23 julho 2013

Exigências e saberes especiais necessários à assistência aos oprimidos [eymard vasconcelos]





É usual ouvir a afirmação de que qualquer coisa basta para a assistência à saúde aos pobres. Sendo eles tão carentes, qualquer migalha já teria um grande significado. Na sua propalada ignorância, eles nem saberiam valorizar esforços mais elaborados de assistência. Por isto, causa surpresa verificar a existência de tantos profissionais estudando arduamente como aprimorar a sua atuação junto a eles.

Os pobres estão revoltados com a assistência que lhes é usualmente prestada. As manifestações mais agressivas de insatisfação causam indignação nos serviços. Para deslegitimá-las e esconder seu real significado, estas revoltas e agressividades são logo classificadas como grosseria, vandalismo, falta de educação e ignorância, que, no imaginário das elites, seriam típicas das classes populares.

É notória a precariedade da maioria dos serviços destinados aos grupos sociais subalternos. É usual encontrar prédios feios, cheios, desorganizados, com atendentes ríspidas, profissionais com baixos salários, escolhidos sem processos seletivos bem feitos e gerenciados de forma ora autoritária, ora displicente. Mas a precariedade da assistência não se deve apenas à precariedade dos recursos e ao pouco investimento na organização: é profundamente inadequado o modelo da assistência prestada nestes serviços. Eles têm, como referência orientadora, o modelo de atenção denominado de biomedicina, o modelo dominante que orienta a assistência na sociedade moderna, mas que ali é operado de forma caricatural. Este modelo biomédico já vem gerando muitas insatisfações e críticas importantes entre os usuários de padrão cultural e econômico privilegiado, mas é entre os grupos subalternos que ele manifesta mais as suas limitações.

Em que consiste este modelo biomédico de assistência? Não é algo que diz respeito apenas à assistência médica, mas a todas outras profissões do setor saúde. Trata-se de um modelo de assistência que se tornou dominante no setor saúde a partir do final do século XIX e só começa a ser criticado, de forma mais consistente, no final do século XX. Nele, a doença é vista como um mau funcionamento dos mecanismos biológicos, estudados do ponto de vista da biologia celular, da bioquímica e das leis da física. O papel do profissional de saúde é intervir física e quimicamente para consertar o defeito no mecanismo enguiçado. As atividades mentais (pensamento, sentimento, sonho, contentamento, sofrimento e angústia), quando valorizadas, são entendidas como resultado da anatomia, bioquímica e fisiologia do cérebro.

Para trabalhar orientado por este jeito considerado, até então, como científico de prestar assistência, são necessários profissionais que apliquem as técnicas de modo desvestido de sentimentos, pois estes corroeriam a objetividade. São necessários profissionais que aprendam a olhar para os pacientes de um modo focado em seus órgãos e, não, na sua totalidade como pessoa. Cada manifestação do paciente é processada procurando identificar seu significado como sinal de acometimento de algum órgão específico do seu corpo, de modo a chegar a uma classificação do problema dentre uma das diversas entidades patológicas já definidas e estudadas pela ciência. Os sintomas e sinais clínicos do paciente têm sentido e são valorizados se ajudam a encontrar a classificação do problema dentro das categorias já padronizadas pela ciência. Este modelo exige profissionais treinados a mirar principalmente as doenças (os defeitos), desvalorizando as singularidades positivas, a garra e a criatividade da pessoa para enfrentar desafios e viver com alegria e solidariedade. É necessário também que os profissionais sejam treinados a dar valor apenas ao saber produzido nos grandes centros de pesquisa e que consequentemente desvalorizem o saber produzido localmente pelas comunidades e pelos colegas. O saber presente nas tradições passa a ser visto apenas como curiosidade. É ainda preciso de profissionais competitivos e, consequentemente, individualistas, pois a concorrência é consagrada como o grande instrumento de garantia da eficiência. Tudo isto resulta em trabalhadores habilidosos em tratar doenças orgânicas, mas que não sabem cultivar o florescimento da vida.

Este modelo biomédico de assistência teve um enorme impacto positivo na melhoria das condições de saúde da população durante o século XX, em que se tornou dominante. Continua gerando inovações fascinantes na assistência à saúde, mas vem sendo crescentemente denunciado como ineficiente (os crescentes recursos que exige estão cada vez gerando menores resultados), ineficácia (a insatisfação dos usuários tem aumentado muito), iatrogênico (o número de danos e adoecimentos causados pela própria assistência têm crescido enormemente), desumano (a desconsideração de dimensões subjetivas e sociais inerentes aos problemas de saúde tem revoltado e gerado muito sofrimento nos pacientes, pois os trata como coisas) e entranhado de interesses comerciais (os tratamentos considerados mais modernos têm sido definidos principalmente por empresas interessadas em ampliar o consumo de seus produtos).

A insatisfação com o modelo biomédico e a sua inadequação são muito maiores para com os pobres, oprimidos e marginalizados. A situação de miséria, a opressão social, a humilhação, o sufoco na gestão do cotidiano e a insegurança em relação ao dia seguinte geram uma tensão e instabilidade emocional muito grande. Eles ficam muito mais vulneráveis às variações da realidade social. Têm uma dificuldade muito maior para seguir tratamentos prescritos de forma insensível às suas condições de vida. Por terem menos conhecimento para decodificar as informações e orientações técnicas dos profissionais, acabam as compreendendo menos e tendo muitos mal entendidos. Têm menos opções e recursos para compensar e superar o agir técnico focado apenas sobre os órgãos do corpo acometido pelo problema. A espoliação e perda de tempo e energia das ações de saúde desnecessárias e corrompidas pelo interesse comercial lhes causam muito maior dano e revolta por causa da precariedade de seus recursos e reservas. Além disto, usualmente têm acesso apenas a ações muito limitadas do modelo biomédico. A expressão “uma medicina pobre para os pobres” é uma realidade comum.

As práticas do modelo biomédico foram pensadas e elaboradas com vistas aos pacientes de melhor condição econômica e política, consumidores mais almejados das empresas que comandam a pesquisa e produzem os meios materiais para implementação dessas práticas ou que operam os serviços privados que as oferecem. A maioria dos doutores dos serviços de saúde, principalmente as suas lideranças, veio das elites ou das classes médias da sociedade e, mesmo sem perguntar, compreendem melhor as condições culturais, psicológicas e materiais de seus pacientes, vindos do mesmo ambiente social. Assim, naturalmente, suas orientações e prescrições levam em conta sua realidade, mesmo que o modelo de consulta não valorize as dimensões sociais e psicológicas. E mesmo que os profissionais de nível superior não tenham uma preocupação de deixar seus raciocínios serem entendidos, os seus clientes mais privilegiados são capazes de compreendê-los em parte e até questioná-los. Estes pacientes podem ter acesso ainda, pela compra no mercado profissional, de uma série de serviços de apoio complementar (psicoterapias, massagens, variados tipos de personal trainers, cuidadores, empregadas domésticas, medicinas holísticas, academias de ginásticas, ioga, ginástica postural, spas, musicoterapias, polícias privadas, danças terapêuticas, entretenimentos, tratamentos estéticos, consultorias especializadas, acesso a ricas fontes de leitura e pesquisa, engenheiros, maior disponibilidade de tempo e recursos para participar de espaços reflexivos e pedagógicos, advogados, associações de defesa do consumidor, entidades de classe, políticos amigos, etc.) que compensam parcialmente o caráter tecnicista e focado apenas no órgão doente da biomedicina.
É fácil apontar as mazelas de atendimentos feitos por profissionais desmotivados e sem compromisso social. No entanto, profissionais dedicados e comprometidos também têm dificuldade para prestar um bom atendimento para este público.

Não basta propor ou querer prestar uma assistência à saúde de boa qualidade para os grupos sociais subalternos. É preciso, para isto, repensar as práticas de assistência para eles. O modelo biomédico de assistência demorou séculos para se consolidar. Um novo modelo de atenção, mais humano e adequado para os setores econômica e politicamente marginais da sociedade, também exigirá um processo demorado e que só poderá ser conseguido por um longo e coletivo esforço de pesquisa e compartilhamento de experiências. Pouco adianta apenas a vontade sincera de ter uma prática mais integral e holística se não há recursos e treinamento em novas formas de abordagem: no corre-corre dos serviços acaba-se sendo obrigado a operar os formatos tradicionais de atendimento, com rotinas já bem estabelecidas e treinadas, para conseguir ser rápido.

Dos saberes já acumulados na perspectiva mais ampla de assistência, o saber mais importante é o que enfatiza a importância do diálogo para a redefinição das práticas assistenciais. O diálogo é o grande instrumento para a busca de adequação da assistência a estes grupos sociais tão diversos e vivendo situações existenciais tão diferentes daquelas imaginadas pelos profissionais de saúde.

O profissional, diante de cada caso, dispõe de múltiplos meios de investigação, que fornecem diferentes níveis de precisão ao diagnóstico, e tem diferentes formas de tratamento, que proporcionam níveis diversos de segurança e de cobertura. Cada um destes meios de investigação e tratamento tem diferentes custos (dinheiro, tempo, sofrimento, afastamento das atividades e esforço físico) para o paciente e para a sociedade. Cada um dos possíveis meios de investigação e de tratamento para uma determinada situação resulta em diferentes níveis de agressão para o corpo e para a rotina familiar. A decisão de quais os recursos de investigação e tratamento vão ser empregados, em cada caso, não é uma decisão puramente técnica, mas baseada em valores subjetivos e culturais, bem como na consideração da realidade material em que as pessoas vivem. Os padrões de investigação e de tratamento tidos como ótimos pelo modelo biomédico são, no fundo, decisões e padrões estabelecidos levando em consideração as condições de vida das classes dominantes. E mesmo as condutas ainda não padronizadas podem ser mais facilmente decididas, sem diálogo, pelos seus profissionais porque eles são membros destas mesmas classes. As considerações que eles fazem, baseados em suas próprias condições pessoais e em suas vivências, são, em grande parte, aplicáveis aos seus clientes. Isto não ocorre em relação aos tão diversos grupos sociais subalternos. Como um profissional pode compreender as estratégias de sobrevivência de uma família composta de quatro filhos e uma mãe (abandonada pelo marido) que vivem em casebre da periferia de uma pequena cidade, constantemente ameaçada pela violência de grupos locais ligados ao narcotráfico, sem móveis e sem utensílios domésticos, e que têm um rendimento declarado apenas de pequenas lavações de roupas e da bolsa família? Dificilmente um profissional conseguirá compreender bem a sua psicologia, os seus hábitos de vida, as suas prioridades e a sua visão da sociedade. Como ele pode então decidir por eles? Só existe mesmo um caminho: o diálogo.

Os pacientes trazem para os atendimentos visões e saberes importantes (porque integrados em sua cultura e em sua realidade material de vida) e que precisam ser valorizados. Por isto, é preciso aprender a construir as condutas terapêuticas através do diálogo. De um lado, o paciente que conhece intensamente a realidade onde está inserida o seu problema de saúde e carregado de crenças, saberes e estratégias de intervenção nesta realidade. De outro lado, o médico com conhecimentos técnicos sobre o problema, mas também carregado de crenças próprias da cultura do grupo social de onde veio. Na medida em que cada um sabe dos seus limites, é possível estabelecer uma relação, onde o diálogo não é apenas uma estratégia de convencimento, mas a busca de uma terapêutica mais eficaz por estar inserida na cultura e nas condições materiais do paciente, como também por estar aberta a outras lógicas de abordagem da doença. Agindo dessa forma, se contribui para a formação de cidadãos mais capazes de gerirem sua saúde.

As pessoas marcadas pelo sofrimento e pela humilhação da subalternidade, em geral, apresentam dificuldades para se expressar ou para elaborar um discurso direto e claro na linguagem dos doutores, em sua relação com os serviços de saúde, dificultando o entendimento de sua lógica e de seus valores. Esta característica cria desafios muito especiais para o seu atendimento. Para superar esta crise de compreensão, é preciso aproximação com abertura afetiva. O coração (símbolo da inteligência emocional e espiritual do ser humano) tem grande poder de compreender aquilo que o raciocínio lógico não consegue. É preciso criar dinâmicas para que as pessoas silenciadas se expressem. É preciso promover um ambiente afetivo para que se percebam acolhidos e à vontade para explicitar suas considerações e opiniões.

A exasperação é comum nos momentos de crise da saúde. Mas o estado de exasperação é muito mais intenso entre os pobres e marginalizados pelas condições em que vivem. Isto gera atendimentos mais carregados de tensão. Nem sempre se consegue um diálogo calmo, em que se consegue conversar sobre os problemas de forma racionalmente organizada, aspecto por aspecto. A emoção tende a se tornar central, não conseguindo ficar controlada e desorganizando os esquemas preestabelecidos de abordagem. Isto pode tornar o encontro terapêutico mais autêntico, mas exige habilidade do profissional em lidar com emoções mais ligadas à irritação, à agressividade e ao lamento. No entanto, o ensino profissional não forma para isto. As emoções tensas e irritadas tendem a provocar o afloramento de sentimentos rancorosos e descontrolados dos profissionais.

Estes grupos sociais têm a vida marcada pelo sufoco. Como todos os grupos sociais, buscam viver com intensidade, mas encontram muitas limitações, materiais e culturais. A sobrevivência, a felicidade e a desejada vida intensa estão sempre ameaçadas. Isto exige um enorme esforço físico e psicológico a cada dia. Em meio a tantas humilhações e sofrimentos, a mente fica confusa e dividida entre conflitantes dilemas de superação e ressentimentos. As angústias e desafios do presente são tão grandes que impedem maiores investimentos em esforços voltados para o futuro. Assim, ações preventivas de saúde ou focadas em melhorias de longo prazo têm muito mais dificuldade para se tornarem prioridades em suas lutas diárias pela sobrevivência material e afetiva. Isto costuma irritar muito aos profissionais de saúde bem educados sobre a importância das ações de promoção da saúde. Neste contexto, é preciso muita paciência e habilidade para ir construindo, no ritmo destas pessoas, ações de longo prazo que consigam enfrentar as causas políticas e sanitárias dos problemas que se repetem no presente. Isto só se consegue com um vínculo e um compromisso que permaneçam por longos prazos, exigindo um desapego das expectativas de gloriosas ações redentoras de curto prazo, tão frequentes entre os profissionais que dedicam suas vidas aos marginalizados.

Nestas várias décadas de atuação profissional, tenho viajado para vários locais do Brasil, chamado para dar assessorias e participar de eventos. Tenho convivido com muitos trabalhadores de saúde que atuam junto aos pobres, oprimidos e marginalizados. Percebo que vivem grandes dificuldades na relação com os grupos sociais subalternos. Angustiam-se e se revoltam, muitas vezes, porque seus clientes não entendem e não incorporam as verdades que trazem. Costumam dizer “este povo não me compreende”. Sentem como se seus esforços fossem desvalorizados. Alguns chegam a dizer: não merecem minha dedicação. A grande dificuldade é não perceberem que a cultura, destes grupos e pessoas que assistem, é expressão de um rico conhecimento e sabedoria de enfrentamento das dificuldades e de busca de felicidade nas condições concretas de sua tensa existência. Uma sabedoria e um conhecimento que se mostram de jeito bastante esquisito e confuso para o padrão dos profissionais. Não percebem também que têm outros valores para orientar suas prioridades do existir. Não percebem ainda que há uma diversidade muito grande de formas de pensar, sonhar e organizar a vida entre os grupos subalternos. De forma alguma, são uma realidade uniforme. Na verdade, a maior crise de compreensão é nossa; nós profissionais é que não entendemos suas variadas formas de buscar uma vida intensa, nas suas tão diferentes realidades. Com isto, nosso trabalho fica superficial. Porque desconsideramos seus caminhos diferentes e não acreditamos na possibilidade de terem formas próprias e inteligentes de organizar suas vidas marcadas por tantas precariedades, confusões e opressões, nós não investimos na superação das incompreensões. Eles acabam sendo visto como apáticos, deseducados e descontrolados. O maior esforço necessário para uma assistência mais ampla é o da compreensão.

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