, como se houvesse uma emergência. Foram direto para o quarto e, só depois de avaliar o “paciente”, perceberam as pessoas ali em volta.
Fiquei impressionado com a capacidade clínica dos dois (fiquei até com inveja). Em poucos minutos fizeram uma série de diagnósticos de enfermagem e já estavam ditando para família o que fazer, como fazer e porque fazer.
Um dos filhos anotava o que eles diziam:
Caixa de luva, luva estéril, ampolas de KCL, glicose, glicosímetro, soro fisiológico, Ringer Lactato e por ai foram.
Distrai-me com alguma coisa e, quando percebi, já estavam ditando o necessário para montar uma UTI no quarto. Falavam em ampolas de adrenalina, atropina, ambu e cilindro de oxigênio: “caso ocorra uma parada, temos que estar preparados”.
Geralmente não consigo ficar de fora da conversa, seja de quem for, mas tinha prometido a mim mesmo não interferir. Porém, quando falavam em por um avental hospitalar em seu Agenor, para facilitar o “manejo”, não consegui mais me conter. E disse:
- Se por acaso houver uma parada vocês estão pensando em reanimar?
- Claro, temos que fazer todas as manobras.
- Mas será que é isso que seu Agenor quer? Será que é isso que a família quer?
- Meu pensamento é fazer tudo que estiver ao nosso alcance.
- Entendo perfeitamente, mas será que isso é o melhor a fazer? Reanima-se uma pessoa para viver mais uma semana ou duas? Não é mais digno deixar a vida seguir seu curso?
- Enquanto há vida há esperança.
- Temos que encarar os fatos: não vamos conseguir curar seu Agenor. A situação dele é muito séria. Apenas um milagre pode salvar sua vida. Será que fazer tudo que estão propondo não vai apenas prolongar o sofrimento dele e da família?
-  Nossa intenção é melhorar as condições de Seu Agenor, hidratar, fazer ele ganhar massa muscular para continuar o tratamento.
- Entendo o que estão dizendo e não vejo nada de errado na intenção de vocês. Acho até que estão certos, mas volto a questionar: não será melhor deixar seu Agenor morrer com dignidade? Será digno prolongar a vida dele para além de um sofrimento aceitável?
Poderia ter tido muito mais, como por exemplo: será que é mesmo necessário por um avental em Seu Agenor? Será que ele não iria preferir ficar em um quarto com cara de quarto e não de UTI? Será que é mesmo necessário passar sonda vesical para fazer controle hídrico? Será que é melhor perguntar a ele o que prefere?
Os profissionais de saúde chamaram para si a responsabilidade de decidir o que é bom e ruim para as pessoas. Já faz tempo que estão prolongando a vida das pessoas de uma forma absurda como se a morte fosse o fracasso do cuidado, como se fosse um fracasso pessoal e, por outro lado, manter pessoas “pseudovivas”, ligadas em tubos de silicone e máquinas, demonstrasse competência e conhecimento.
Há meu ver o fracasso dos profissionais de saúde está em não conseguir fazer diagnósticos em tempo. E essa dificuldade não é técnica, na maior parte das vezes, mas humana. A história de seu Agenor mostra que o problema foi falta de escuta, atendimentos apressados e prepotência demais para ouvir a opinião do sujeito que demanda cuidado. O fracasso dos profissionais de saúde está justamente em não conseguir prevenir as doenças, em não conseguir promover saúde, dignidade e cidadania. O fracasso está, por último, em não admitir que muitas vezes o melhor é deixar a vida seguir seu curso na hora certa. É possível morrer com dignidade. Cuidar pressupõe reconhecer que essa hora vai chegar e ajudar a pessoa e a família a aceitar e fazer a passagem da maneira menos difícil possível. Será tão difícil admitir que morrer faz parte da vida?
Ouvir, escutar, considerar a opinião e as vontades do outro é sempre possível, mesmo numa hora urgente como esta, quando parece que o tempo vai se esgotar, ainda é possível parar e se questionar: a decisão de prolongar a vida é nossa?
Antes de morrer seu Agenor deixou descrito quem, como e quais seriam os recursos empregados em seu velório e enterro. Morreu não porque quis, mas fez tudo da forma como pode, sem desistir.

Saudades, seu Agenor.

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