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19 janeiro 2018

AMOROSIDADE (SEGUNDA PARTE)

Arvores de Rio Negro. Ronaldo Ávila, 2007.
                                                                                                             Ernande Valentin do Prado

De onde estou deitado vejo toda a estrada, a entrada e a saída da ponte.
É por aqui que têm que passar, não tenho dúvidas, essa é a rotina da família. Todas as quartas-feiras montam seus cavalos, e seguem puxando duas mulas carregadas com queijo. Levam à feira, depois do almoço voltam com as mulas já sem a carga que levaram pela manhã. Sempre, desde que era menino, desde que meu pai trabalhava para o maldito, conheço essa lida. Vão passar por aqui, a qualquer momento e hoje os queijos vão estragar no lombo das mulas.
O sol queima meu rosto, como se não estivesse acostumado. Os mosquitos zunem em minhas orelhas, como se não estivesse acostumado, o tempo passa mais lentamente, como se eu não estivesse acostumado a esperar. É só mais um dia. Depois volto para casa, alma lavada, lavada com sangue de desgraçado, de jararaca ruim, capaz de morder e envenenar a própria filha, os netos... alma lavado com sangue de maldito.
Tem que ser feito, agora não tem volta. Depois, em casa, vou abraçar meus filhos, olhar o rosto de Silvana, entregar a carabina, pela última vez, em suas mãos, cano ainda quente. Três tiros. Só três: um no coitado do acompanhante, dois no maldito.
Fico esperando, aqui de cima, olhando a cabeceira da ponte, por onde vão passar e lembrando dos porcos mortos: podia ser meus filhos, podia ser Silvana... isso me dá mais ódio, mais coragem, tira minhas dúvidas, faz eu saber que não tem outro jeito... tem que ser feito.
- Maldito.
Tem que ser feito, é o certo... ou Silvana não mandaria...

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]




Leia também, AMOROSIDADE
publicada em 09 de outubro de 2015.

22 abril 2016

AÇÃO-RELFEXÃO (OU: SEU SEBASTIÃO, AS LARANJAS E A ENFERMEIRA)

Te vejo flores em você. Ernande, 2015.
Ernande Valentin do Prado

Mais um dia com fome, pensou seu Sebastião olhando suas três crianças magras no único quarto da casa. Ele havia terminado de contar uma história sobre a cobra faladeira, que deixou as crianças alertas, apesar de já tarde. A mulher, com os olhos fundos, muito verdes, estava em silencio, resignada no colchão surrado.
- Meninos, vocês estão com fome? Disse seu Sebastião, levantando-se de forma ligeira e inesperada.
As crianças não responderam, continuaram caladas, olhando-se entre si e para o silêncio da mãe no canto.
- Vi um pé de laranja carregadinho, bem perto daqui.
Os meninos ficaram animados e não era apenas pela chance de amenizar a fome que corroía seus estômagos, mas pela aventura de procurar laranjas com o pai no meio da noite. Geralmente não conviviam muito com ele, que trabalhava cuidando de gado a semana toda em uma fazenda não muito perto da cidade, enquanto elas ficavam com a mãe na cidade, porque precisavam estudar.
- Sem estudar vão repetir nossa sina, dizia a mulher.
Ele vinha no sábado, depois do almoço, geralmente com o pagamento da semana e comprava os mantimentos, mas esta semana seu patrão, Dr.  Varela, foi com a família para praia comer pitu e se esqueceu de deixar o dinheiro.
Criança é um bicho bobo demais, pensou seu Sebastião ao ver a alegria das crianças.
- Vou sair com as crianças por aí, disse seu Sebastião para a esposa deitada, sem ânimo para reagir. Apenas soprou muito baixo dos lábios:
- Tá!
E ao ver o marido e as crianças se arrumando disse, reunindo as poucas forças que parecia ter:
- Até quando a gente vai vive assim?
O marido não respondeu, mas sentiu no fundo de sua alma uma pontada de dor, vergonha por não conseguir manter a casa como deveria. Eta sofrimento do cão, pensou sozinho sem saber o que fazer, onde enfiar a cara.
Joana D’ac morava ao lado do salão paroquial, onde tem um enorme pé de laranja. Os galhos se estendendo por cima do muro. E as laranjas já estão bem grandes, apesar de ainda verdes, pesando e puxando os galhos mais finos para baixo.
Joana é Enfermeira recém-contratada para trabalhar na Unidade de Saúde do bairro aonde mora seu Sebastião, a esposa e as suas crianças. Tem só uma semana que está na cidade. Por volta das 23 horas ela ouviu barulhos, abriu a janela para ver melhor. Na rua escura um homem em pé na calçada orientava duas crianças a pegar laranjas verdes que pendiam para fora do quintal do salão paroquial. Já havia, junto aos seus pés, um monte bem grande das frutas, outra criança menor sentada brincando com elas, e as outras duas, sob o murro, continuava colhendo novas frutas.
Que absurdo! Pensou a moça: crianças a essa hora da noite roubando laranjas no terreno da Igreja. Ela ficou incomodada, pegou o telefone:
- Qual é mesmo o número da polícia? Falou consigo mesma, talvez tentando encontrar um motivo para deixar isso pra lá.
Voltou a janela, onde as crianças continuavam animadas fazendo algazarra enquanto o homem silencioso orientava a coleta das laranjas.
- Que tipo de pai permite crianças acordadas até essa hora, e pior, em pé num muro desta altura?
Joana estava indignada com esse absurdo: estão roubando laranjas, e verdes, ainda por cima. Absurdo, absurdo, absurdo. Em que mundo vivemos, meu Deus do céu, pensou ela ainda com o telefone na não, mas não digitou no número da PM.
A enfermeira voltou para cama, tentou dormir, mas perdeu o sono pensando na imagem das crianças subindo felizes no muro e de lá jogando laranjas para o pai.
No dia seguinte, logo pela manhã, Joana foi à missa e passou em frente à casa de seu Sebastião: uma pequena construção de poucos metros quadrados, menos de dois metros de altura. Lá estava seu Sebastião descascando laranjas e em sua volta as crianças e a esposa. Joana sentiu um aperto no coração, sem entender bem porque, mas sabia que não era coisa boa. Pensou de novo: em que mundo vivemos meu Deus?
Rezou incomodada, passou todo domingo incomodada e foi trabalhar incomodada e pensando nas palavras de um antigo professor da faculdade de enfermagem: “não ensino enfermeiras para verificar pressão e fazer curativos, ensino enfermeiras para mudar o mundo.”
Joana sabia no fundo de seu coração que precisava e podia fazer alguma coisa. Mas o que, o que poderia fazer. Como é que a enfermeira pode mudar o mundo?
Chegando no trabalho, na segunda-feira, Joana chamou os Agentes Comunitários de Saúde e perguntou:
- Quem trabalha na área perto da igreja católica?
- É a Raquel, responderam.
- E cadê ela, perguntou Joana, olhando em sua volta.
- Ainda não chegou.
- Então tá meia hora atrasada. Quando chegar pede para vir falar comigo.
Ao chegar, Raquel foi até a sala de Joana. A enfermeira pediu a ficha com as informações sobre seu Sebastião e sua família. Raquel foi buscar e na volta passou a relatar:
- Casa de alvenaria de dois cômodos, três filhos, não tem diabetes, nem hipertensão e a mulher não tá grávida. Não usam nenhuma medicação.
- E o que mais?
- Mais nada. Precisa mais?
- Qual a idade deles, de onde vieram, qual o peso das crianças, que vacinas tomaram, onde seu Sebastião trabalha, quanto ganha, sabe ler e escrever, onde as crianças estudam, têm parentes na cidade, a mulher fez pré-natal aqui, teve algum problema, eles recebem bolsa família ou algum outro auxilio social?
- Não sei de nada disso.
- Quanto tempo faz que trabalha de ACS?
- Cinco anos.
- E não conhece o pessoal da sua área?
- Conheço, sei tudo que tem na ficha.
- Não acha muito pouco o que tem na ficha? 
- Mas a outra enfermeira nunca pediu isso.
- Mas agora precisa. Vamos fazer o seguinte. Vá na casa deles agora e descubra tudo. Vou ficar esperando.
- Só isso?
- Não. Por que chegou atrasada hoje, aconteceu alguma coisa?
- Mas foi só meia hora.
- Se você tivesse todas as respostas para minhas perguntas eu não ia falar nada, mas você não soube responder as perguntas que fiz.
- Nossa, já vai começar pegando no meu pé?
- Você sabia que aquela família só tem laranja verde para comer?
- Você nem vai ficar trabalhando muito tempo aqui, todo mundo vai embora.
- Talvez não, mas enquanto estiver vou tentar mudar o mundo! E você vai me ajudar.
Joana ficou um tempo em silêncio, olhando Raquel em pé em sua frente, indecisa entre dizer mais alguma coisa ou sair batendo a porte.
- Mas por que?
- Vou ficar esperando você voltar com essas informações antes do almoço. É muito urgente.
Joana ficou só em sua sala, ainda incomodada por não saber como mudar o mundo, mas esperançosa, sabendo que acabaria descobrindo.
- Posso entrar, falou Marinalva, atrás de sua barriga de oito meses.
Joana sorriu, olhou a mulher nos olhos e pensou: vou começar fazendo a melhor consulta de pré-natal que se pode fazer.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

18 dezembro 2015

AUTORIDADE/AUTORITARISMO

Foto: Ernande, 2015, a partir de Artesanato de Larissa Mendonça Bernini.
Ernande Valentin do Prado


Pela janela
do coletivo que vai sentido bairro,
mas parado no bloqueio,

vejo, em exercícios,
alunos da academia de polícia militar.
Nada mais do que um bando de garotos:

fardados,
assustados,
armados.

Estão fazendo cara de mal.
Agora, só sinto pena.
Mas daqui a pouco, vão estar na rua:

formados,
fardados,
armados.

Vão reprimir professores em greve.
Vão dar tapa  na cara  de  bêbados.
Vão comer, beber “de graça” no bar.

Com o tempo,
vão perder a alma por migalhas,
quase sem perceber, cada dia um pouquinho.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

27 novembro 2015

ESPERANÇA

Foto: praça central em Campina Grande, PB. Ernande, 2015
Ernande Valentin do Prado
Caminhava
por um corredor de paredes muito altas, brancas,
deixando para trás duas mortes.

na frente, do outro lado, distante, te via
como quem vê a luz.

Mãos  
Tremiam sujas: sangue,
não era meu.

Sujas,
as mãos,
limpei nas paredes e nas roupas.

Não,
não senti remorso, nem nojo
só um vazio (mãos tremendo, pegajosas, vermelhas, sujas).

Precisava,
com urgência,
chegar em casa, te abraçar, espalhar seus cabelos louros por entre meus dedos

assim,
tornar-me
alguém melhor.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

13 novembro 2015

DESACORDO*

Rio Negro e Solimões - foto: Ernande, 2015

Ernande Valentin do Prado

- Você vai mesmo?

- Vou.

- Tudo bem.

- A gente já falou tanto sobre isso (...)

- Tudo bem.

- Não me olhe assim (...)

- Tudo bem.

- Você vai ficar legal? (...) quer que eu esquente a janta pra você? (...)

Meu Deus! (será que vou conseguir levar isso até o fim?) o que será de minha vida? O que será da vida de todos em minha volta? preciso pensar em outras coisas, outras, outras (...)

- Não precisa. Eu me viro, já dei muito trabalho.

- Eu não me incomodo...

Tinha uma escada enorme na casa de minha avó... Eu era pequena e me lembro que a gente (minha mãe, minhas tias, todas as mulheres da casa) sentava nos degraus pela manhã e ficava conversando e esquentando ao sol. Elas falavam da novela, da vida dos outros... eu quase não falava, era muito pequena, mas de vez em quando abria a boca e minha mãe gritava comigo.


- (...) eu nunca me incomodei. 

Eu não sei como alguém pode beber cachaça: meu pai bebia. Bêbado, ficava parado, olhos vidrados, fixo numa mesma coisa, olhava, mas era como se nada visse nada, nada, nada (Deus...), como se nem estivesse ali, como se a alma (meu Deus, eu não vou aguentar) o tivesse abandonado. Babava (...) falava um monte de besteiras para ninguém. No dia seguinte passava mal, ficava tremendo. Que nojo: era horrível!


- Não chora.

Logo que nos conhecemos, passamos a noite dançando? Na madruga caminhamos até sua casa. Saímos abraçados pela rua. Uma neblina fina ofuscava o brilho das luzes dos postes, um friozinho de outono incomodava. Caminhávamos: no primeiro quarteirão disse: meus pés estão me matando. No segundo quarteirão disse: não aguento mais esses sapatos. No terceiro quarteirão disse: vou tirar os sapatos. E a meia, questionei. Vou tirar também, Não olhe. Mas olhei. Estávamos em frente a uma construção abandonada, embaixo de uma luminária apagada. Vi quando levantou a sai (não se incomodou com meu olhar). Não vi suas pernas nem nada. De pés no chão, sorriu e disse: moro longe, tem certeza que quer me acompanhar? Não tem importância. Tinha medo da noite acabar e a gente nunca mais se ver.


- Eu não estou chorando.

- Você ainda me ama?

- Amo (...) muito, muito mesmo (...) como uma desesperada.

- Então fica.

Meu Deus, quando ele me olha assim (...) sinto que nada mais importa.


- Eu já vou (...) 

- Fica.

Sempre vivi em pânico: sempre com medo de alguma coisa, medo de crescer, medo de ter que fazer a barba pela primeira vez, medo do serviço militar, medo de não me acostumar a ser adulto, medo de não encontrar a mulher da minha vida. Medo de perde-la, acaso a encontrasse.


- Você promete? 

- Eu amo você!

Um dia no centro da cidade vi um garoto encolhido sobre os joelhos. Ele chorava baixinho. Parei diante dele com o coração apertado, sem saber o que fazer. Só queria voltar para casa, te abraçar, pedir para cuidar de mim, não me deixar só neste mundo.


- Não me segure mais (...) não te entendo. Acho que você pensa demais. Isso não é bom. Teve um tempo que fiquei assim. Passava o dia pensando. Ninguém me aguentava. Minha mãe gritava comigo o dia todo e meu pai dizia que eu estava louca. Eu não te entendo (...) não entendo (...) não consigo viver assim (...) eu tentei (...) Juro: eu tentei de todo jeito te entender, juro que tentei (...) 

Eu nunca amei ninguém, nem vou amar, a não ser está mulher parada aqui na minha frente, esperando ouvir alguma coisa que não posso dizer.


- Por que faz isso comigo?

Na primeira noite, levantei-me com cuidado, evitando fazer barulho, fui até o canto do quarto, onde estava jogada sua calcinha. Peguei a pequena peça embola e ajeitei. Olhei receoso para a cama onde dormia descoberta, deitada de lado com as mãos sob a cabeça, fazia um leve som com a boca cada vez que expirava...

- Por que não promete? Eu estou louca pra ficar (...) juro por Deus (...) mas também não posso viver assim (...) você tem que comprometer-se (...) ou não fico.

Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar por você (...)


- Eu não posso fazer nada.

Eu me lembro de uma cena que ficou perdida em minha infância: não me lembro quantos anos tinha, nem onde estava. Só lembro de um pedaço de quintal de terra vermelha, batida, na entrada de uma mata. Eu brincava com duas crianças, que deveriam ser minhas irmãs. Dentro da mata, junto à margem do rio estava minha mãe. Lembro de meu pai chegar com um galãozinho de plástico na mão e jogar na margem do carreador que dava no rio, onde estava minha mãe. Algum tempo depois, voltou com ela nos braços, como se carregasse uma princesa.


- Eu não posso fazer nada. Nunca pude, nunca vou poder.

- É incrível...

Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar por você... 


- Eu colocando minha vida em suas mãos e você (...) você não é capaz de um gesto (...) nada (...).

Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar... que iriamos morar juntos...


- (...) você é incapaz de pensar em alguma coisa além de você e suas convicções (...)

Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar por você. Que iriamos morar juntos, que iria sofrer.


- Tudo bem.

- Tudo bem o que?

- Você está certa.

- Estou certa em que?

Penteei meus longos cabelos negros, com muita paciência e cuidado, ainda nua em frente ao espelho. Meus olhos brilhavam, meus lábios vermelhos não disfarçavam o sorriso de contentamento com o desejo que lhe despertava, despertaria. Na gaveta de calcinhas escolhi a menor, a que me parecia mais sexy. Vesti, colocando primeiro o pé direito e depois o esquerdo. Puxei até a virilha, ajeitei as dobras na nádega. Por algum tempo fiquei me olhando no espero e pensando: será que ele vai gostar de mim, do meu corpo, da minha alma? Virei as costas, peguei uma blusa branca, quase transparente, vesti por cima do corpo arrepiado. Do cabide, peguei uma saia. Para os pés uma sandália que deixava meus dedos a mostra, em sua altura. Olhei novamente ao espelho, fiquei satisfeita com o que vi, saí para a primeira noite.


- Você está certa.

- (...)

- Não chora.

Eu sem você (...) você sem mim. É tão triste.


- Eu já vou.

- Você vai sem me dar um beijo?

- Desce aqui (...) você está tão alto.

* Essa história foi escrita originalmente em 1994. Fazia parte de uma publicação intitulada Histórias abortadas e abortivas, que acabou sendo abortada.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

09 outubro 2015

AMOROSIDADE

Foto: Ernande, 2013.
Ernande Valentin do Prado

Difícil deixar prá lá.
Tem coisa que não pode ser evitada...

Silvana foi dormir logo depois de servir o jantar para o marido e os três filhos. Eles ficaram comendo, ela foi para cama, calada. Estava chateada com o marido, queria que ele soubesse. Ficou magoada com sua atitude bruta, sem sentido.
Quando o marido entrou no quarto, Silvana fingiu estar dormindo. Ainda não queria falar. Um nó na garganta não deixava. Se insistisse, era capaz de chorar. Não ia derramar lágrima nenhuma, prometeu a si mesma. 
- Não precisava fazer aquilo, pensou Silvana!
Quando voltou do pasto, Nenzinho avistou de longe uma enorme melancia verdinha no giral da cozinha. Ela brilhava no restinho do sol da tarde. Os meninos correram em direção ao pai, queriam brincar com o cavalo, antes de tirar a sela, como faziam todo dia. Até Isabel, de pouco mais de três anos, correu pelo quintal, um pouco atrasada.
- Papai, papai, papai...
Silvana tinha um sorriso enorme nos lábios, como há tempos Nenzinho não via. Aquela briga com o sogro estava acabando com a felicidade da mulher. Privando os filhos de conviver com a avó, os tios, as tias, os primos. O convívio familiar era muito importante, ainda mais vivendo naquele fim de mundo. Mas o que ele podia fazer? O velho era mais teimoso que uma mula empacada no brejo.
Sentiu um ódio ainda maior pelo sogro, ao pensar nisso.
- Viu o que o pai mandou, acho que ele tá querendo fazer as paz...
Antes de Silvana terminar o que ia dizer, Nezinho pegou a melancia e jogou aos porcos. 
Não disse nada. Pegou a toalha, um sabonete e foi se banhar no córrego atrás da casa. Chamou as crianças para ir juntas, como fazia todos os dias.
O sorriso nos lábios de Silvana murchou. Sentiu as pernas bambear diante da atitude orgulhosa do marido. Quis chorar, saber de Deus o porquê. 
- Por que meu Deus, por quê?
Nem lembrava mais quando, porque essa briga tinha começado. Só queria que os homens fizessem as pazes, poder visitar sua mãe, ver seus irmãos e irmãs. Levar os filhos para brincar com os primos.
Mas os dois eram mais teimosos que mulas velhas empacadas.
Por bastante tempo, aquela noite, Silvana ouviu as crianças fazendo barulho na sala. Pensou em levantar, conversar com elas, já que não conseguia dormir, agoniada, com dor no peito, por causa daquele ódio entre o pai e o marido. Ficou desanimada, sem forças, só queria dormir, mas as horas iam passando e ela acordada, com o pensamento longe. Até que não ouviu mais nada. 
Quando acordou, bem cedinho, junto com o galo e o sol, viu que o marido não estava mais na cama. Na cozinha, abriu a janela e sentiu o orvalho da manhã no rosto. Estava melhor, apesar da noite mal dormida. Olhou para os filhos, todos de cabelos crespinhos, iguais ao  do pai.
- Nenhum puxou a mim, pensou olhando as crianças uma por cima das outras, na mesma cama.
Mesmo ainda magoada com a atitude do marido, Lembrou-se porque havia casado com ele. Com a brisa que entrava pela janela, sentiu-se invadida por uma imensa ternura, pelo marido, pelos filhos, pela família que construiu.
- Eu sou feliz, eu sou feliz, repetiu para si mesma, talvez tentando se convencer.
Saindo pela porta da cozinha viu Nenzinho sem camisa, de costas, debruçado sob o cercado dos porcos.
- Deve ter se arrependido, pensou Silvana.
Caminhou em sua direção, pensando em abraçá-lo.
O marido sentiu a presença da mulher e virou-se, foi ao seu encontro, tentando pôr-se em sua frente, de modo que não pudesse ver dentro do chiqueiro. Mas não conseguiu.
- O que aconteceu?
Nenzinho não teve coragem de falar, nem era preciso.
- Ele ia matar os próprios netos, ele ia matar os próprios netos, ele ia matar os próprios netos! Repetia descontroladamente Silvana, chorando, gritando, jogando-se na terra, levantando, puxando os próprios cabelos, rasgando a roupa. A cor deixou seu rosto, ficou sem expressão, parecia um fantasma, olhos vidrados. 
Nenzinho compadeceu-se do desespero da mulher. Com muita calma, paciência, tomou-a nos braços com força, de modo que se sentisse segura, amparada, amada, cuidada, como prometeu que faria, diante do padre, quando se casaram em um fim de tarde de primavera.  Aos poucos a cor voltou à sua face. Ela recobrou a calma, limpou o rosto, levantou-se com pernas firmes.
- Passou! Disse ao marido, com voz firme. Até parecia outra pessoa. Tentou um sorriso.
Desvencilhou-se dos braços de Nezinho. Entrou na casa, em minutos voltou trazendo a carabina do marido. Estendeu-lhe a arma e disse:
- Vá!


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Revisão: Jailson Almeida.

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