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05 novembro 2016

Um encontro alegre e assustador

Arte de Alice - 2014
Benedito Vasconcelos

(Uma história boa de ler, sobre um tema difícil de aprender, Ou:  Uma história para criança aprender a ler e a viver juntos, nas diferenças).

Numa casa de animais,
Um gato morava no sofá,
Um rato morava no sapato,
Junto com um sapo.

O gato nunca saía do sofá.
O rato e o sapo nunca saíam do sapato.

Um dia,
O gato saiu do sofá
E foi passear.
Neste mesmo dia,
O rato saiu do sapato
E foi passear.

No meio da sala,
O gato viu o rato,
O rato viu o gato,
Ai, ui. Foi um susto sem fim!
O gato nunca tinha visto um rato.
O rato nunca tinha visto um gato.

Apavorados, ficaram parados, paralisados.
Sem nada fazer.
De susto, o gato riu.
O rato riu, também.
Riram sem parar...

Lá do sapato,
O sapo gostou do que viu e riu.
Riu tanto, o seu riso virou música.
Ao som da música do riso do sapo,
O gato e o rato ficaram a dançar.

O gato, o rato e sapo ficaram amigos.
E dançam até agora, sem parar...

[Benedito Vasconcelos foi convidado por Ernande: convidado publica na Rua Balsa das 10 aos sábados e domingos.]

31 agosto 2016

O brilho

A Janela
- A pesca mudou muito Mayara - estava a me contar Suzi - era muito bonito antes - fico olhando-a - agora é quase tudo industrial. - respondo apertando os lábios.
- A culpa dos meus filhos terem virado pescador é minha, eu levava eles pequenos para pescar comigo, não tinha com quem deixar colocava eles no bote e ia pescar, desde pequenininhos - ela sorri, eu sorrio também é pergunto - mas dai era pesca artesanal? - ela responde - Sim, era pesca artesanal, tinha o brilho, é diferente das redes de hoje que pegam tudo e matam tudo, tem que saber cuidar e preparar, tem peixe que eles jogam fora e dá para comer, fica igual a atum de latinha só cozinhar com vinagre, óleo e sal na panela de pressão - ela segue - mas agora a malha pega todos os peixes, não sobra nada para o pescador artesanal, eles vem roubam todos os peixes, deixam a sujeira e depois a culpa é de quem? Do pescador artesanal -. 
Nos olhamos, ela continua - você tem que ver Mayara, como é bonito quando íamos pescar os camarões à noite e colocava a luz enquanto ia enchendo a rede e depois colocava no bote tinha tanto brilho, depois a gente já limpava para ganhar um pouco mais de dinheiro no mercado público. O peixe então, Mayara, tinha brilho, as escamas passavam assim e batia um brilho no olho - enquanto ela explica o movimento do peixe com as mãos ondulando.
- Aí eu já limpava o peixe para ganhar mais dinheiro nas postas de filé... Agora não é mais assim Mayara, não é. 
 
Pergunto-me se esse brilho da pesca  é como o mesmo brilho que se perde nos olhos dos profissionais  da saúde? 

Abraços que pousam,
Mayara Floss

04 dezembro 2015

CORRENTINHA DE CROCHÊ

Charge: ladrões de utopia[1]
Ernande Valentin do Prado

Em 1996, num sábado, por volta das 20 horas, as vésperas das eleições, entrei no comitê de campanha do Partido do Trabalhadores (PT) no Bairro Eucaliptos, na cidade de Fazenda Rio Grande, região metropolitana de Curitiba. Rosa e Salete faziam correntinhas de crochê embaixo da melhor lâmpada da sala, para amarrar as credenciais que seriam usadas no dia seguinte pelos fiscais e delegados do partido na eleição.
Alguém tomou para si a tarefa de confeccionar e imprimir, em casa, cada uma das credenciais que os militantes destacados para fiscalização das sessões eleitorais usariam. Ficou muito bonito, elegante, bem feito, expressava toda a dedicação da militância àquela campanha. Neila, Fernando e Ednei, colaram cada uma das figuras no papel cartão, que alguém trouxe de uma gráfica aonde trabalhava, já cortado no tamanho certo e com os furos por onde passaria o barbante.
Mas para Rosa e Salete, barbante era inaceitável:
— Fica feio, disseram elas.
— Vão dar conta de fazer correntinhas para todas as credenciais? Perguntei incrédulo e achando aquilo uma perda de tempo.
— Claro, já fizemos tudo isso, respondeu Rosa e Salete mostrou uma caixa com as credenciais e as correntinhas que já estavam prontas.
— Mas não têm nada mais importante para fazer, ainda indaguei, sem me dar por vencido.
— Não! Disseram de forma categórica.
Salete, Rosa, Neila, Fernando, Ednei, Dona Maria, Toninho, Samuel, seu Moura, Chico Bento, Abel, Santino, Bonette, Domingos, Zé Aparecido, Zé Francisco e seus irmãos, Vilmar, Emerson, Lirani, Dowglas, José Marcelo, Sirlei e mais duas dezenas de pessoas, que nem consigo lembrar os nomes, passaram o dia a disposição do partido: atenderam quem procurava o comitê atrás de informações, lembravam o local e o horário das votações, aonde cada militante deveria se posicionar no dia seguinte para o último esforço. Cálculos dos institutos de pesquisa diziam que 30% dos votos eram conseguidos na boca de urna, e ninguém fazia isso tão bem quanto a militância do PT. 
Rosa e Salte distribuíam o material aos militantes, orientavam como cada um deveria agir, quem procurar em caso de problemas, de precisar de mais material, a hora que chegaria o lanche, o companheiro de dupla e revezamento.
— A gente passou o dia aqui, fizemos tudo isso e tudo que falta vai ficar pronto até amanhã, não esquenta a cabeça.
— Mas já é tarde, tem muita coisa para fazer, ainda insisti! Os dedos de vocês devem estar doendo, devem estar cansadas e amanhã ainda vamos trabalhar o dia inteiro.
— Quer parar de encher o saco! Disse Salete com seu costumeiro sorriso gigante no rosto. E concluiu: pegue aqui uma correntinha e passe por esse buraquinho...
No dia seguinte iriamos pôr a prova toda nossa campanha. Já tinha agendada uma festa de comemoração para as 20 horas no comitê do Partido, construído de forma coletiva no terreno do Domingos. Depois da meia-noite, um grupo ainda sairia para posicionar material de campanha em pontos estratégicos e retirar material dos adversários da direita. Foram meses de preparação, de trabalho diário, de vivências intensas, muito aprendizado, confraternizações, solidariedades, trabalho coletivo. Era a primeira eleição municipal do recém formado diretório municipal. Não tínhamos nenhum cabo eleitoral, nenhuma pessoa contratada para trabalhar exclusivamente nas eleições. Cada um dos candidatos a vereador, o candidato a prefeito, a vice, os coordenadores de campanha, foram escolhidos de forma democrática em cada um dos quatro núcleos espalhados pela cidade. Todos os militantes filiados ao partido puderam e votaram, de forma que o resultado lógico era se responsabilizar pela campanha, pelo mandato de cada um dos eleitos (caso houvesse). O comitê de campanha foi emprestado por um militante (Zé Aparecido), metalúrgico que tinha a sala para aluguel, mas deixou para gente usar, também cuidou de toda pintura do ambiente, pagava a água e a energia. O comitê fazia tanto sucesso, ficava cheio o dia todo com voluntários e até com adversários que passavam para bater papo e espionar. Depois das aulas juntavam estudantes em frente ao comité e ficavam entregando panfletos para os passantes e para os carros que desaceleravam no quebra-molas. 
Tínhamos uma Kombi muito velha à nossa disposição, também emprestada por um dentista, Luiz, candidato a vice prefeito e casado com a Rosa. O combustível a gente conseguia fazendo “vaquinha” entre todos ou quem dirigia se encarregava de encher o tanque. Com ela andávamos toda a cidade fazendo campanha, carregando pessoas e material: panfletos, cartilhas, cartazes, baldes com cola, que Domingos nos ensinou a fazer, e tinta, broxas e pincéis. Não era difícil ela enguiçar e pessoas da comunidade empurrar para pegar no tranco. Quem dirigia a Kombi, quase sempre, era o Toninho (meu irmão), o Elvis, o Bonette, o Leslie, nosso candidato a prefeito. Todos os fins de semana, sábados e domingos, feriados, dias santos, que antecederam os sessenta dias finais das eleições. A militância se reunia bem cedo: crianças, mulheres, idosos, homens, gente das igrejas, das associações de moradores, dos sindicatos, das escolas: professores, estudantes, zeladores. Cada fim de semana visitávamos casa por casa de determinado bairro: distribuíamos material de campanha, colávamos adesivos nas janelas, nos portões, nos carros e, principalmente, conversávamos com as pessoas. Chamávamos de arrastão. Íamos em peso, com a Kombi de apoio, quem tinha carro ia com ele, quem tinha bicicleta, moto, ia com elas, que não tinha nada ia a pé ou na Kombi (uma vez apareceu uma charrete).
No fim do dia, por volta das 18 horas, nos reuníamos no comitê de campanha e avaliamos o que tínhamos conseguido. Em todas as reuniões alguém aparecia com um bolo, uma torta, um prato de salgado. Fazíamos um leilão estranho: calculava-se o valor do bolo, determinava-se que tínhamos que arrecadar o valor. Cada um dava o que podia ou queria. Com o dinheiro comprávamos refrigerantes no bar da frente. Quase sempre o dono do bar dava os refrigerantes ou um desconto muito significativo. Era a forma dele participar. E quase sempre sobrava dinheiro para as despesas da campanha (quase nada, mas somava-se a outros quase nada).
Era o momento da celebração do dia. Microempresário, pedreiro, profissional liberal, músico, professor, dentista, metalúrgico, motorista de ônibus, sapateiro, padeiro, advogado, todos ombro-a-ombro. Os adolescentes contavam histórias das visitas, as discussões com pessoas que não acreditavam que o partido era uma opção, que nossos candidatos eram honestos, que não recebíamos doações de empresários, que iriamos mudar a cidade, o estado, o Brasil, o mundo. As mulheres vinham com seus filhos, com o marido ou não. O bebê da Rosa passava de braço em braço enquanto ela, sempre ocupada, dava jeito em alguma coisa. Os militantes da igreja falavam de sua fé, do que representava aquele dia, aquele estar junto. Os do sindicato falavam do momento histórico, da união da classe trabalhadora. Quem estivesse afim falava: as lideranças, os candidatos, os militantes, curiosos que se juntavam por causa do barulho, da agitação, por ver rostos conhecido, por querer comer o bolo. Era, mais do que qualquer coisa, uma festa, um momento de confraternização, de combinar aonde seria o próximo arrastão, o que seria feito durante a semana. 
Quase sempre apareciam para trabalhar na campanha durante a semana: estudantes, pessoas de folgas ou desempregadas. E, mesmo quem trabalhava o dia todo, oferecia-se para distribuir panfletos na fila de ônibus, antes de embarcar, na porta da firma, fazer visitas em casas de conhecidos, depois do trabalho.
Nosso candidato a prefeito tinha uma Brasília amarela muito velha, com ela andava para todo lado fazendo campanha. Parava o carro nos lugares mais movimentados e deixava tudo aberto.
— Não vai fechar, perguntava eu? Ele respondia: quem vai querer roubar o carro de um PTista?
Em um certo sábado, estava agendo a pintura de um muro, cedido em um lugar muito bom do bairro, por onde passava a principal linha de ônibus, visibilidade gigante. O morador disse que todos os candidatos haviam ido lá pedir o muro, queriam até pagar pelo espaço, mas ele não cedeu. Para lá foi Vilmar, nosso pintor de muro, de faixas, enfim, tudo que era arte, letras e cores, era com ele. Quase sempre fazia isso nas horas de folgas e, embora fosse seu ganha pão, nada cobrava pelo serviço e, muitas e muitas vezes, ainda dava a tinta, os pinceis, as réguas.
Quando cheguei já vi de longe uma aglomeração de gente. Quase sempre, nos fins de semana, essas atividades viravam festa. Lá estava nosso candidato a prefeito ajudando a pintar o muro, segurando a régua para Vilmar riscar. Até tinta no rosto já tinha.
— Você tem mesmo que estar aqui, disse eu, sem esconder certa irritação e impaciência. A tarefa dele, naquele dia e horário, não era pintar muro.
— Vim ajudar, respondeu na maior calma.
Leslie era quase sempre muito calmo e relevava meu senso de planejamento quase sempre na fronteira entre a objetividade e o autoritarismo. Ele foi meu professor de Literatura no segundo grau, no Colégio Décio Dossi. Estávamos na primeira reunião de fundação do PT em Fazenda Rio Grande, sem que um soubesse das atividades “subversivas do outro”. E foi o primeiro candidato a prefeito de nossa história na cidade. Depois, em outra eleição, foi o vereador mais votado, mas isso é outra história.
— Você não deveria estar na reunião com a associação comercial?
— Já fui, terminou logo, não tinha quase ninguém. Por isso vim ajudar aqui.
— Tá bom, disse eu. Mas não precisa pintar mais, deixa o Vilmar trabalhar, tem gente demais para ajudá-lo.  Vamos aproveitar para distribuir uns santinhos, fazer visitas as lideranças da paróquia que moram aqui perto.
Leslie, sem discutir, disse:
— Então vamos.
O que queria dizer, quando comecei essa conversa, é o seguinte: as correntinhas de crochê, apesar de hoje não significar absolutamente nada para o que o PT se tornou, era só uma delicadeza coerente, bonita, significativa e representativa de um modo de fazer/ser, como todas as outas que vivemos nessa eleição de 1996 em particular, mas também durante mais de 10 anos de intensos sonhos e utopias, com ou sem eleições para disputar.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


1. Para saber mais sobre Lor, o cartunista que fez essa charge, clique aqui 

19 agosto 2015

Aperta-solta-solta




2:47 AM
Nasceu. Faço uma prece (ou um grito silencioso): “chora, chora, chora”. Silêncio. Primeiros segundos.Fonte de calor, posiciona, aspira, seca – repito como um mantra, enquanto posiciono, aspiro e seco. Sonda traqueal nº8. Clampeamento do cordão, por um segundo não encontro o clamp. Coloco o estetoscópio, já sei que o coração bate devagar. Peço para colocar o saturometro.  Inicie a ventilação com pressão positiva. A mãe olha atenta o que fazemos, sinto o olhar. Balão auto-inflável, volume 500mm, máscara anatômica. Ventilação com Pressão Positiva com ar ambiente iniciada, algumas mãos para ajudar. Apgar: 0.

2:48 AM
Mantenha a frequência, não aperte tanto, nem vá tão devagar. A sala está quente. A frequência cardíaca de 80 batimentos por minuto. Padrão respiratório irregular. Coloca o oxigênio suplementar. Alguém coloca em algum momento o saturometro que ainda não começa a marcar. Revise a técnica.

2:50 AM
Saturação 65% . Frequência cardíaca 84. Tudo tão simultâneo. Entubar. Lâmina reta, 00. Cânula 3. Material para fixação da cânula. “Meu filho está bem?”. Não consigo responder, parece que meu cérebro não consegue nem captar a pergunta. O óculos embaça. Tranco a respiração para conseguir entubar. Você tem 30 segundos, está informação bate em mim. Enquanto olho o ponteiro do relógio. Visualizo as cordas vocais, tão pequeno. “Chora, chora, chora”. Aviso: avisem a UTI.

2:51 AM
Em algum ponto meu corpo diz “sede”. Tanto faz. Siga por aquela pequena vida, siga o protocolo, siga as instruções, apenas siga. “Meu filho está bem?”, alguém responde que não. Não vejo o choro, mas sinto o choro. O recém nascido não chora. Eu não choro. Tudo para dar tão certo, e vai tão errado. Frequência cardíaca caindo, beirando o 70, penso “menor do que 60 iniciar massagem cardíaca”. Enquanto o ritmo “aperta-solta-solta” misturado como beep do saturometro, e o cheiro do bisturi misturam meus sentidos. Revise a técnica.

2:52 AM
Iniciamos a massagem cardíaca: “Um e Dois e três e Um e Dois e Três...”. Um compasso (des)sincronizado. Os minutos ou parecem muito rápidos, ou muito lentos. A dilatação do tempo nunca foi tão evidente. A pressão da mãe sobe. O anestesista controla. Enquanto alguém assume o dueto “Um e Dois e três e Um e Dois e Três”. Apgar: 0.

2:53 AM
Frequência cardíaca: 50. Estimo o peso, pequenino. Enquanto preparo o cateterismo umbilical. Uma dose antes de adrenalina 0,1 mg/kg endotraqueal. Prepara a adrenalina. Fora a adrenalina que corre em meu sangue. Consigo cateterizar o umbigo. A sala fica abafada, e é até possível encontrar um silêncio. Adrenalina EV 0,03 mg/kg. Repetir em 3 ou 5 minutos.

2:54 AM
Retomo o “Um e Dois e três e Um e Dois e Três”. Os olhares começam a demonstrar que talvez estejamos perto do fim. Frequência caindo. A decisão de parar a reanimação é minha. Porque eu escolhi medicina?

2:55 AM
Assistolia. O beep fica continuo.

2:57 AM
Mal nasceu e já partiu.

3:15 AM
O primeiro gole de água desce pela garganta. E a primeira lágrima desce pelo rosto. O ritmo, o barulho, o cheiro, o beep, a mãe, a respiração, o calor, tudo parece que continua. Escuto. Logo vem o aviso: “vai nascer mais um”. E ainda preciso preencher os papéis.

* História fictícia, mas nem tanto. 

Voam abraços,
Mayara Floss

20 maio 2015

Cambia todo cambia

 Eu decidi parar e estudar as raízes da medicina e saúde ocidental a inspirado (mas não limitado) pelo livro “The Sociology of Health: Principles, Professions and Issues” do autor Frederic D. Wolinskt (livro de 1980 que parece que foi escrito ontem). Senti-me escutando a música da Mercedes Sosa “Cambia todo cambia” (muda tudo muda). Talvez entre mais uma mudança da visão médica. Segure-se nessa balsa, que vamos navegar por esses mares de tempo e mudanças. 

Mar de mudanças. Fonte: http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=710220&tm=8&layout=121&visual=49


 Mais ou menos em XV a. C. começaram a surgir a filosofia de Hygeia na Grécia antiga. A Deusa Hygeia é considerada a primeira filosofia relacionada a saúde. Uma grande raiz da filosofia grega que dizia que a função fundamental da medicina era descobrir e depois ensinar (quem sabe dividir) os conhecimentos sobre o funcionamento do corpo humano que garantiriam uma mente e corpo saudáveis. A popularidade de Hygeia decaiu por volta de XII a. C. com o surgimento do culto de Asclépio (que a maioria conhece a história ou pelo menos símbolo de Asclépio – ou Esculápio - a cobra enrolada num bastão). Ele acreditava que a função fundamental da medicina (e do médico) era tratar a doença para restaurar a saúde, conhecido por usar facas e ervas. A visão mais voltada para cura-doença começou aí, e essa cura era feita através das correções das imperfeições do corpo humano.

Talvez mais famoso que Asclépio foi Hipócrates que a história que conhecemos é muito incerta baseada em uma série de livros que tem o seu nome (e que não foi escrita por ele). Mais famoso pelo seu juramento que fala de ajudar os doentes, não prejudicar e manter sagrada a relação médico paciente. Hipócrates foi o primeiro a deixar para trás os “fenômenos sobrenaturais” trabalhando de forma científica e sistemática. Também manteve a ideia de mente e corpo em harmonia e ele reafirmou a ideia de cuidar da pessoa como um todo e, embora pouco falado, Hipócrates dizia que o ambiente tem uma influência direta no entendimento das doenças.

 A pouco falada deusa Hygeia.
Bem depois de Hipócrates o império romano veio e se foi e a Igreja chegou com a idade das trevas colocando os conhecimentos da medicina em tumulto com o conhecimento religoso. Aliás o que sobreviveu do conhecimento médico também foi salvo pela igreja, e o que sobreviveu foi a medicina que apenas cuidava dos problemas físicos do corpo – saúde mental e problemas socioeconômicos eram problemas de Deus e da igreja. O ser humano como um todo da visão grega acabou repentinamente. 

Pulando para o século XVII chegamos a Descartes e o Racionalismo que focou ainda mais na divisão do corpo e da mente e que disse que a medicina deveria focar unicamente no corpo. Descartes inclusive referiu que a mente deveria ficar a cargo de Deus e os seus agentes. Ironicamente, talvez, a grande mudança da medicina da filosofia cartesiana para uma visão mais humana veio com a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, isso veio acompanhado da ideia do indivíduo isolado para a medicina no contexto da sociedade. Os utopistas começaram a trazer o senso de humanização para a saúde. A Revolução Industrial deixou as cosias óbvias, relacionadas a comida, poluição e condições sanitárias. Se a motivação destes utopistas foi aumentar a produtividade dos trabalhadores ou realmente ajudar isso não é a parte central dessa discussão, mas sim o fato que a Hygeia voltou um pouco diferente para discussão originado a palavra “higiene”. Inclusive começou a se dizer que as técnicas mais efetivas para evitar as doenças vieram das ações corretas e medidas sociais da industrialização. 

Depois, ciclicamente, diga-se de passagem, veio a era dos germes com os trabalhos de Pasteur e Koch e as pesquisas com bactérias. Eles postularam que “toda a doença tem uma causa patológica” (e também reforçou o nosso raciocínio clínico e uma das formas de “onipotentes” da medicina, da investigação de tentar descobrir – e da frustração de não ter explicações quando não é possível, e só dessas frustrações que às vezes sai um “é a medicina não resolve tudo” e a sensação de falha). Também é neste ponto da história que começamos a discutir mais fortemente sobre a fragmentação, é aqui que se refere à doença e não mais ao paciente -“nos temos uma cirrose no leito 211” ou “HIV positivo com complicações no isolamento” (entre outros vários exemplos). Por aqui que os médicos se tornaram mais mecânicos e mercadores. 

Uma apendicite no 403” ou “Uma ‘bruxaria’ (doenças inexplicáveis ou de difícil diagnóstico que ainda não foram elucidadas) no 315”. Imagem ilustração de Salvador Dalí para a obra a Divina Comédia.
Por volta da metade do século XX voltamos a falar da pessoa como um todo. E a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1948 disse que as dimensões da saúde devem ser trabalhadas em relação as dimensões físicas, psicológicas e sociais – o “famoso” bem estar biopsicossocial. É aqui que se começa a discussão de que a saúde é um processo adaptativo e não estático (que sempre pode ser comprado ou alcançado). E em 1985 o conceito da saúde da OMS também muda: “a saúde é uma fonte de todos os dias, não o objetivo da vida; é um conceito positivo que enfatiza as fontes sociais e pessoais e também as capacidade físicas”. Volta-se a discussão e orientação para que os profissionais de saúde compreendam que as definições restritas das doenças são puramente um fenômeno fisiológico. Inclusive, neste contexto adoro a frase de Melody Goodman professora de saúde pública da Universidade de Washington “Your zip code is a better predictor of your health than your genetic code” (o seu Código de Endereço Postal – vulgo CEP - é um previsor melhor da sua saúde que o seu código genético). Inúmeras vezes vejo essa frase do William Osler no final das palestras de vários médicos “O bom médico trata a doença, mas o grande médico trata a pessoa com a doença.” Eu gostaria de fazer um corte nesta frase, quem sabe emendando ela com uma visão mais global da saúde que o “o bom profissional da saúde cuida da pessoa” (sem a doença). 

Brazilian States by Municipal Longevity index.svg

“O seu Código de Endereço Postal – vulgo CEP - é um previsor melhor da sua saúde que o seu código genético” – Pensando em Brasil é “fácil” ver isso analisando o IDH relacionado a saúde você morar no Nordeste determina se você irá viver mais ou menos (longevidade). "Brazilian States by Municipal Longevity index" por User:Juniorpetjua - http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e0/Brazilian_States_by_Longevity_index.svg. Licenciado sob CC BY-SA 3.0 via Wikimedia Commons.

 Assim como tudo muda, a saúde muda também e a nossa forma de navegar, acredito nesta mudança e nos desafios diários de trabalhar com diferentes visões e tempos da medicina e saúde. Assim como eu já passei por várias mudanças dentro da medicina (e fora dela), posso mudar novamente. Sim, já coloquei todas as minhas apostas na clínica médica (que é muito importante), mas me vi frustrada com o paciente voltando com os mesmo problemas, a mesma desidratação, a mesma fome da barriga e de viver, e vejo essa medicina pontual mudando para uma visão global onde o endereço do paciente, e as condições socioeconômicas definem mais sua saúde e o trabalho dos profissionais da saúde. Voltando a Mercedes Sosa "Cambia el modo de pensar/ Cambia todo en este mundo (...) Y así como todo cambia/ Que yo cambie no es extraño" (Muda a forma de pensar/ Muda todo este mundo (...) E assim como tudo muda/ que eu mude não é estranho).

"Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
Cambia todo en este mundo (...)"


Voam abraços,
Mayara Floss

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 quase todas as 4as-feiras]

03 outubro 2014

ACEITAR NÃO É (NECESSARIAMENTE) CONCORDAR [Ernande Valentin do Prado]

Ernande Valentin do Prado

Marcelo era machista, metido a garanhão e tratava as mulheres como objeto. Costumava dar notas para cada uma segundo seus atributos físicos.
Beto não concordava com nenhuma de minhas propostas nas reuniões do grêmio escolar. Costumávamos quebrar o pau nas reuniões, quando lhe dizia que não adiantava puxar o saco dos professores.
Orlando era populista (além de mulherengo). Na rua mexia com todas as mulheres, o que me obrigava a andar do outro lado da calçada. Nos debates no diretório municipal do Partido dos Trabalhadores (PT), sempre concordava com os argumentos de todas as posições.
Paulo era erudito, tinha memória fotográfica, sempre sabia mais do que os professores e via na literatura um valor supremo e um fim em si mesma.
Adilson sempre via uma razão divina para os acontecimentos terrestres e orava por mim em sua igreja. No meu primeiro emprego foi me visitar. Passou mais de 18 horas no ônibus e encarou 40 graus de temperatura. Na época nem geladeira tinha na minha casa.
Altair ia para aula com camiseta rasgada do Iron Maiden. Comia mais do que todo mundo e era mais magro que todos.
Adriano sempre deixava comida no prato, nos restaurantes onde a gente dividia a mesa. Quando pegava em um microfone não parava de falar.
Ademar era o sujeito mais completo que eu conheci. Sempre apontava contradições no meu discurso. É um dos padrinhos de Alice.
Ronaldo descobriu que adora ser Policial Militar (PM). É outro padrinho de Alice.
Junior era humilde demais, generoso demais, solidário demais. E às vezes também era debochado e irônico demais. É o terceiro padrinho de Alice.
Herivelton não discutia, contava histórias e ia ao “bailão gauchesco” três vezes na semana.
Mirian usava roupas que me deixava constrangido.
Adalberto mentia de forma descarada. Apesar de diplomado em Universidade Federal, não sabia escrever um bilhete com coerência.
Helena achava Florence uma heroína que só tinha virtudes, mesmo tendo ajudado o império Inglês a legitimar a guerra.
Sirley me ligava tarde da noite em casa sem motivo nenhum, a não ser para saber onde eu estava.
Cecília queria ganhar muito dinheiro para comprar tudo que tivesse vontade. Seu maior sonho era arrumar um marido rico para lhe sustentar.
Paula achava o cúmulo do ridículo a professora não conseguir pronunciar o plural nas frases ou errar a concordância verbal. Ficava zombando, desqualificando e ignorando todas as outras qualidades que a professora tinha.
Luciana ia de carro importado para a aula. Chegava sempre atrasada. Tinha apartamento no centro de Curitiba, duas empregadas e na escola nunca entregava um trabalho dentro do prazo.
Gustavo chegava atrasado a todos os plantões.
Maria não podia ver trabalho que se escondia.
Fábio tentou me contratar para fazer uma monografia sobre saúde do trabalhador para ele.
Mário só assistia filmes de ação e achava Deus e o Diabo na terra do sol um filme idiota e mal feito.
Eduardo achava que as músicas que eu escutava eram de mau gosto ou bregas.
Soraya achava que todos os homens eram iguais e não prestavam.
Fabiola era filha da orientadora pedagógica da escola. Não notava que eu era apaixonado por ela, mas dançava comigo nos bailinhos da quarta série na escola Roberto Brezenzinsk em Campina da Lagoa. Hoje é reporter da TV globo no Paraná.
Barbara gostava de cheirar cola, mas já havia experimentado cocaína, maconha e crack.
Seiko era muito organizada e metódica.
Tamara queria sempre levar vantagem em tudo e sobre todos.
Sheila queria escolher as camisas que eu deveria usar.
Marcia era uma gênia, mas nunca soube ganhar dinheiro.
Seu José sempre defendia os capitalistas, fazendeiros e políticos de direita.
Cristiane era possessiva. Não tolerava disputar minha atenção com outras pessoas.
Guilherme batia na namorada, algumas vezes apanhava também.
Toninho vivia me dizendo para fazer faculdade e se desesperava com meu descaso intelectual.
Ednei (todo sábado) me convidava para tomar cerveja, comer batata frita com queijo e falar mal da Sirley, de Jaime ou de qualquer outra pessoa.
Marilus fumava demais e jogava fumaça na minha cara.
Gilmar dizia que só idiotas gostavam de Mamonas Assassinas, mas ouvia escondido em casa.
Rafael ficava com o cabeço em pé cada vez que eu dizia as minhas verdades.  
Jaldemir tolerou-me enquanto pôde e despediu-se sem mágoas. 
A minha convivência com todos eles foi boa e duradoura. Acredito que porque nunca tive que me anular, nunca tive que deixar de ser eu mesmo ou concordar com todas as ideias diferentes deles e eles com as minhas.

Alguns nomes (mas nem todos) foram alterados para evitar identificar pessoas vivas.
           
                                     [Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]




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