Ernande Valentin do Prado
Seu Agenor, (vamos chamá-lo assim), estava vivendo seus últimos dias neste plano. Um câncer de laringe há mais ou menos oitos anos. Porém o diagnóstico só foi feito há pouco mais de seis meses. Até então “era um problema de tireoide”.
Seu Agenor
morava a mais ou menos cinco minutos de minha casa e um dia fui chamado para
fazer uma avaliação de sua situação. Segundo a família, ele estava com a
respiração estranha.
Fui até lá.
Deparei-me com toda família (enorme, cinco ou seis filhos, netos, noras e
genros). A voz apenas um fiapo, mas cumprimentou-me com toda elegância de
outrora. Seu Agenor era uma pessoa muito ativa antes de adoecer e mesmo depois,
enquanto ainda aguentava, manteve-se digno e dono de seu destino. Lembro-me
dele pela cidade, em sua casa, na feira, na roça. Como era falante, imponente
em suas opiniões, como recebia bem os amigos, como era simpático e atencioso.
Logo no início
de sua doença, estive em sua casa. Foi na semana em que começou a usar sonda
para alimentação. Mesmo assim, fez questão de receber os vizinhos na sala. E eram muitos, muitos vizinhos estiveram naquela
casa durante o fim de semana. E, mesmo deitado em uma cama na sala, comandava a
família e os afazeres em torno da hospitalidade. Para ele era uma questão de
respeito aos vizinhos recebê-los e deixar claro: “ainda estou aqui.”
Seu Agenor,
nesta manhã, estava bem, apesar de tudo. Pulso regular, respiração tranquila,
pressão arterial dentro da normalidade. Pulmão sem roncos ou chiados. Apenas um
pouco hipotérmico.
Alguns minutos
após minha avaliação, chegaram outros dois enfermeiros na casa. Não conheciam
seu Agenor, nem a família (não sei de onde vieram ou quem os chamou). Entraram
correndo, como se houvesse uma emergência. Foram direto para o quarto e, só
depois de avaliar o “paciente”, perceberam as pessoas ali em volta.
Fiquei
impressionado com a capacidade clínica dos dois (fiquei até com inveja). Em
poucos minutos fizeram uma série de diagnósticos de enfermagem e já estavam
ditando para família o que fazer, como fazer e porque fazer.
Um dos filhos
anotava o que eles diziam:
Caixa de luva,
luva estéril, ampolas de KCL, glicose, glicosímetro, soro fisiológico, Ringer
Lactato e por ai foram.
Distrai-me com
alguma coisa e, quando percebi, já estavam ditando o necessário para montar uma
UTI no quarto. Falavam em ampolas de adrenalina, atropina, ambu e cilindro de
oxigênio: “caso ocorra uma parada, temos que estar preparados”.
Geralmente não
consigo ficar de fora da conversa, seja de quem for, mas tinha prometido a mim
mesmo não interferir. Porém, quando falavam em por um avental hospitalar em seu
Agenor, para facilitar o “manejo”, não consegui mais me conter. E disse:
- Se por acaso
houver uma parada vocês estão pensando em reanimar?
- Claro, temos
que fazer todas as manobras.
- Mas será que é
isso que seu Agenor quer? Será que é isso que a família quer?
- Meu pensamento
é fazer tudo que estiver ao nosso alcance.
- Entendo
perfeitamente, mas será que isso é o melhor a fazer? Reanima-se uma pessoa para
viver mais uma semana ou duas? Não é mais digno deixar a vida seguir seu curso?
- Enquanto há
vida há esperança.
- Temos que
encarar os fatos: não vamos conseguir curar seu Agenor. A situação dele é muito
séria. Apenas um milagre pode salvar sua vida. Será que fazer tudo que estão
propondo não vai apenas prolongar o sofrimento dele e da família?
- Nossa intenção é melhorar as condições de Seu
Agenor, hidratar, fazer ele ganhar massa muscular para continuar o tratamento.
- Entendo o que
estão dizendo e não vejo nada de errado na intenção de vocês. Acho até que
estão certos, mas volto a questionar: não será melhor deixar seu Agenor morrer
com dignidade? Será digno prolongar a vida dele para além de um sofrimento
aceitável?
Poderia ter tido
muito mais, como por exemplo: será que é mesmo necessário por um avental em Seu
Agenor? Será que ele não iria preferir ficar em um quarto com cara de quarto e
não de UTI? Será que é mesmo necessário passar sonda vesical para fazer
controle hídrico? Será que é melhor perguntar a ele o que prefere?
Os profissionais
de saúde chamaram para si a responsabilidade de decidir o que é bom e ruim para
as pessoas. Já faz tempo que estão prolongando a vida das pessoas de uma forma
absurda como se a morte fosse o fracasso do cuidado, como se fosse um fracasso
pessoal e, por outro lado, manter pessoas “pseudovivas”, ligadas em tubos de silicone
e máquinas, demonstrasse competência e conhecimento.
Há meu ver o
fracasso dos profissionais de saúde está em não conseguir fazer diagnósticos em
tempo. E essa dificuldade não é técnica, na maior parte das vezes, mas humana.
A história de seu Agenor mostra que o problema foi falta de escuta,
atendimentos apressados e prepotência demais para ouvir a opinião do sujeito
que demanda cuidado. O fracasso dos profissionais de saúde está justamente em
não conseguir prevenir as doenças, em não conseguir promover saúde, dignidade e
cidadania. O fracasso está, por último, em não admitir que muitas vezes o
melhor é deixar a vida seguir seu curso na hora certa. É possível morrer com
dignidade. Cuidar pressupõe reconhecer que essa hora vai chegar e ajudar a
pessoa e a família a aceitar e fazer a passagem da maneira menos difícil
possível. Será tão difícil admitir que morrer faz parte da vida?
Ouvir, escutar,
considerar a opinião e as vontades do outro é sempre possível, mesmo numa hora
urgente como esta, quando parece que o tempo vai se esgotar, ainda é possível parar
e se questionar: a decisão de prolongar a vida é nossa?
Antes de morrer
seu Agenor deixou descrito quem, como e quais seriam os recursos empregados em
seu velório e enterro. Morreu não porque quis, mas fez tudo da forma como pode,
sem desistir.
Saudades, seu
Agenor.
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