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29 abril 2016

LUTA DE CLASSES: A PRIMEIRA MORTE

Árvore no entardecer o pantanal - Ronaldo Ávila (2007)
Ernande Valentin do Prado
PARTE 1

Todas as vezes, desde que comecei a me lembrar, a história termina do mesmo jeito: eu morro. Não (essa não é a palavra certa) a história terminada sempre com você me matando. Nem sempre faz isso de frente, olhando nos meus olhos, dando-me a chance de me defender. Muitas vezes matou-me pelas costas, na traição, em emboscada, enganado, traído. Já atirou no meu peito e deixou meus restos para os animais, me esquartejou, queimou, pisoteou com cavalos, atropelou com caminhão, esmagou em desmoronamento de mina de prata. Já me envenenou, deixou-me morrer de fome, bem lentamente, todo dia. Também de sede, de diarreia por água sem tratar...  
Mas volto sempre. Você também!
De verdade não sei quando foi a primeira ver que me matou. A memória é uma coisa esquisita, mas é a única verdade que importa. Claro, não falo da verdade dos historiadores, todo mundo sabe que a verdade depende muito da sinceridade com que se consegue olhar para si mesmo, encarar seus defeitos, virtudes, medos, hombridade, imperfeições mesquinhas. Falo da verdade que só conhece quem a viveu, como nós.

A PRIMEIRA MORTE

A primeira vez que você me matou foi em uma caçada à raposa. O dia estava frio, mas de sol claro, bonito. Você era o senhor das terras, montado em seu cavalo murzelo, com a comitiva de caçadores, cães e servos. Usava botas pretas de couro, cano alto para não ferir os pés. Ao seu lado, em um cavalo pequeno, vinha sua futura esposa, Irina, de 16 anos, filhas de uma família nobre, vizinha da propriedade senhorial.
Eu corria descalços pela mata, sem folego, tinha os pés feridos, os lábios rachados pelo frio. Junto aos cachorros, enxotando a raposa em sua direção. Um fim inevitável.
Você estava atrás de arvores frondosas, no final da clareira, num terreno elevado de onde poderia ver quando ela aparecesse. A raposa deveria seguir o seu plano e entrar no terreno e ser facilmente abatida. Mas ela me enganou, enganou os cachorros, fez seus próprios planos de bicho livre, dona da própria vontade e deu a volta sem ser notada. Você queria impressionar a noiva, que usava um vestido rosa, mostrar como era bom de mira, dar um tiro certeiro e lhe oferecer à pele avermelhada do majestoso animal.
Ficou furioso quando a raposa não apareceu, quando viu que não cumpriria sua promessa à futura esposa. Atirou no meu peito, quando sai da mata no lugar da raposa. Acertou pouco abaixo do coração, dando-me algum tempo para perceber que estava morrendo.
- incompetente, molenga, imprestável, como uma raposa pode enganar um homem? Você gritava enfurecido.
Quando o tiro me acertou, não dei conta na hora, apenas percebi o impacto no estômago, como um soco muito forte. Sei porque antes já havia me esmurrado assim. As vistas escureceram, senti as pernas amolecer, os braços perder as forças, senti um gosto amargo na boca, respirava com dificuldade.
Você desceu do cavalo, a moça de vestido rosa, sentada de lado na cela, ficou montada, olhando-me sangrar, mas indiferente.
- Imprestável, você repetiu com olhos de ódio.
 – viu o que me fez fazer, seu patife? Ao menos não foi um dos cães treinados, isso sim seria uma perda de valor.
Imagino que perguntei por que, mas não tenho certeza. Você continuou gritando, rosto vermelho, exaltado, culpando-me por não acertar a raposa:
- Oras, insolente, onde já se viu questionar seu senhor!
O rosto estava transtornado, furioso, sentia-se ofendido em seu direito de senhor das terras, humilhado na frente de sua futura esposa.
- Insolente, insolente, gritava descontroladamente.
Outros caçadores e servos chegaram, rodearam meu corpo, tentaram me amparar, mas você berrou do alto do cavalo, já se retirando:
- Deixa esse imprestável aí para os animais selvagens matar a fome.
Bateu com os calcanhares na barriga do cavalo e partiu.
O ano era 1.808, estávamos na Rússia feudal preste a ser invadia por Napoleão. Eu tinha 16 anos. Levei mais de 40 minutos para morrer, foi a primeira vez.

Meu sangue encharcou a terra e atraiu animais, que me devoraram completamente em três dias. 

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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