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02 maio 2018

Porque os sinos dobram



“Preocupar-se é tão mau como ter medo. Só serve para tornar as coisas mais difíceis.” - Ernest Hemingway

- Doutora você já sentiu o cheiro da morte?
- ... Por que?
- Eu senti bem pouquinho na mãe mas depois foi embora. Mas agora está vindo de novo.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

06 setembro 2017

O Fim da Vontade de ser mais


Caratinga-MG

Antes de partir de Caratinga onde estagiei com cuidados paliativos, Mônica a médica me entregou um livro e uma bola escrito “medicina”. “Para te acompanhar”, olhei para ela com significado, segurando o livro “O último sopro de vida” que ela disse “Achei que você ainda não tivesse lido esse, tem cara de ser bom”. O livro conta a história de um neurocirurgião que está com um câncer terminal e até o último momento tenta dar um significado a sua existência na escrita do livro. Comecei a lembrar dos pacientes que tentam dar um sentido para a sua existência até os últimos momentos também. 

Certamente esse significado não é da pessoa é meu, da família e perpassa todo o ninho de cuidado. 

Nos últimos dias de uma senhora que foi uma estilista, dona de uma loja de tecidos, empoderadíssima, ela não queria mais que fizéssemos a transfusão de sangue, escondia até os sangramentos para não preocupar os filhos, aos poucos todos fomos aceitando sua despedida. Ela me entregou sua bíblia, e advertiu “É bíblia de avó, está rabiscada por mim e pelos meus netos”. 

O fim da vontade de ser mais, também apareceu com um senhor que sempre trabalhou na roça, morava no alto do morro com sua esposa próximo ao filho, a casa era simples, com pedaços de panos pendurados para colorir, mas sempre tinha um café passado. Até que um dia não teve, percebíamos que havia dificuldades financeiras na casa até que ele explicou: “Sabe doutor, é que eu fiz uma conta muito grande na farmácia e não tem dinheiro para a comida” – fruto de internações recorrentes para tratar o edema e amenizar o câncer, além da Pressão Alta e diabetes mal controladas, pois não sabia ler e a cada nova receita ele colava o papel na porta de entrada e comprava os medicamentos (quase sempre os mesmos) novamente para desta vez melhorar, como não sabia a posologia acabava perdendo o sentido ao chegar em casa. Combinamos que aquele mês ele poderia pagar a conta que nós iríamos ajudar na casa, fizemos a feira e levamos lá, ele, sempre irreverente, falou que podia ter mais café. Mas estava feliz e repleto.

Teve um paciente que já não respondia a nada, não se movia uma dessas doenças complicadas. A esposa cuidava dele com carinho, as filhas, certo dia descobriram que eu fazia auriculoterapia, aí pediram para fazer nele. Eu fiz com carinho nele e na família, a esposa dele disse: “agora ele está mais bem cuidado”. Ele faleceu alguns dias depois, calmo e tranquilo.

Um homem jovem que morava com sua companheira e seu pequeno cachorro após resolvermos um pouco das suas dores queríamos ajudar ele a voar de paraglider, pois ele era piloto de Paraglider e adorava falar do vento, dos morros e do céu, tínhamos um plano de conseguir fazer ele ter forças para voar. Mas fomos surpreendidos com ele planejando o casamento com a esposa, apesar da vergonha por estar muito magro e parecer muito doente de terno. 

O último desejo de uma senhora, que nem era bem um desejo mas uma vontade, nem nós sabíamos que era o último era comer pudim. Bastou ela ver o pudim e sorrir. Chegamos na casa dela algumas horas depois e ela havia partido como um sopro. 

O senhor que sentou na beira da cama e que fizemos uma oração para quebrar uma maldição que ela acreditava ser a causa do seu câncer terminal, conversamos um pouco sobre como ele poderia se libertar e nos dias seguintes o estado geral declinou, aos poucos era muita energia para conseguir respirar. 

Teve uma senhora rodeada pelas irmãs que só sorria quando chegávamos. Sorria segurava nossas mãos e dava umas batidinhas. Era um sorriso feliz e repleto, até um pouco irônico sem mostrar os dentes. Quase sempre com os olhos fechados ela dava uma espiada para ver nós chegando. Não vi ela morrer, mas tenho certeza que foi sorrindo. 

Essas gentes sabidas, vivem até o último momento nos ensinando a queimar até o último lampejo a capacidade de encontrar um sentido no fim, tanto para si quanto para aqueles que os cercam. Entre viver e persistir, a vontade de ser mais vai ficando suspensa na respiração, até ela ficar lenta, ninguém morre inspirando, não que eu tenha visto, e sim com o último suspiro. 

Apesar de ser o fim, a vontade de ser mais continua nos outros, na família, amigos e equipe de cuidado. Na mãe que mesmo que perdeu o filho, segue a vida seu caminho sua arte, no neto que ainda tem muito que crescer e “é mais” desenhando personagens de Dragon Ball, no irmão que segue pescando, na filha que volta ao trabalho. A vontade de ser mais termina, mas não para. 

Abraços que pousam, 
Mayara Floss

08 janeiro 2016

TRILOGIA DA SOLIDARIEDADE



CENA 1 - Coisas importantes para se fazer antes de morrer


Estendido no asfalto,

suas forças esvaiam-se aos poucos.

Era nítido seu estado.


A vida separava-se de seu ser,

como uma vela que vai se apagando lentamente

na brisa de uma noite fria.


Antes de fechar os olhos,

disse:

cuide de meu cachorro, gosto muito dele.


CENA 2 - Sem sangue


O corpo desceu numa velocidade espantosa,

os quinze andares que o separavam do chão.

lá embaixo, grudou-se ao asfalto.


O silêncio: tomou conta da multidão,

só por alguns segundos,

neste intervalo, câmeras digitais foram apontadas para o crânio partido.


Lúcia

foi para casa,

quando o corpo morto deixou de ser novidade.


O namorado,

sentado no sofá da sala, de frente para tv ligada,

ansioso, esperava.


Lúcia,

Olhos vazios, distantes,

jogou a bolsa no sofá, foi até a cozinha.


Encheu um copo com água:

tentou beber, quis chorar.

- Eu sou uma burra mesmo: isso não podia ter acontecido comigo.


CENA 3 - Resgate


- Vamos rápido com isso. Tá muito frio.

- Jeito lazarento de morrer.

- E tinha que ser hoje? Por que não esperou até o tempo esquentar um pouco?

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

01 janeiro 2016

INACABAMENTO

Arte criada a partir de desenho apresentado no Sarau do Rua Balsa das 10.
4ª Mostra Nacional de experiencias e reflexões em extensão popular - João Pessoa, dezembro de 2015
Ernande Valentin do Prado

Mesmo (deitado)
ainda posso ver os últimos raios de sol
lançando sombras na parede nua

Eu sei (prometi)
mas no fim
parece que é só isso que se pode fazer

ficar sentado
com a boca aberta (cheia de dentes)
esperando a morte chegar.

Nem todo mal (que posso) ter causado
nem toda satisfação que (posso) ter dado
pode mudar (o que aconteceu)

Nada (absolutamente nada)
com o tempo
restará (quando eu for)

Nem um retrato (na parede)
Vou ser esquecido
Desaparecer das memórias

como
lágrimas
na chuva

Só restará (talvez) como testemunha
essa sensação de inacabamento
que (mesmo agora) persiste.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

19 agosto 2015

Aperta-solta-solta




2:47 AM
Nasceu. Faço uma prece (ou um grito silencioso): “chora, chora, chora”. Silêncio. Primeiros segundos.Fonte de calor, posiciona, aspira, seca – repito como um mantra, enquanto posiciono, aspiro e seco. Sonda traqueal nº8. Clampeamento do cordão, por um segundo não encontro o clamp. Coloco o estetoscópio, já sei que o coração bate devagar. Peço para colocar o saturometro.  Inicie a ventilação com pressão positiva. A mãe olha atenta o que fazemos, sinto o olhar. Balão auto-inflável, volume 500mm, máscara anatômica. Ventilação com Pressão Positiva com ar ambiente iniciada, algumas mãos para ajudar. Apgar: 0.

2:48 AM
Mantenha a frequência, não aperte tanto, nem vá tão devagar. A sala está quente. A frequência cardíaca de 80 batimentos por minuto. Padrão respiratório irregular. Coloca o oxigênio suplementar. Alguém coloca em algum momento o saturometro que ainda não começa a marcar. Revise a técnica.

2:50 AM
Saturação 65% . Frequência cardíaca 84. Tudo tão simultâneo. Entubar. Lâmina reta, 00. Cânula 3. Material para fixação da cânula. “Meu filho está bem?”. Não consigo responder, parece que meu cérebro não consegue nem captar a pergunta. O óculos embaça. Tranco a respiração para conseguir entubar. Você tem 30 segundos, está informação bate em mim. Enquanto olho o ponteiro do relógio. Visualizo as cordas vocais, tão pequeno. “Chora, chora, chora”. Aviso: avisem a UTI.

2:51 AM
Em algum ponto meu corpo diz “sede”. Tanto faz. Siga por aquela pequena vida, siga o protocolo, siga as instruções, apenas siga. “Meu filho está bem?”, alguém responde que não. Não vejo o choro, mas sinto o choro. O recém nascido não chora. Eu não choro. Tudo para dar tão certo, e vai tão errado. Frequência cardíaca caindo, beirando o 70, penso “menor do que 60 iniciar massagem cardíaca”. Enquanto o ritmo “aperta-solta-solta” misturado como beep do saturometro, e o cheiro do bisturi misturam meus sentidos. Revise a técnica.

2:52 AM
Iniciamos a massagem cardíaca: “Um e Dois e três e Um e Dois e Três...”. Um compasso (des)sincronizado. Os minutos ou parecem muito rápidos, ou muito lentos. A dilatação do tempo nunca foi tão evidente. A pressão da mãe sobe. O anestesista controla. Enquanto alguém assume o dueto “Um e Dois e três e Um e Dois e Três”. Apgar: 0.

2:53 AM
Frequência cardíaca: 50. Estimo o peso, pequenino. Enquanto preparo o cateterismo umbilical. Uma dose antes de adrenalina 0,1 mg/kg endotraqueal. Prepara a adrenalina. Fora a adrenalina que corre em meu sangue. Consigo cateterizar o umbigo. A sala fica abafada, e é até possível encontrar um silêncio. Adrenalina EV 0,03 mg/kg. Repetir em 3 ou 5 minutos.

2:54 AM
Retomo o “Um e Dois e três e Um e Dois e Três”. Os olhares começam a demonstrar que talvez estejamos perto do fim. Frequência caindo. A decisão de parar a reanimação é minha. Porque eu escolhi medicina?

2:55 AM
Assistolia. O beep fica continuo.

2:57 AM
Mal nasceu e já partiu.

3:15 AM
O primeiro gole de água desce pela garganta. E a primeira lágrima desce pelo rosto. O ritmo, o barulho, o cheiro, o beep, a mãe, a respiração, o calor, tudo parece que continua. Escuto. Logo vem o aviso: “vai nascer mais um”. E ainda preciso preencher os papéis.

* História fictícia, mas nem tanto. 

Voam abraços,
Mayara Floss

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