Usualmente, considera-se que a assistência à saúde é sempre positiva. Quanto mais, melhor. O problema estaria essencialmente na sua falta. Há, porém, muitos efeitos negativos da assistência à saúde realizada dentro do modelo hoje dominante. Se o trabalho em saúde tem muitas potencialidades, ele também pode trazer riscos para as pessoas e muitas consequências deseducativas.
A assistência à saúde costuma ser feita de um jeito que faz as pessoas se alienarem de sua luta por saúde. Problemas fazem parte do viver e a sabedoria humana consiste em saber lidar com eles de forma a superá-los, quando possível, ou aprender um jeito de conviver com eles. O lidar com os problemas e desafios do existir pode ser fonte de encontros, alegria, realização e revoluções muito positivas. Todos são chamados a adquirir esta sabedoria e a garra para persistir nos enfrentamentos. Tudo que aliene as pessoas e os grupos sociais desta capacidade de lidar com os problemas precisa ser combatido. E muitas vezes a assistência à saúde tem feito isto. A saúde é, antes de tudo, uma conquista de cada pessoa, dos movimentos sociais e da organização política da sociedade. Mas, assiste-se a um crescente movimento de delegação do enfrentamento dos problemas do existir para os doutores especialistas. Os doutores podem ser apoiadores e assessores deste movimento pessoal e social de enfrentamento dos problemas do existir, mas muitas vezes têm atuado de forma a alienar seus clientes desta iniciativa. Isto acontece porque a assistência à saúde gera muitos lucros e traz muito prestígio para os grupos políticos que a implementam. Para aumentar estes lucros e legitimar esquemas políticos de dominação, tem se investido na mistificação das possibilidades da assistência à saúde. Se os doutores são capazes de tantas maravilhas que não se entende direito, é melhor deixar que eles decidam e controlem o que se deve fazer para se ter saúde.
O próprio modelo de atendimento clínico das profissões de saúde reforça esta atitude de alienação dos pacientes. Em geral, o profissional ouve a queixa, faz perguntas, examina e pede exames complementares para, em seguida, chegar sozinho a uma conclusão diagnóstica e estabelecer um plano de tratamento que deve ser seguido. O termo “paciente” expressa bem esta postura passiva de entrega pelas pessoas de seu corpo para a análise e ação do profissional. Esta maneira de atendimento tende a divulgar a ideia de que a maioria dos problemas de saúde se deve a um defeito em uma parte do corpo que será consertado por um profissional (ou um grupo deles) que atua como um mecânico de automóveis, atuando focado sobre a peça defeituosa. É como se os problemas de saúde não tivessem forte correlação com a organização da vida do paciente e de sua comunidade. E como se não fosse necessário também fazer um rearranjo no cotidiano da vida, o que não tem como ser feito sem a participação ativa do paciente na análise da situação, na definição de estratégias e no envolvimento na sua implementação. Este modelo de atendimento reforça ainda mais a noção de que a fonte legítima para avaliar e pensar a vida correta é o saber científico, produzido nos centros internacionais de pesquisa, do qual os profissionais de saúde são os legítimos representantes e operadores. Quanto mais obediente o paciente for, melhor será para sua saúde.
É mais cômodo encontrar uma pílula mágica que controla a tristeza e o nervosismo do que reorientar as prioridades de meu existir e refazer as minhas relações afetivas. É mais fácil buscar uma pílula que resolva os problemas de aprendizagem de meu filho do que reorientar os processos de ensino em que ele está submetido e ampliar o suporte doméstico para o seu estudo. É tentador encontrar um comprimido que me emagreça sem precisar reorganizar a minha alimentação e participar do movimento político de controle da propaganda de alimentos com grande densidade calórica. É sedutor ter acesso a um medicamento que cura minha ressaca sem precisar enfrentar o alcoolismo e participar da luta política para impor limites à propaganda de bebidas alcoólicas para jovens, associando seu uso com transbordante alegria e intensa sociabilidade. Estes são alguns exemplos do fenômeno denominado de medicalização da vida social. Oferecem-se e propagandeiam-se medicamentos, manipulações clínicas e aparelhos médicos que eximem as pessoas de transformar suas vidas. A grande esperança é deslocada para o encontro de melhores medicamentos e a conquista da capacidade de consumi-los fartamente, reforçando também a competição individualista por mais riqueza.
Atrás deste processo estão grandes indústrias de insumos médicos, empresas fornecedoras de novas modalidades de tratamento clínico e os grandes meios de comunicação de massa, que lucram com sua propaganda. Os profissionais de saúde podem ser cúmplices, conscientemente ou não. Muitas vezes, esta medicalização já está impregnada em muitos livros estudados e em muitas aulas proferidas na universidade, pois as indústrias de produtos médicos têm grande influência nos centros de pesquisa e de difusão do conhecimento médico. É preciso ter uma atitude crítica de pesquisa e estudo para conseguir sair fora desta cadeia de processos de medicalização social. E ter a firmeza para fugir das premiações, materiais e simbólicas, oferecidos para quem participa.
Este consumismo de medicamentos, cirurgias e tratamentos clínicos não apenas pode ser alienante das iniciativas e saberes de cada cidadão para o enfrentamento das dificuldades do viver, mas também muito perigoso para a saúde. Foram desenvolvidos processos muito poderosos de intervenção sobre o corpo, tanto para examiná-lo como para tratá-lo. No afã de vender estes aparelhos, procedimentos clínicos, cirurgias e medicamentos, tem se exagerado o seu uso e difundido procedimentos de investigação e tratamento que ainda não têm eficácia comprovada. Este uso intempestivo de procedimentos é uma ameaça a todos que têm acesso à assistência. Empresas convencem e compram governantes para conseguir sua difusão também nos serviços públicos. A implementação de novos procedimentos médicos, propagandeados nos meios de comunicação e que por isto estão na moda, ajuda a dar uma imagem de modernidade para os governantes, mesmo que isto se faça pelo desvio de recursos destinados a procedimentos tradicionais de eficácia bem comprovada. Assim, muitos profissionais, não diretamente cúmplices da cadeia de interesses comerciais, acabam sendo seus executores inocentes, pois esta incorporação tecnológica vem acompanhada da difusão de textos, com a aparência científica, para justificá-la.
Assim, vem ampliando a ideologia, que mostra como sendo racional o discurso interesseiro de que o saber científico, produzido nos grandes centros internacionais de pesquisa, é o único saber legítimo. Consequentemente, o saber que é adquirido pela experiência de vida, pela reflexão e diálogo entre as pessoas e pelo aprendizado das tradições familiares e culturais vem sendo desacreditado.
Os doutores dos serviços de saúde fortalecem este descrédito se atuam de forma autoritária e normativa. Em nome da busca da saúde, acaba se querendo regular o comportamento cotidiano das famílias, desde a forma como devem comer, defecar, amar, relacionar com os filhos e organizar suas casas. Nenhum campo do saber científico se intromete tanto nos detalhes do viver cotidiano como o da saúde.
A atitude de “donos do saber verdadeiro”, porque científico, de muitos profissionais de saúde os torna pouco abertos para o diálogo e para a busca de entendimento dos contextos de vida dos seus pacientes. Muitas vezes, esta atitude de soberba se revela até com grosseria e rispidez, contribuindo para baixar a autoestima de clientes já fragilizados pela crise de saúde. Este desacreditar da capacidade das pessoas pensarem e determinarem com autonomia seus próprios caminhos de vida leva a uma atitude de dependência aos saberes especializados criados externamente, sem perceber seus limites e os interesses econômicos neles entranhados. Nada pode ser mais prejudicial para a saúde da população, no longo prazo, do que a perda da capacidade crítica, da autonomia, da sabedoria para gerir a própria vida. E a perda da garra e capacidade para lutar pelos direitos e projetos políticos de mudança social.
Os perigos alienantes e deseducativos da assistência à saúde não param aí. Principalmente na assistência à saúde dos pobres, marginalizados e oprimidos são usuais práticas educativas que geram o fenômeno denominado de culpabilização da vítima. Para forçar uma aderência mais intensa do público aos seus ensinamentos e prescrições, os profissionais de saúde tendem a exagerar a sua importância, associando diretamente o seu não seguimento como a única causa de um possível fracasso do tratamento. Se você não ferver a água que dá de beber ao seu filho, ele vai acabar tendo diarreia e você será a culpada. Se você não parar de fumar, a crise de asma do seu neto vai voltar. Se você não fizer dieta para valer e emagrecer, sua diabete vai se descontrolar novamente. Se vocês não vierem participar da reunião com a secretária de saúde amanhã no posto, a reforma que estamos planejando não vai sair. Todas estas recomendações têm seu valor. O problema é associá-las de forma direta e simplista com os possíveis insucessos no tratamento e na prevenção das doenças, como se não houvesse muitos outros fatores influenciando e como se sua implementação fosse algo dependente apenas de uma escolha voluntária. A higiene da água, a realização de uma dieta bem feita, o parar de fumar e a participação em mobilizações sociais são ações que dependem também de condições materiais, psicológicas e ambientais que muitas vezes não existem para estas pessoas. Isto tende tornar os problemas, que têm raizes na organização política e cultural da sociedade, em culpa das pessoas que sofrem suas consequências. Para populações que não têm acesso a saneamento básico, escola de qualidade, moradia decente e condições sociais que possibilitem tranquilidade e tempo para cuidar de si, acaba se propagandeando que suas doenças se mantém apenas por desleixo e preguiça. É a culpabilização da vítima.
Atitudes como estas são também usuais quando há um fracasso no tratamento e o profissional, ao invés de discutir francamente outras possibilidades e avaliar criticamente o que foi feito, simplifica buscando justificar o insucesso pela não implementação de todos os cuidados prescritos por ele. A culpabilização da vítima evita um processo de maior pesquisa e diálogo. Ela abaixa a autoestima e reforça a subalternidade. Não contribui para a formação de pessoas mais sabidas, fortes, tranquilas e felizes para terem uma convivência construtiva e preservadora com o meio ambiente físico e humano.
Uma forma bem diferente de alienação vem se ampliando muito. Nas últimas décadas, cresceu muito a valorização excessiva e narcisista do cuidado do corpo pela busca incessante de uma aparência esbelta e formosa, por um consumo obsessivo de produtos e serviços de saúde. Tem se expandido uma mania pela saúde, entendida principalmente como manutenção de uma vitalidade e uma beleza juvenil permanente do corpo, pela incorporação individual de estilos saudáveis de vida e o consumo de ginásticas, alimentos, procedimentos estéticos e medicamentos especiais. Em uma sociedade marcada pela intensa desigualdade e humilhação dos mais fracos, foi se fortalecendo uma estratégia individualista para se distinguir da maioria ou dos colegas. Há uma ênfase na responsabilidade pessoal para com a própria saúde, mas de uma forma simplista, pois esta juventude permanente é ilusória e a fixação da vontade no cuidado do corpo desconsidera outras dimensões do viver saudável.
Cuidar bem do corpo, fazer exercícios físicos regulares, ter hábitos de vida saudáveis, procurar ser bonito e cuidar dos detalhes da alimentação são atitudes muito positivas, mas que se tornam perniciosas quando viram uma obsessão que evita pensar e considerar o processo de envelhecimento, sofrimento e morte que estão presentes em todas as formas de vida. O profissional de saúde vira um instrumento desta busca obsessiva e ilusória. Ele precisa ter uma percepção crítica dessas demandas para não reforçar ilusões e poder contribuir para seu esclarecimento. A consciência da morte, com as suas etapas preliminares, o envelhecimento e as doenças, faz o ser humano se desapegar de suas transitórias potencialidades de juventude e buscar orientar o seu viver por valores mais duradouros como a amorosidade, a solidariedade e a justiça. Saúde plena é entrega apaixonada, com sabedoria, ao jogo da vida. Não se entrega com garra e alegria ao viver se estamos apegados à preservação de detalhes do corpo, imobilizados pelo medo do sofrimento e da morte inevitável, obcecados pelo conserto dos inúmeros pequenos defeitos, presentes em todos, ou amargurados com as perdas que vão se acumulando com o tempo.
Os profissionais de saúde, apesar do termo saúde em seu nome, são chamados a atuar principalmente nas doenças, nas crises, nas perdas, no sofrimento e na ameaça de morte. Mas podem fazê-lo de uma forma que ajude as pessoas a se aproximarem da saúde plena. O momento da doença e da crise pode ser um momento de reorientação da vida. Este é o desafio da proposta de integralidade na saúde. Mas para isto, precisam conhecer e saber superar os perigos que cercam o trabalho em saúde.
As consequências deseducativas do trabalho em saúde costumam vir de atitudes profissionais realizadas automaticamente pela imitação de mestres e outros colegas, bem como da realização de condutas rotineiras prescritas nos manuais. Nem são vistas como problema. Há um treinamento para que o foco da atenção profissional se ocupe dos dilemas do diagnóstico e da escolha do tratamento mais adequado, como se sua meta se esgotasse no problema clínico presente. É preciso de um grande esforço crítico para tornar ponto central da reflexão e preocupação dos profissionais de saúde a formação para a cidadania ativa voltada para a construção de uma sociedade solidária, justa e democrática, isto é, uma sociedade saudável. O ato terapêutico plenamente integral não se prende à solução imediata do problema de saúde que gerou a demanda, mas se envolve também na promoção da saúde em toda a sociedade. Não se pode cuidar do problema atual de forma a gerar dependência, passividade e aceitação da desigualdade. Há um gosto e um desafio muito especial em tornar o trabalho em saúde como instrumento de reorganização da vida social.
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