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07 fevereiro 2020

E SE?

Brincadeira? Ernande (2020)

Ernande Valentin do Prado

E se
nos cursos de saúde
desde sempre
não se ensinasse
sobre doenças
mas sobre pessoas
ou melhor
se se ensinasse
sobre o efeito das doenças
nas pessoas
Não Seria lindo?

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

20 novembro 2015

A CONTRIBUIÇÃO DA EDUCAÇÃO POPULAR PARA A DISCUSSÃO DO CONTROLE SOCIAL NO SUS

Imagem da internet
Ernande Valentin do Prado

O controle social é um tema que tem sido bastante discutido, principalmente com a proximidade das Conferência obrigatórias de Saúde, municipal, estadual e nacional, que foram ou ainda serão realizadas este ano. Nesse momento, parece apropriado questionar se o controle social, tal qual deliberado pela Constituição Federal de 1988, através de conselhos e conferencias, está funcionando como esperava o Movimento de Reforma Sanitária Brasileira?
Em 3 de fevereiro de 2014, em Brasília, aconteceu a II Mostra Nacional de Experiências em Gestão Estratégica e Participativa no SUS (II EXPOGEP). Um dos eixos dizia respeito a Mobilização Social: direito à saúde e diversidade. Nesse eixo, uma das salas discutia o tema: Controle Social e Gestão Participativa. Foram apresentadas 17 experiências, sendo cinco comunicações orais, com um pouco mais de tempo para falar sobre as experiência e 12 pôsteres. Apesar das diferentes categorias de apresentação e tempo de exposição, todos puderam apresentar suas experiências. No final houve uma discussão interessante com todos os participantes, expositores e pessoas interessantes no tema.
Das 17 experiências, 12 abordavam explicitamente conselhos de saúde, o que pode ser verificado diretamente no título dos trabalhos[i]. Quatro não mencionam conselhos de saúde no título, mas desses, três abordam claramente controle social, mesmo com diferentes nomes: participação popular, plenária participativa, saúde no ar (rádio). Das 17, apenas uma não parece claramente relacionada ao controle social e duas experiências foram realizadas fora dos conselhos ou não diziam respeito a eles, embora também na perspectiva do controle social e da participação popular. Uma, na ótica da Educação Popular, O diálogo como estratégia de gestão no SUS de Dias D’Ávila (BA), experiência que se apoia apenas nos usuários do serviço, sem nenhum outro tipo de organização e, Estradeiro do SUS – Sistema Único de Saúde: Muito Prazer, que não ficou claro do que se tratava, porém, parecia uma espécie de bate-papo e prestação de serviços aos caminhoneiros. Não ficou claro na apresentação da autora e nem no pôster.
De memória, lembro que apenas duas experiências não abordavam conselhos, mas, para não incorrer em erro, vou eliminar o fator memória e trabalhar apenas com os títulos dos trabalhos que encontrei disponíveis na internet[1]: com esse critério, 12 trabalhos abordavam de forma explicita situações vivenciadas em conselhos de saúde. Dez davam contam de um cenário em que os conselhos de saúde estão em sua função primordial, fazer controle social, fragilizados, desfigurados pela forma como são constituídos e funcionam no dia a dia. Dois, da mesma cidade, falavam de experiências exitosas: Conselho local de saúde de Araçatuba[2]: um espaço para transformação sociais na zona rural cearense, e A mobilização social como ferramenta de fortalecimento dos conselhos locais de saúde no município de Sobral – CE. Das outras dez, duas eram longas pesquisas academias tradicionais abordando o funcionamento de diversos conselhos de saúde: Mobilização da participação na política de saúde: o conselho estadual de saúde de Mato Grosso e Atuação e percepção de representantes dos usuários do SUS no Conselho Estadual de Saúde no Rio de janeiro – (CES/RJ). Ambas descreviam cenários desoladores, principalmente a do Rio de Janeiro, que fez uma abordagem do aspecto formal, além do funcional dos conselhos municipais do estado.
Acredito que não se trata de uma mostra insignificante, apesar de pequena. São experiências representativas de várias partes do Brasil, que invariavelmente apresentam cenários aonde os conselhos de saúde não funcionam realmente ou funcionam de forma tão precária que não se pode dizer que o controle social acontece, que há realmente participação popular na gestão do SUS. Além disso, essa mostra só confirma o que já é de conhecimento generalizado no SUS, sobretudo entre trabalhadores e usuários. 
Apesar das boas intenções, da criatividade, do compromisso social dos criadores das regras de funcionamento dos conselhos de saúde, bem expresso na lei 8.142/90, parece que na prática, quem era ou é contra o controle social, conseguiu subverter as intencionalidades. Quase sempre os conselhos de saúde são estruturas burocráticas, viciadas, com conselheiros eternos ou eternamente iniciantes. Muitos são bem intencionados, mas despreparados (parece que de forma intencional) quase sempre e, com raríssimas exceções, desrespeitados nas indicações e deliberações. Servem para assinar os despachos do Secretário de Saúde, dando aparência de transparência para algo que é quase tudo, menos transparente.
Vanilda Paiva[3], em 1986, discutindo a participação social na educação, disse que o discurso da participação, em muitos casos, reflete apenas a “dificultarização” da real participação. Isso por causa dos horários inapropriados, pela lógica pensada apenas a partir da comodidade dos profissionais, além disso, participar, para população, significa aumento das jornadas de trabalho. Na saúde, não dá para tirar nada do que Vanilda Paiva falou, mas dá para acrescentar: como regra, nos Conselhos de Saúde, mas sobretudo nos serviços, a participação popular só é bem vista e estimulada se for para ouvir, sobretudo as justificativas dos profissionais e da gestão sobre o porquê não há como atender as reivindicações. Quando a população, por algum motivo se dispões a participar, com algo mais do que perguntas ou assinatura em uma ata, quando tenta intervir no processo de trabalho, discordar das justificativas apresentadas, propor alternativas, quase sempre são deslegitimados e, coso queiram discutir o orçamento, a prestação de contas, viram, imediatamente, inimigo político. 
Isso explica parte do porque a maioria das pessoas que participam dos Conselhos, quase sempre, são representantes de algum interesse político “partidário”, seja da gestão, do sindicado ou de usuários escolhidos a dedo pela gestão (quase sempre, mas também pelo sindicato, pelos partidos, pelos prestadores de serviços). Os usuários que realmente fazem uso do SUS no cotidiano, que precisa que ele funcione, que não consegue argumentar bonito contra a lógica de funcionamento dos conselhos e do serviço de saúde, quase sempre não participar, isso por que é barrado pela lógica organizativa, por desacreditar de tudo que veem e ouvem, assim como desacreditam dos movimentos sociais e dos partidos políticos. Ao contrário do que usualmente se fala, talvez para aliviar a consciente e o sentimento de fracasso, esses cidadãos não parecem simplesmente alienados, desmotivados, cansados, sem fé, mas bastante consciente de como as coisas acontecem na prática e de que não conseguem romper as barreiras que lhe são impostas.
A contribuição da Educação Popular, tomando como verdade apenas 50% do cenário que acabo de descrever, não poderia ser outras, se não a promoção do fortalecimento dos movimentos sociais, de novas práticas éticas e solidárias, do empoderamento do sujeito. São desafios que sozinhos, já são muito grandes e complexos, porém, pensando a necessidade de fortalecer o controle social no SUS, fica ainda mais complicado. Embora a representação nos conselhos de saúde, sobretudo dos usuários, se dá por representações dos movimentos sociais, estes, quase sempre, se são de fato autônomos ou críticos a gestão no estado, são deslegitimados como instrumento de participação popular e não têm vagas nos conselhos.
Hoje o controle social é sinônimo de conselhos e conferências, como se apenas eles fossem legítimos ou oferecessem ferramentas realmente capazes. Mas parece justamente o contrário, os conselhos estão impedindo a mobilização social, dificultando a participação de movimentos sociais autônomo, de novas práticas solidária, de cidadã que apenas precisam que o SUS funcione, que a UBS, o hospital, laboratório, estejam abertos e atendendo de um modo ao menos aceitável. Apesar do que pensaram os idealizadores do Controle Social, reunidos em torno do Movimento de Reforma Sanitária Brasileira, na verdade, essa estrutura toda, tal qual descrito na Constituição Federal e operacionalizada a partir da lei 8.142/90, e sobretudo pelos municípios, estados e da união, dificulta a participação popular, e, na prática impede que o controle social de fato aconteça. Como fala o Capitão Nascimento, personagem do filme Tropa de Elite 2, o sistema sempre dá um jeito[4]. Parecer ser esse o caso, quando se pensa no que se transformou os dispositivos constitucionais que deveriam garantir o controle social no SUS.
Denunciar essa situação e anunciar que não precisa ser assim, parece ser a maior e mais poderosa contribuição que a educação popular poderia dar para a discussão da participação popular e do controle social no SUS



[1] BRASIL, Caderno-IIEXPOGEP. Acessado em 11 out. 2015.
[2] Não se trata da cidade de Araçatuba, mas de uma localidade rural na cidade de Sobral, no Ceará. Ou seja, é a experiência de um conselho local de saúde.
[3] PAIVA, V. Introdução. In: PAIVA, V. (Org.). Dilemas e perspectivas da educação
popular. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p.15 - 60.

[4] José Padilha. Tropa de Elite (filme). Disponível em: Acessado em: 07 nov. 2015.





[i] Relação dos trabalhos apresentados com o tema: Controle Social e Gestão Participativa.
Apresentação oral:
1.  Conselho local de saúde de Araçatuba: um espaço para transformação sociais na zona rural cearense;
2.   Capacitação: fortalecimento do controle social por meio da Inclusão dos conselheiros de saúde do Estado do MS;
3.   Mobilização da participação na política de saúde: o conselho estadual de saúde de Mato Grosso;
4.   SUS: Direitos dos usuários e participação social;
5.   O diálogo como estratégia de gestão no SUS de Dias D’Ávila (BA). 42 43
Pôsteres:
1.     Incentivo à participação popular: um caminho a construir nos serviços de saúde e escola.
2.     A experiências das oficinas de formação para conselheiros de Saúde município de Betim (MG), pelo Programa de Educação pelo Trabalho (PET). Observatório do Controle Social do SUS Betim.
3.     Curso de Educação para a Cidadania, Transparência e Controle Social no SUS: capacitação dos conselheiros municipais de saúde e mobilização dos movimentos sociais do controle social;
4.     Controle social no SUS: contribuições para efetivação da gestão democrática do sistema de saúde;
5.     Conselhos de saúde em busca da paridade para conquista de sua legitimidade;
6.     Plenárias da saúde participativa de Guarulhos;
7.     A rede de usuários do SUS e Controle Social;
8.     Estradeiro do SUS – Sistema Único de Saúde: Muito Prazer;
9.     A mobilização social como ferramenta de fortalecimento dos conselhos locais de saúde no município de Sobral - CE;
10.  Estratégias para ampliação do cuidado ao usuário em sofrimento psíquico na atenção básica do Município de Viçosa do Ceará;
11.  Estação Saúde: uma proposta de saúde no ar; e
12.  Atuação e percepção de representantes dos usuários do SUS no Conselho Estadual de Saúde no Rio de janeiro – (CES/RJ).

[Ernande Valentin do Pradinho publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

29 julho 2015

Entre chaves e a educação popular



Waterfall of keys (Cascata de chaves) de Peter Whitehead. Fonte: http://www.artbusiness.com/1open/032312.html


 “ (...) Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave? (...)” – Carlos Drummond de Andrade

Acredito que sempre desdobro uma nova parte da Educação Popular, novas respostas trazem novas perguntas, que trazem novas respostas e perguntas - um ciclo de reflexão inesgotável. Quando meia utopia, meio busca criamos a Liga de Educação em Saúde em 2010 estávamos descontentes com a nossa educação médica, com a “ajuda” verticalizada vivenciada nas matérias práticas do curso de medicina. Não consigo deixar de me remeter ao texto Gronnemeyer (1999) quando falo da “ajuda verticalizada”: “A ajuda sobreviveu inocente como sempre, mesmo que há muito tempo tenha mudado suas cores a tenha se transformado em um instrumento perfeito – e elegante – de exercício do poder”. Quando ajudar se tornou imposição e não emponderamento. A autora segue discutindo sobre ideia da ajuda que é incondicional, dada sem olhar para a pessoa que precisa de ajuda, a situação, a probabilidade de sucesso, ou a possibilidade de causar mais danos pela pessoa que oferece a ajuda.  

Descubro (em meio a redescobertas) que o paciente folha em branco (Eymard, 2009) para prescrever meus ensinamentos biológicos (e ser “ajudado”) da universidade não existe, e quero deixar escrito na minha prescrição (ou falado, expressado, cantado, sonhado): “Não tome nenhum medicamento até questionar tudo”. E cruzo novamente pela “Parábola do rio” de (Manchada, 2013) que conta:

Certo dia existia uma pequena vila na beira de um rio. Nesta vila as pessoas eram boas e a vida na vila era boa. Um dia um morador da vila viu uma criança no rio. Ele pulou na água e foi até a criança para salvá-la. Nos próximos dias mais e mais crianças apareceram descendo correnteza abaixo. Com o tempo a vila organizou equipes de resgate para descer o rio e salvar as crianças, lugares para aquecê-las e alimentá-las. Mas parecia que só piorava e tinha muitas crianças descendo rio abaixo e a vila passou a se contentar só com os que eles salvavam e o seu esquema de ajuda. E a vida da vila seguiu assim. Até que um morador ao invés de pular no rio para salvar decidiu subir o rio para descobrir quem (ou o que) que jogava as crianças rio abaixo. Quando outro morador viu ele subindo o rio ele esbravejou: “Onde você vai? Precisamos de todos aqui envolvidos para salvar essas crianças” e o homem respondeu “Vou descobrir o que está jogando elas no rio”. Alguns moradores da vila não gostaram da ideia, falaram que “era muito arriscado”, e eles falaram “com o número de crianças descendo rio abaixo precisamos de mais apoio aqui”.

Esta parábola me faz refletir sobre a medicina, sobre tirar as crianças do rio, ao invés de descobrir o que às coloca no rio. Ainda lembro, que uma das minhas primeiras reflexões ao ver um atendimento na Unidade Básica de Saúde em que o médico discutiu com o paciente sobre os medicamentos “da pressão” que o paciente não estava tomando, a dieta sem sal, a falta de atividade física e concluiu a conversa com “você deve começar a caminhar” – vi o paciente entristecido e um médico preocupado e frustrado. Nos próximos capítulos eu visitei o paciente em sua casa, continuava sem tomar os remédios, sem fazer a dieta e sem praticar o exercício físico. Eu não entendia nada, não compreendia qual era o caminho que estava faltando na comunicação, comecei a ver uma parede quase intransponível entre a medicina e o paciente. E comecei a refletir que não queria uma medicina que não mudava nada ou quase nada, que no final do dia a soma dava zero. Que salvava as crianças do rio mas não descobria a origem. A tendência neste momento da educação médica e da vida de um estudante é se encantar pela tecnicidade, pelas tecnologias duras e se afastar de uma medicina que “não funciona” para a medicina que “funciona” (que sutura, faz cirurgias, enfaixa, e que “cura”). Ou alguns estudantes do primeiro ano do curso de medicina decidem criar uma Liga de Educação em Saúde para ouvir e discutir saúde com os pacientes.

E como volto para a Educação Popular, volto para a minha educação médica pouco reflexiva e meus “refúgios” reflexivos. Navego pela reflexão crítica de Freire (1974) que se traduz bem nas palavras de Brandão (1982): “a Educação Popular não visa a criar sujeitos subalternos educados: sujeitos limpos, polidos, alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja e utilizando fossas sépticas” (ainda emendaria tomando seu anti-hipertensivo, comento pouco sal, fazendo uma dieta com pouco açúcar e praticando exercícios físicos). Também vejo (em algumas brechas) uma educação em saúde que não quer formar profissionais subalternos educados: sujeitos técnicos, científicos e humanizados. Mas encontro um diálogo entre a educação popular e a educação médica para a conquista de direitos, emponderamento e autonomia - não só das comunidades, mas também dos estudantes e profissionais. A mesma crítica reflexiva e elemento resistência que fez parte da minha educação médica (fora do currículo), é diálogo para empoderamento das comunidades. Mesmo elemento que ajuda a construir um sistema crítico que faz bom uso do controle social. 

Vejo uma discussão que ronda um profissional mais humanizado, que quer um profissional e uma sociedade crítica no caminho de uma maior autonomia, mas encosto novamente nesta parede entre o paciente e o profissional de saúde (paciente, comunidade, profissionais, gestores – a mesma parede). Essa dissonância entre um sistema que quer ser humanizado, crítico, reflexivo e construtivo profissional que quer ser humanizado ter os mesmos valores e  uma comunidade e pacientes que querem viver saúde de uma forma diferente demonstram uma das grandes fendas da educação médica e medicina hoje (Almeida-Filho, 2011): “o maior determinante da baixa qualidade dos serviços oferecidos pelos profissionais do SUS são recursos humanos limitados; porém, essa limitação é qualitativa e não quantitativa”. 

Descubro neste caminho entre várias confusões, teorias e distrações uma porta na a parede. Descobrir a porta, não significa abri-la. Viro o molho de chaves, giro, testo Foucalt, vou para a filosofia, vivo, leio, experiencio. Cedo ou tarde, descubro na Educação Popular uma chave qualitativa que destranca esses dois lados da porta, que abre uma parede de conhecimentos diferentes entre profissionais e comunidade, gestores, cidadãos. Que dá a chance para subir o rio, emponderar, resistir, mudar... dialogar. E como Drummond perguntou, reflito: “Trouxeste a chave?”.

 Voam abraços,
Mayara Floss

Bibliografia

Almeida-Filho N. Higher education and health care in Brazil. Lancet. 2011;377:1898-900.
Brandão CR. Lutar com a palavra: escritos sobre o trabalho do educador. Rio de Janeiro; 1982.
Freire P. Education for critical consciousness. London: Continuum; 1974.
Gronemeyer M. Helping. In: Sachs W, editor. The Development Dictionary: A Guide to Knowledge as Power. 2 ed. New York: Zed Books; 1992. p. 55-73.
Manchada R. The Upstream Doctors: Medical Innovators Track Sickness to Its Source. 38 ed.: TED Conferences; 2013.
Vasconcelos EM. A construção conjunta do Tratamento Necessário. Caderno de Textos - Grupo de Estudos em Educação Popular e Saúde 2009(1):80.

03 outubro 2014

ACEITAR NÃO É (NECESSARIAMENTE) CONCORDAR [Ernande Valentin do Prado]

Ernande Valentin do Prado

Marcelo era machista, metido a garanhão e tratava as mulheres como objeto. Costumava dar notas para cada uma segundo seus atributos físicos.
Beto não concordava com nenhuma de minhas propostas nas reuniões do grêmio escolar. Costumávamos quebrar o pau nas reuniões, quando lhe dizia que não adiantava puxar o saco dos professores.
Orlando era populista (além de mulherengo). Na rua mexia com todas as mulheres, o que me obrigava a andar do outro lado da calçada. Nos debates no diretório municipal do Partido dos Trabalhadores (PT), sempre concordava com os argumentos de todas as posições.
Paulo era erudito, tinha memória fotográfica, sempre sabia mais do que os professores e via na literatura um valor supremo e um fim em si mesma.
Adilson sempre via uma razão divina para os acontecimentos terrestres e orava por mim em sua igreja. No meu primeiro emprego foi me visitar. Passou mais de 18 horas no ônibus e encarou 40 graus de temperatura. Na época nem geladeira tinha na minha casa.
Altair ia para aula com camiseta rasgada do Iron Maiden. Comia mais do que todo mundo e era mais magro que todos.
Adriano sempre deixava comida no prato, nos restaurantes onde a gente dividia a mesa. Quando pegava em um microfone não parava de falar.
Ademar era o sujeito mais completo que eu conheci. Sempre apontava contradições no meu discurso. É um dos padrinhos de Alice.
Ronaldo descobriu que adora ser Policial Militar (PM). É outro padrinho de Alice.
Junior era humilde demais, generoso demais, solidário demais. E às vezes também era debochado e irônico demais. É o terceiro padrinho de Alice.
Herivelton não discutia, contava histórias e ia ao “bailão gauchesco” três vezes na semana.
Mirian usava roupas que me deixava constrangido.
Adalberto mentia de forma descarada. Apesar de diplomado em Universidade Federal, não sabia escrever um bilhete com coerência.
Helena achava Florence uma heroína que só tinha virtudes, mesmo tendo ajudado o império Inglês a legitimar a guerra.
Sirley me ligava tarde da noite em casa sem motivo nenhum, a não ser para saber onde eu estava.
Cecília queria ganhar muito dinheiro para comprar tudo que tivesse vontade. Seu maior sonho era arrumar um marido rico para lhe sustentar.
Paula achava o cúmulo do ridículo a professora não conseguir pronunciar o plural nas frases ou errar a concordância verbal. Ficava zombando, desqualificando e ignorando todas as outras qualidades que a professora tinha.
Luciana ia de carro importado para a aula. Chegava sempre atrasada. Tinha apartamento no centro de Curitiba, duas empregadas e na escola nunca entregava um trabalho dentro do prazo.
Gustavo chegava atrasado a todos os plantões.
Maria não podia ver trabalho que se escondia.
Fábio tentou me contratar para fazer uma monografia sobre saúde do trabalhador para ele.
Mário só assistia filmes de ação e achava Deus e o Diabo na terra do sol um filme idiota e mal feito.
Eduardo achava que as músicas que eu escutava eram de mau gosto ou bregas.
Soraya achava que todos os homens eram iguais e não prestavam.
Fabiola era filha da orientadora pedagógica da escola. Não notava que eu era apaixonado por ela, mas dançava comigo nos bailinhos da quarta série na escola Roberto Brezenzinsk em Campina da Lagoa. Hoje é reporter da TV globo no Paraná.
Barbara gostava de cheirar cola, mas já havia experimentado cocaína, maconha e crack.
Seiko era muito organizada e metódica.
Tamara queria sempre levar vantagem em tudo e sobre todos.
Sheila queria escolher as camisas que eu deveria usar.
Marcia era uma gênia, mas nunca soube ganhar dinheiro.
Seu José sempre defendia os capitalistas, fazendeiros e políticos de direita.
Cristiane era possessiva. Não tolerava disputar minha atenção com outras pessoas.
Guilherme batia na namorada, algumas vezes apanhava também.
Toninho vivia me dizendo para fazer faculdade e se desesperava com meu descaso intelectual.
Ednei (todo sábado) me convidava para tomar cerveja, comer batata frita com queijo e falar mal da Sirley, de Jaime ou de qualquer outra pessoa.
Marilus fumava demais e jogava fumaça na minha cara.
Gilmar dizia que só idiotas gostavam de Mamonas Assassinas, mas ouvia escondido em casa.
Rafael ficava com o cabeço em pé cada vez que eu dizia as minhas verdades.  
Jaldemir tolerou-me enquanto pôde e despediu-se sem mágoas. 
A minha convivência com todos eles foi boa e duradoura. Acredito que porque nunca tive que me anular, nunca tive que deixar de ser eu mesmo ou concordar com todas as ideias diferentes deles e eles com as minhas.

Alguns nomes (mas nem todos) foram alterados para evitar identificar pessoas vivas.
           
                                     [Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]




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