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09 junho 2017

MACHISMO DE MACHO

Imagem capturada na internet. 2017.
Ernande Valentin do Prado

Domingo de manhã chamei um Uber. O carro parou na minha porta, entramos. O homem perguntou por onde ir. Respondi com minha costumeira falta de noção espacial, mas não sei se ele não entendeu ou só fez de conta que não. Insistiu em ir por outro caminho, um mais longo, mais absurdo até para eu que não sei caminho nenhum.
Larissa, ouvindo nossa conversa e sabedora de minha falta de noção espacial, veio socorrer-me e explicou o caminho, de um modo que até eu, que não sou motorista, entendi. Porém o homem olhou como se nada tivesse ouvido e sugeriu novamente o caminho mais absurdo. Larissa, com paciência que eu já estava perdendo, explicou novamente em detalhes. Mas de novo o homem, imaginei, fingindo idiotice, olhou para eu esperando confirmação do caminho.
Neste ponto que percebi que não se tratava só de incompetência auditiva e falta de noção espacial, mas do puro e velho machismo de macho. Ela não podia ouvir, nem admitir que uma mulher soubesse o caminho melhor que o homem, no caso, melhor que dois homens.
Então, não mais conseguindo fingir paciência, que não sou o Lenine, disse para o homem, que não conseguia ouvir a explicação da mulher:
- O senhor ouviu o que ela explicou?
Ele respondeu que sim, sem olhar para ela. Então disse: e qual a dificuldade em fazer do jeito que ela explicou?
O motorista estragou meu dia, mas em compensação não abriu a boca o resto da viagem.


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

09 dezembro 2016

DOMINGO DE MANHÃ

Saudação ao mar. Ernande, 2016.
Ernande Valentin do Prado

As seis horas entro no quarto e acordo Alice, como combinamos, vamos à praia. Ela acorda assustada, dá um pulo, resmunga fazendo careta.
- Não me olhe com essa cara, você me disse para lhe acordar.
- Mas precisava ser com cosquinha?
Agora posso me dar ao luxo de ir à praia aos sábados, domingos, feriados e até em alguns dias de trabalho. Não é tão perto quanto gostaria, ainda não escuto o som do vai e vem das ondas, mas consigo ir caminhando. Gosto de chegar cedo, antes dos vendedores, das pessoas que instalam guarda sol e cobram aluguel pelo uso.
- A praia é toda nossa, Alice.
- Eu sei, a gente é que deixa as outras pessoas entrar.
A gente carrega quase nada: uma bolsinha de pano, óculos, protetor solar, uma toalha de rosto (que cabe na mochila minúscula).
Na beira d’água Alice fica de biquíni e diz: “vamos dar um mergulho”. Entra na água e só sai na hora de fazer buraco na areia. Antes uma saudação ao mar, depois escrevemos desejos para o mar levar e mergulhamos.
- Olha pai, o homem da latinha chegou.
O homem da latinha é um galego, que sempre encontramos na praia de Tambaú. Sempre de braços abertos segurando uma latinha de cerveja.
O vendedor chega com seu filho, menino de 15 anos e uns 150 quilos, enquanto estamos na água. Para seu carrinho perto de nossas roupas. Arruma seus produtos, Alice Lê: “cerveja e água de coco”. Ele sai de guarda sol em guarda sol anunciando seus produtos, passa por nós, como se não nos visse. “Ele ignorou a gente, como pode”? Observa Alice. “Acho que ele já se acostumou com a gente”, tento consolar Alice.
- Você quer uma cerveja ou um Coco?
Pergunto para Alice, que não responde, apenas sorri e risca o chão cantarolando:
“Sou caipira bira bira bora
senhora  di aparecida
ilumina a mina escura
e funda o trêm da minha vida”
Voltamos para água. Alice ainda cantarolando:
“sou caipira bira bora nossa
senhora...”
- Eu sei rezar, sei orar. Vou rezar para aquele homem não se afogar.
Diz Alice apontando o homem que nada longe, rumo ao horizonte. Depois acrescenta:
- O mar tá (d)esvaziando.
Na saída do mar tomamos uma ducha no Bar Pé na Areia, que sempre achei que era Pé vermelho, mas talvez fosse só saudades do Paraná.

[Ernande Valentim do Prado é Enfermeiro
pai de Heloisa, Beatriz e Alice
publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

07 outubro 2016

DAS CINCO ÀS VINTE E DUAS HORAS


Ernande Valentin do Prado

1

5 horas, desperto sem sono. O corpo diz que já chega de dormir. Entro no quarto das meninas: Beatriz dorme de lado com o celular na mão e o fone nas orelhas. Alice está toda enrolada em si mesma, quase em posição fetal.
Frio na primavera de João Pessoa?
Puxo a colcha e lhe cubro.

2

5h02min, sento na linda cadeira antiga de Larissa. Herança de família. Na frente meu computador com mais de seis anos de uso, mas ainda perfeito para o que preciso. Decidido terminar o projeto do doutorado, do qual já havia desistido. Faltam poucas horas para a inscrição se encerar.

3

Pouco antes do meio dia, no ponto da Praça das Muriçocas, uma pancada de estudantes entra no ônibus. A minha volta, um em cada banco, sentam três meninos de cabelos raspados, tipo militar, dois do lado, um na frente. O de trás, inquieto, pergunta, dando um peteleco na aba do boné do outro:
- Vai deixar o cabelo crescer, depois?
- Vou.
- Tipo Black Power?
- é.
- Eu também queria fazer isso, mas não tenho coragem.
Depois volta-se para o lado e vê que o outro colega abriu um livro.
- O que tá lendo?
O outro vira a capa: Assassin's Creed.
- Eu prefiro ler coisas edificantes. Diz ele, ao ver a capa do livro.
- Eu também, mas esse é a história do jogo, aí resolvi ler.

 4

Meio dia, ando pela calçada, entre o ponto de ônibus e minha casa. No caminho entre a Avenida Epitácio e a Raul Carneiro, tenho dificuldade em andar nas calçadas, sempre ocupadas por Jeep, Toyota, Ford, Chevrolet, Hyundai e mais uma variedade de carros que nem reconheço, mas que também não vejo diferença entre um e outro, nem nas cores.
Na avenida o BMW branco quer disputar espaço comigo em cima da faixa de pedestre, coisa que está se tornando comum por aqui.
Na Rua Rita de Alencar Carvalho Luna, até chegar na Benjamim Maia, passo por entre edifícios de alto padrão (financeiro). Na calçada, por entre os condomínios e mansões, um imenso depósito de lixo (restos de coisas que ocupam o tempo e a vida): pedaços de móveis carcomidos por cupim e mofo, caixas de papelão e isopor de eletrodomésticos novos, telas de computador quebradas, baterias de celular, secador de cabelos, espelhos quebrados, resto de festas infantis (bexigas coloridas ainda cheias, que Alice adoraria estourar), entulhos de construção de uma clínica chique, que ainda nem começou a atender a clientela de alta renda, invadem a rua e os terrenos que esperam valorização no mercado. A montoeira monstruosa só não é maior porque catadores de materiais reciclados fazem plantão no local, disputando espaço, com suas carrocinhas, com os novos Jeep, BMW e Mercedes, que invadiram João Pessoas nos últimos anos. Limpam de graça a sujeira da burguesia. O que me lembra um velho slogan, mas ainda válido:
- Contra Burguês, vote 16.

5

Durante o almoço em família, sempre gostoso, Alice, por conta de um comentário de Larissa, diz:
- Os negros se discriminam, pai.
- Por que diz isso, Alice? Pergunta a mãe.
- Óh! Eu tenho um colega, na escola, que diz que queria ter a pele branquinha, como a minha, que acha a dela feia.
- Por que você não dá a “Menina bonita do laço de fita” para ela?
- Eu não posso dar esse livro para ela, mãe. Ele mudou a minha vida.
- Então empresta...

6

Às 16 horas, grito da sala, já com a chave da porta não mão:
- Amor, vou à padaria, quer algo especial?
- Quero um bilhete da mega sena premiado.

7

16h20min, descendo pela Rua Rita de Alencar Carvalho Luna (pela segunda vez no dia), observo as empregas domésticas, jovens, senhoras na terceira idade, passeando pela calçada, hora do pipi das cadelas das patroas, que cuidam como se fossem suas.
Inevitável pensar: por quase nada cuidam de cães que não são seus, como um dia já cuidaram dos filhos desta mesma burguesia. Inevitável não lembrar do filme: “Que horas ela volta”, o mais recente cinema, de verdade, que vi na tv.

8

O ônibus das 16h30min, não passou. As 16h45min, vem o 5605, está lotado, não tem como avançar pelo corredor. Fico entre a porta e o motor. Do outro lado o motorista. Mas ao menos está de bom humor, é muito calmo, não dirige como louco, não freia na reta, como faz a maioria, para ajeitar a carga, talvez.
No ponto seguinte, vendo a mulher solitária acenar, comenta bem humorado:
- Vou parar para ela ver que não tem como entrar.
Mas a mulher que acenou entra. Passa uma vasilha, que carrega consigo, para outra mulher pôr em cima da proteção do motor.
Quer interessante, não puder evitar o pensamento:
- Uma senhorinha com piercing no nariz. Preconceituosamente achava que isso era coisa só de adolescentes.
Quando avanço no aperto do coletivo, paro próxima a porta do meio. Uma mulher de cabelos pintados de amarelo diz, para o rapaz de camisa azul, talvez uniforme de um condomínio:
- E as eleições?
- Não voto.
- Você justifica?
- Não. Prefiro pagar multa.
- E quanto paga?
- Esse ano vai ser R$ 4,50.
- E paga onde?
- Nos correios.
- Não é melhor justificar? Pergunta a mulher do cabeço amarelo, talvez achando a multa cara ou tão ruim ir ao correio quanto na boca da urna.
- Não! Não vale a pena nem ir na urna. Ainda se tivesse ao menos um que valesse a pena, mas não tem.

9

18 horas, na recepção da Unidade de Saúde, olho para mulher com o bebê no colo.
- Não tenho régua para medir o tamanho da criança. Digo morrendo de vergonha.
- Você me pediu para vir aqui e eu perdi a viagem?
- A senhora está certa. Desculpe-me, eu achei que ia conseguir fazer um exame completo.

10

22 horas, deito, ligo a TV decidido ver o primeiro episódio do novo seriado: “Unidade Básica”. Melhor do que esperava, mas unidade de Saúde no Sistema Único de Saúde, na periferia, que consegue contratar, em três meses, três médicos diferentes, mas não tem enfermeira?
Absurdo, mas não dá para ser perfeito.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

15 julho 2016

ALICE, CONTANDO ESTÓRIA

Ernande Valentin do Prado
Dias destes estava com Alice e Bene na orla de João Pessoa. Bene contou uma linda história sobre sua irmã, Luzia, que, segundo ele, desde crianças tinha solução para todo e qualquer problema. Para ilustrar, contou essa história, que depois gravei na interpretação de Alice.

Eu gostei muito, espero que gostem também.



[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

27 maio 2016

CONVERSA NO PONTO DE ONIBUS

Ernande Valentin do Prado
- Que ônibus é aquele?, não consigo enxergar.
- É o 5605.
- Eu quero pegar o 5000.
- ...
- Será que é aquele?
- Não! esse é o 5600.
- Eu quero pegar o 5000, não, o 5100.
- Eu também quero pegar esse.
- Eu fico em casa fazendo origami, bordado, crochê, chega uma hora que cansa, aí saiu pra passear.
- E a senhora sai pra passear de ônibus?
- Saio. Eu moro neste prédio, com minhas netas, pego o 5100, que passa aqui, vai até a Lagoa, o Geisel, o Grotão.
- Nossa, ele dá uma volta grande...
- Eu ando prá todo lado, pego o ônibus, vou onde quero, desço, pego outro, troco de carro, volto. Minhas netas não gostam, acham que vou me perder. “Cuidado vó, não vá se perder por aí”, elas dizem.  
- Mas a senhora vai à casa de alguém ou só anda de ônibus?
- Agora eu vou no terceirão, fazer uma coisa lá, mas às vezes eu só ando de ônibus... será que é aquele?
-  Não, aquele é o 5603.
- Tá demorando muito esse ônibus.
- Passou um agorinha. Eu estava no outro ponto, ele passou e me deixou lá. O motorista me viu, mas não parou, não sei por que, aí vim prá cá, que tem sombra.
- ...
- A minha esposa iria gostar de conhecer a senhora, ela também faz origami...
- Eu fiz um vaso com 250 peças dobradinhas...
- ... aqueles passarinhos da sorte, sabe?
- fazer vaso dá muito trabalho, tem que ficar tudo do mesmo tamanho, se não dá errado...
- Minha irmã também faz vaso, ela fez um pra mim, ontem ainda estava olhando e pensando como não fica velho, como tá cada vez mais bonito.
- ... Tá lá na academia de minhas netas, as pessoas olham, gostam e querem comprar, mas minha neta diz: “minha avó não faz para vender, só para dar de presente”.
- Eu moro ali no Brisamar, me mudei semana passada, quem sabe a gente se encontra aqui no ponto outros vezes...
- Brisamar é ali do outro lado... é o nosso ônibus?
- Agora é.
- E tá lotado.
- Mas eu tenho que ir nele.
- Eu vou esperar o próximo...
- Então tchau.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

13 maio 2016

SILVIA

Maré. Ernande, 2014.
Ernande Valentin do Prado

Silvia tem 22 anos. Hoje seu cabelo está bem curtinho, na altura da nuca. Mas até ontem era um longo cabelo preto, muito escuro. Luxuriantes até. 
Uma noite, na praia, o noivo com quem rompeu há oito meses o relacionamento de quatro anos, a fotografou à luz do luar coberta apenas com seus longos e luxuriantes cabelos.
- Nunca corte esses cabelos que eu amo, dizia sempre.
Com ódio, e sem entender o fim do noivado, Rômulo, o noivo de 23 anos, jogou essas fotos na internet. Mas essa é outra história.
Silvia mora em um apartamento há oito quadras do seu local de trabalho. Divide as despesas com Luiza, de 32 anos, professora da rede municipal de ensino. Dá aulas de química. Moram juntas há exatamente oito meses, desde que rompeu com o noivo.
Foi um rompimento que surpreendeu a todos, amigos, colegas de trabalho, família. Ninguém ainda entendeu bem. O casamento estava marcado para o fim daquele ano, quando Rômulo concluiria o curso de Educação Física. Já estava pagando um apartamento do tipo minha casa minha vida, no Mangabeira. Tinham plano de ter dois filhos, assim que Silvia também concluísse seu curso de Administração de Empresas.
Ontem ela chegou em casa mais cedo. O Quiosque em que trabalha como caixa na Praia de Tambaú fechou para dedetização, após uma inspeção surpresa da vigilância sanitária.
- Filhos-da-puta, disse o patrão em uma reunião com os funcionários, quando anunciou que o restaurante ficaria fechados por uns dias. Eu já tinha pagado a parte deles, mas tem um fiscal novo querendo ser honesto. Ratos...
- Essa hora Luiza está em casa, pensou Silvia. Vou lhe fazer uma surpresa.
Foi para casa depois de passar no cabeleireiro e cortar o cabelo na altura da nunca. 
- Luiza vai amar meu cabelo novo, pensou Silvia. Ela dizia sempre: por que não corta esse cabelo, dá muito trabalho para cuidar, mulher!
Ao chegar em casa notou que tinha alguém com Luíza no quarto. Não fez barulho, não deixou que a percebessem. Viu na sala o boné de Rômulo. Tinha certeza que era ele quem estava com Luíza, até a mancha na aba era a mesma. Tinha certeza da traição.  Voltou para rua, andou pela cidade sem ter para onde ir, esperando a hora habitual de voltar para casa. Não tinha com quem conversar, não podia ir para casa dos pais, não podia procurar um amigo, todos iriam lhe dizer: eu bem que avisei.
Ontem quase não dormiu. Quando chegou em casa, quase nada falou com Luiza e procurou não ficar no mesmo ambiente que ela.
- Estou com muita dor de cabeça, acho que pode ser dengue ou até Zika, disse ela como desculpa por seu estado de espírito.
Se Sílvia não tivesse disposta a evitar até o contato visual, teria percebido que o estado de ânimo de Luíza não era diferente do seu. Até manchas vermelhas tinha nos braços e no rosto.  
Passou a noite calada, olhos arregalados. Deitava-se, levantava-se, andava pela casa, ligava a tv, desligava, tomava agua, fazia xixi. Até que o dia amanheceu e saiu para rua, mesmo antes do horário habitual do trabalho.
Agora tá sentada olhando o mar, faz mais de meia hora. As ondas vão e veem agitadas, sem parar, fazendo aquele som que ela adora ouvir. A maré tá enchendo, daqui meia hora vai estar no ponto máximo.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Revisão: Jailson Almeida.



COLEÇÃO: ALÉM DA ARREBENTAÇÃO

JÁ PUBLICADO

ü  Silvia

20 janeiro 2016

Alice

O gato de Alice - João Pessoa

Alice:
- Qual a cor dos seus olhos?
Mayara:
- Não sei, você que me diz, que cor você acha que é?
Alice:
- Hmmm... Deixa eu ver. Ao redor seu olho é escuro, tem uns riscos de verde bem clarinho, e azul no fundo, tem um pouco de amarelo e no meio tem uma bola preta.
Mayara:
- Então, no fim das contas, que cor é?
Alice:
- Cinza.

Voam abraços,
Mayara Floss

19 dezembro 2014

HISTÓRIAS OUVIDAS (ACONTECIDAS) NOS ONIBUS





PARTE III: COMPRA UM CAVALO PARA GENTE

Ernande Valentin do Prado


2014 – junho
João Pessoa – PB. Linha 5605 – Mangabeira - Shopping.

Por volta das 18 horas voltava para casa. No trajeto dois meninos entraram pela porta dos fundos. Eu estava sentado próximo (sempre fico na parte traseira do ônibus, pois em João Pessoa os ônibus só abrem uma porta para gente descer). Do meu lado tinha uma mocinha com cara de criança, uns 13 anos talvez, apesar de já ser maior de idade. Muita branca. Sardas no rosto.
Os meninos sentaram ao lado da mocinha e estavam agitados, falando sem parar, contando por onde haviam passado (A linha 5605 é muito longa).
- A mãe de vocês não se importa de vocês andarem a cidade toda não, perguntou a mocinha?
- Nada, ela nem liga, disse um deles.
O outro se apressou em dizer que sua mãe não sabia, como que a defendendo de ser julgada relapsa. O outro garoto percebeu e também disse que sua mãe também não sabia.
- E vocês não vão para escola, não?
- A gente estuda pela manhã.
- Depois saem andando por aí?
- É.
- Vocês não são muito novos para andar sozinho de ônibus?
- Nada, eu já tenho 12 anos.
- Eu tenho 16, disso o outro com cara de zombeteiro.
- Mentiroso, disse a menina.
- Tenho dez e meio, já vou fazer onze.
- E de onde vocês estão vindo?
- A gente foi no centro de Zoonoses.
- Aquele ali perto do supermercado, disse a moça?
- É.
- A gente quer um cavalo...
- E lá tem cavalo?
- Tem. Eles prendem os cavalos soltos e doam para quem quiser.
- É, mas eles não quiseram dar um cavalo pra gente. O homem disse que tem que ser “de maior”.
- E para que vocês querem um cavalo?
Os meninos fizeram cara de: “que tonta”.
- Não sabe para que serve um cavalo?
E antes da moça responder o outro menino responde:
- A gente junta papelão, ferro velho, garrafas de plástico para vender.
- Com um cavalo a gente pode ir mais longe, juntar mais coisas.
- Uma vez a gente quase comprou um cavalo, mas o João queria R$ 300,00 reais e a gente só tinha R$ 220,00.
- E vocês já têm a carroça?
- Já. Só falta o cavalo. Você bem que podia comprar um cavalo pra gente. Disse fazendo cara de pidão o menino mais velho (12 anos).
- Eu! Não tenho dinheiro. Estou indo para meu primeiro dia de emprego hoje. Se tivesse dinheiro comprava um cavalo para mim e não andava mais de ônibus.
A moça, pelo crachá que usava no pescoço estava indo para uma empresa de telemarketing que ficava próxima ao ponto final do ônibus.
- Não precisa de dinheiro. Você vai a zoonoses e pega o cavalo e dá para gente.
- Vocês não acham melhor estudar, mudou de assunto à menina.
- A gente estuda de manhã. Só trabalho de tarde.
- Eu estudo naquela escola ali da entrada.
- Aquela grande?
- É...
- O nosso ponto... desce, desce...
Os meninos desceram correndo e o papo acabou. Da calçada acenaram para a menina e gritaram tchau.
Ela olhou para mim e exclamou:
- Coitadas dessas crianças.
Eu fiquei mudo, sem saber o que dizer. Seguimos nossa viagem, eu para casa ela para seu primeiro dia de trabalho. No ponto final descemos. Dobrei a esquina, ela seguiu em frente.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

14 novembro 2014

HISTÓRIAS OUVIDAS (ACONTECIDAS) NOS ONIBUS

PARTE II: PAI CELESTIAL


Ernande Valentin do Prado


2014 – outubro
João Pessoa – PB. Linha 303.

Manuel não aparentava mais de 70 anos de jeito nenhum, mas disse ter 90. Entrou rapidamente pela porta dos fundos (que é por onde entram os idosos nos ônibus de João Pessoa). Sentou do meu lado. O ônibus não estava tão apertado (ainda). Foi logo perguntando:
- Que revista é essa que tá lendo?
Tirei meu fone do ouvido e não li mais.
- Deus é nosso pai, disse Manuel. Quando a gente nasce Deus já sabe o que será de nós. A criança nem sabe, a mãe nem sabe o que será de seu filho, o pai não sabe, mas Deus pai celestial sabe tudo que vai ser da criança.
- Amém disse, disse eu, com vontade de não concordar, mas achando melhor não interromper.
- Você tem Bíblia sagrada?
Manoel não me deixou responder direito ou não se importou muito com a resposta. Foi logo dizendo que o Salmo (não lembro qual), mas era sobre Deus saber tudo que precisamos.
- O Médico me proibiu de andar sozinho. Eu nem deveria estar aqui, mas nosso médico é Deus Pai Celestial. Ali tem um médico evangélico, disse Manuel apontando para a Unidade de Saúde a qual passamos ao lado. Ele faz o que pode, mas Deus sabe mais.
- Amém, disse de novo.
- Tenho 90 anos. 10, 20, 70 só de comércio. Aí se levantou e disse que iria descer.
- Já vai, disse eu surpreso, esperando mais. Ele havia acabado de entrar no ônibus.
- Ali na frente tem uma Igreja Batista, quando o ônibus vira pra lá. Mas eu não vou lá não.
- Rurum...
- Qual seu nome, disse ele:
- Ernande.
- O que?
- Ernande.
- Ernani?
- Ernande!
- Você me desculpa, mas não vou decorar não.
- Puxa a cordinha para mim...
- Quando ia puxar a cordinha, diversas mãos puxaram ao mesmo tempo.
- Eu vou com Deus, mas ele vai continuar na viagem com todos vocês também.
Aí Manuel desceu do ônibus com a mesma agilidade que entrou e sumiu no meio de outras pessoas na calçada. Fiquei pensando se encontraria Manuel de novo neste mundo tão grande e tão pequeno. E enquanto escrevo este texto me vem uma dúvida louca:
Vai que Manuel era o próprio Pai Celestial?

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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