Ernande Valentin do
Prado
1
5 horas,
desperto sem sono. O corpo diz que já chega de dormir. Entro no quarto das
meninas: Beatriz dorme de lado com o celular na mão e o fone nas orelhas. Alice
está toda enrolada em si mesma, quase em posição fetal.
Frio na
primavera de João Pessoa?
Puxo a
colcha e lhe cubro.
2
5h02min,
sento na linda cadeira antiga de Larissa. Herança de família. Na frente meu
computador com mais de seis anos de uso, mas ainda perfeito para o que preciso.
Decidido terminar o projeto do doutorado, do qual já havia desistido. Faltam
poucas horas para a inscrição se encerar.
3
Pouco
antes do meio dia, no ponto da Praça das Muriçocas, uma pancada de estudantes
entra no ônibus. A minha volta, um em cada banco, sentam três meninos de cabelos
raspados, tipo militar, dois do lado, um na frente. O de trás, inquieto,
pergunta, dando um peteleco na aba do boné do outro:
- Vai
deixar o cabelo crescer, depois?
- Vou.
- Tipo
Black Power?
- é.
- Eu
também queria fazer isso, mas não tenho coragem.
Depois
volta-se para o lado e vê que o outro colega abriu um livro.
- O que
tá lendo?
O outro
vira a capa: Assassin's Creed.
- Eu
prefiro ler coisas edificantes. Diz ele, ao ver a capa do livro.
- Eu
também, mas esse é a história do jogo, aí resolvi ler.
4
Meio
dia, ando pela calçada, entre o ponto de ônibus e minha casa. No caminho entre
a Avenida Epitácio e a Raul Carneiro, tenho dificuldade em andar nas calçadas,
sempre ocupadas por Jeep, Toyota, Ford, Chevrolet, Hyundai e mais uma variedade
de carros que nem reconheço, mas que também não vejo diferença entre um e
outro, nem nas cores.
Na
avenida o BMW branco quer disputar espaço comigo em cima da faixa de pedestre,
coisa que está se tornando comum por aqui.
Na Rua
Rita de Alencar Carvalho Luna, até chegar na Benjamim Maia, passo por entre
edifícios de alto padrão (financeiro). Na calçada, por entre os condomínios e
mansões, um imenso depósito de lixo (restos de coisas que ocupam o tempo e a
vida): pedaços de móveis carcomidos por cupim e mofo, caixas de papelão e
isopor de eletrodomésticos novos, telas de computador quebradas, baterias de
celular, secador de cabelos, espelhos quebrados, resto de festas infantis
(bexigas coloridas ainda cheias, que Alice adoraria estourar), entulhos de
construção de uma clínica chique, que ainda nem começou a atender a clientela
de alta renda, invadem a rua e os terrenos que esperam valorização no mercado.
A montoeira monstruosa só não é maior porque catadores de materiais reciclados
fazem plantão no local, disputando espaço, com suas carrocinhas, com os novos
Jeep, BMW e Mercedes, que invadiram João Pessoas nos últimos anos. Limpam de
graça a sujeira da burguesia. O que me lembra um velho slogan, mas ainda
válido:
- Contra
Burguês, vote 16.
5
Durante
o almoço em família, sempre gostoso, Alice, por conta de um comentário de
Larissa, diz:
- Os
negros se discriminam, pai.
- Por
que diz isso, Alice? Pergunta a mãe.
- Óh! Eu
tenho um colega, na escola, que diz que queria ter a pele branquinha, como a
minha, que acha a dela feia.
- Por
que você não dá a “Menina bonita do laço de fita” para ela?
- Eu não
posso dar esse livro para ela, mãe. Ele mudou a minha vida.
- Então
empresta...
6
Às 16
horas, grito da sala, já com a chave da porta não mão:
- Amor,
vou à padaria, quer algo especial?
- Quero
um bilhete da mega sena premiado.
7
16h20min,
descendo pela Rua Rita de Alencar Carvalho Luna (pela segunda vez no dia),
observo as empregas domésticas, jovens, senhoras na terceira idade, passeando
pela calçada, hora do pipi das cadelas das patroas, que cuidam como se fossem
suas.
Inevitável
pensar: por quase nada cuidam de cães que não são seus, como um dia já cuidaram
dos filhos desta mesma burguesia. Inevitável não lembrar do filme: “Que horas
ela volta”, o mais recente cinema, de verdade, que vi na tv.
8
O ônibus
das 16h30min, não passou. As 16h45min, vem o 5605, está lotado, não tem como
avançar pelo corredor. Fico entre a porta e o motor. Do outro lado o motorista.
Mas ao menos está de bom humor, é muito calmo, não dirige como louco, não freia
na reta, como faz a maioria, para ajeitar a carga, talvez.
No ponto
seguinte, vendo a mulher solitária acenar, comenta bem humorado:
- Vou
parar para ela ver que não tem como entrar.
Mas a
mulher que acenou entra. Passa uma vasilha, que carrega consigo, para outra
mulher pôr em cima da proteção do motor.
Quer
interessante, não puder evitar o pensamento:
- Uma
senhorinha com piercing no nariz. Preconceituosamente achava que isso era coisa
só de adolescentes.
Quando
avanço no aperto do coletivo, paro próxima a porta do meio. Uma mulher de
cabelos pintados de amarelo diz, para o rapaz de camisa azul, talvez uniforme
de um condomínio:
- E as
eleições?
- Não
voto.
- Você
justifica?
- Não.
Prefiro pagar multa.
- E
quanto paga?
- Esse
ano vai ser R$ 4,50.
- E paga
onde?
- Nos
correios.
- Não é
melhor justificar? Pergunta a mulher do cabeço amarelo, talvez achando a multa
cara ou tão ruim ir ao correio quanto na boca da urna.
- Não!
Não vale a pena nem ir na urna. Ainda se tivesse ao menos um que valesse a
pena, mas não tem.
9
18
horas, na recepção da Unidade de Saúde, olho para mulher com o bebê no colo.
- Não
tenho régua para medir o tamanho da criança. Digo morrendo de vergonha.
- Você
me pediu para vir aqui e eu perdi a viagem?
- A
senhora está certa. Desculpe-me, eu achei que ia conseguir fazer um exame
completo.
10
22
horas, deito, ligo a TV decidido ver o primeiro episódio do novo seriado:
“Unidade Básica”. Melhor do que esperava, mas unidade de Saúde no Sistema Único
de Saúde, na periferia, que consegue contratar, em três meses, três médicos
diferentes, mas não tem enfermeira?
Absurdo,
mas não dá para ser perfeito.
[Ernande
Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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