18 abril 2014

O DESEJO DE SER MENOS (O EXEMPLO QUE VEM DE CIMA)

Ernande Valentin do Prado


Paulo Freire diz que o homem nasceu para ser mais, quer mais, precisa de mais. Porém, ser mais dá um pouco de trabalho e há quem prefira ser menos, mesmo que, em palavras, nunca ouvi ninguém dizer isso. Nestes tempos, parece que realmente está compensando ser menor, fazer menos. Claro que Paulo Freire não estava falando do particular, do individual, mas de uma vocação do ser humano em procurar o belo, em completar-se, pois sabemos do nosso inacabamento. O que estou dizendo não contradiz em nada minha crença nos ensinamento de Paulo Freire. Acredito que o homem nasceu para ser mais, busca mais, quer mais, esforça-se por sem mais, porém o exemplo que vem de cima, das classes dominantes (e o poder ideológico é infectante) tem condicionado o modo como muita gente encara a vida e o necessário para viver ou sobreviver, sobretudo nas classes intermediárias, como os servidores públicos, por exemplo.
Noite destas estive debatendo com algumas pessoas sobre o Programa de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (PROVAB) e sobre as condições de trabalho em que acontece. Algumas pessoas, bem mais compreensivas do que eu, com outros referencias de vida, argumentavam que é muito difícil trabalhar no interior, sem infraestrutura, sem uma gestão consciente e competente, sem internet, sem transporte adequado. Concordo com tudo, mas fico pensando que a população destes lugares foi justamente quem patrocinou e continua patrocinando a formação desses profissionais, ontem na universidade, hoje no PROVAB, com, ao menos, oito horas semanais para dedicar-se a especialização. É difícil para eles, sem dúvida, principalmente se comparado com a vida que deveriam ter antes ou a que podem ter depois, mas e para população que paga e pagou, é menos difícil ver profissionais formando-se em universidades públicas e não ser beneficiado?
Particularmente acho uma vergonha um País como o Brasil, com tantas Universidades públicas, com bolsas de estudo em universidades particulares e até bolsa de iniciação científica que não inicia em nada ou com pesquisa que não se chaga a lugar nenhuma, ter que importar Médicos de Cuba (ou de qualquer lugar) para suprir a necessidade de profissionais.
Minha experiência com PROVABIANOS, no curso ou no dia a dia não é totalmente boa. Infelizmente não percebo mudanças qualitativas no fazer e nem no saber da maioria deles. Não vejo como falha do programa, mas como falha da implementação, falha na ação que deveria ser transformadora, falha no acompanhamento. Será que um profissional que passa entre 4 e 6 anos na faculdade não sabe que não basta apenas trancar-se no consultório e distribuir solicitação de exames, que é necessário conhecer o território, a vida das pessoas? Não será questão de vontade ser menor e isso é responsabilidade, primeiro do indivíduo, mas, sobretudo, de quem, sendo parte do programa, recebedor de uma bolsa para acompanhar, não o faz de fato, aceita desculpas e o direito sagrado do profissional em desconsiderar o que o sujeito precisa e merece?
Em muitos lugares, o PROVAB não está cumprindo sua função escrita no papel ou no arquivo digital, mas apenas provendo um profissional despreparado, desmotivado (e possivelmente domesticado) para o exercício do cuidado com ética, com compromisso social, com vontade ser mais. Dá para aceitar que isso acontece por falhas externa tão somente, por uma falha postural do indivíduo que não se vê como cidadão partícipe de uma sociedade? Será que é preciso que o profissional seja “vigiado e punido” para no fim dar muito pouco?  Em muitas cidades admitem-se as falhas, toleram-se as falhas, as negligências com suas atribuições, com o cumprimento do horário de trabalho, com a postura pouco humana e participativa, com a desonestidade, as falhas de caráter, mas será que deveriam tolerar? Não se está criando uma geração que consegue alargar a “tolerância”, o jeitinho desonesto, as desculpas na mesma proporção em que estreita a governabilidade para ser e fazer mais e melhor pelo simples fato de que pessoas merecem mais pelo simples fato de ser parte da comunidade  humana?
Em determinado local onde trabalhei, tive dificuldade em conseguir profissionais com vontade de ser mais (e não apenas Médicos, mas todos: Enfermeiros, Dentista, Técnicos de Enfermagem, ACD, ACS), não que estes profissionais motivados e sabedores de seu inacabamento não existam. Eles existem, mas não são tantos quantos necessários e estão dispersos e o atual sistema (o exemplo que vem de cima) não ajuda a que apareçam com facilidade e quando aparecem, percebem que não vale a pena ser honestos, sobretudo consigo mesmos, com suas escolhas, com o juramento que fizeram ao receber os diplomas.
No início de julho de 2013, um profissional ligou para Secretaria de Saúde querendo emprego. Perguntei por que queria sair de seu município, já que era do PROVAB e ele respondeu, como se fosse um direito sagrado, que onde estava queriam lhe “obrigar” a trabalhar três dias na semana. Fiquei intrigado e perguntei se por acaso o contrato lá não era de 40 horas, com 8 horas liberado para estudo e ele disse que sim, mas que sempre se dava um jeitinho. Ele queria trabalhar dois dias na semana. Infelizmente ou felizmente em nosso município não estávamos nessa de dar jeitinho (mesmo precisando do profissional). Na mesma semana recebi a visita de uma moça recém-formada à procura do primeiro emprego. Ela trouxe o pai e o noivo para negociar por ela, o que já demonstrava, no mínimo, falta de aptidão para Saúde Coletiva que estávamos fazendo. Expliquei-lhe  sobre nosso regime de trabalho, a tolerância zero com atraso, com faltas sem justificativas, etc, que contrataríamos por 20 horas, uma vez que não poderia trabalhar 40, como era nosso desejo. A pergunta do papai era se contrataríamos por 20 horas, mas pagaríamos por 40. Respondi que não, que isso seria uma prática imoral e desonesta, mas ele me acalmou dizendo que não tinha problema, que ela trabalharia 20 horas, mas produziria como se fosse 40, bastava que lhe disséssemos quantos “pacientes” deveria atender por dia. Realmente indecente, mas tenho certeza que, com essa conversa, deve ter conseguido emprego fácil, mas em outro lugar ou com outros gestores.
Infelizmente, essa é a realidade com a qual convivo e por mais que tente ser tolerante, no que a tolerância tem de bom, não aceito determinadas posturas pessoais ou coletivas, mesmo sabendo do condicionamento pelo qual as pessoas passam na vida. Paulo Freire diz que tolerância

desprovida, porém, de outra importante qualidade, a coerência, a tolerância corre o risco de perder-se. É a coerência entre o que dizemos e o que fazemos que, estabelecendo limites à tolerância não permite que ela se transforme em convivência. Posso, por exemplo, convivendo com neoliberais, discutir nossas posições, o que não posso é firmar nenhum acordo com eles de que decorram concessões que deteriorem meu sonho estratégico. Já não seria, neste caso, tolerante, mas convivente com a “poluição” de meu sonho[1]:60.

É por isso que posso aceitar que algumas pessoas achem o PROVAB ou o trabalho na Atenção Básica um sacrifício muito grande, mas não os posso tolerar em nome da individualidade ou da condicionalidade, pois a população precisa e merece profissionais com desejo de ser mais, de dar um jeito e não de dar uma desculpa.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Revisão – Jailson Conceição – Bahia



[1] FREIRE, P. À sombra desta mangueira. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.    

Um comentário:

  1. Ernande, tenho refletido muito sobre que profissional quero ser quando me formar. Espero ser de mais e ser de menos.

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