19 janeiro 2018

AMOROSIDADE (SEGUNDA PARTE)

Arvores de Rio Negro. Ronaldo Ávila, 2007.
                                                                                                             Ernande Valentin do Prado

De onde estou deitado vejo toda a estrada, a entrada e a saída da ponte.
É por aqui que têm que passar, não tenho dúvidas, essa é a rotina da família. Todas as quartas-feiras montam seus cavalos, e seguem puxando duas mulas carregadas com queijo. Levam à feira, depois do almoço voltam com as mulas já sem a carga que levaram pela manhã. Sempre, desde que era menino, desde que meu pai trabalhava para o maldito, conheço essa lida. Vão passar por aqui, a qualquer momento e hoje os queijos vão estragar no lombo das mulas.
O sol queima meu rosto, como se não estivesse acostumado. Os mosquitos zunem em minhas orelhas, como se não estivesse acostumado, o tempo passa mais lentamente, como se eu não estivesse acostumado a esperar. É só mais um dia. Depois volto para casa, alma lavada, lavada com sangue de desgraçado, de jararaca ruim, capaz de morder e envenenar a própria filha, os netos... alma lavado com sangue de maldito.
Tem que ser feito, agora não tem volta. Depois, em casa, vou abraçar meus filhos, olhar o rosto de Silvana, entregar a carabina, pela última vez, em suas mãos, cano ainda quente. Três tiros. Só três: um no coitado do acompanhante, dois no maldito.
Fico esperando, aqui de cima, olhando a cabeceira da ponte, por onde vão passar e lembrando dos porcos mortos: podia ser meus filhos, podia ser Silvana... isso me dá mais ódio, mais coragem, tira minhas dúvidas, faz eu saber que não tem outro jeito... tem que ser feito.
- Maldito.
Tem que ser feito, é o certo... ou Silvana não mandaria...

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]




Leia também, AMOROSIDADE
publicada em 09 de outubro de 2015.

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