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02 março 2018

LEMBRANÇAS E MEMÓRIAS

Imagem captada na intenet, 2018.
Ernande Valentin do Prado
Estou deitada numa cama. As luzes do quarto estão apagadas, mas não está totalmente escuro. Do meu lado tem uma menina, uma adolescente sem cabelos. Ela dorme. Ouço o barulho da maçaneta da porta sendo girada, como em um sonho, longe, longe, muito longe.
Minha cabeça sabe disso, a mensagem chega no cérebro, mas as pernas não obedecem, os braços ficam inertes, jogados.
- Será que a enfermeira entrou no quarto, me viu aqui?
Preciso levantar, não posso deixar que me veja aqui deitada, já me alertou várias vezes:
- não pode deitar na cama da paciente.
Isso fica martelando na minha cabeça o tempo todo:
- não pode deitar na cama da paciente.
Por tudo essa gente faz drama.
Mas não tenho forças, deixou ficar. Na minha cabeça eu levanto, espero a enfermeira em pé, alerta, bem-disposta, vigilante, cumpridora de minhas obrigações com a menina que parece muito doente, talvez até em fase terminal.
- Quem será ela?
O giro da maçaneta se completa. Fico preparada para ouvir a enfermeira dizer, com um falso carinho, uma falsa pena na voz melodiosa:
- mãezinha, não pode deitar na cama da paciente.
Quem é essa menina, é o que eu deveria estar me perguntando, mas tenho vergonha até de pensar. Sinto que deveria saber sozinha quem é ela.
A enfermeira abre a porta, não entra. Talvez não queira brigar comigo. Não hoje ou talvez eu só tenha sonhado.
Acho que não sei mais diferenciar o que são realidade, sonho, lembranças, fantasias, delírios. As lembranças veem e vão em fleches, sem que eu consiga entender, compreender, dar sentido. Como se fossem sonhos mesmos.
Quem é essa menina na cama? Por que não tem cabelo, porque há soros em sua veia, fios e monitores ligados nela? Por que estou cuidado dela? Por que a enfermeira me chamou de mãezinha? Sou a mãe desta menina ou enfermeiras chamam todo mundo de mãezinha? Por que não me sinto, melhor, por que me sinto tão incompleta?
Não sei quando isso começou. Não. Não lembro.
Muitas vezes não sei, como agora, o que são sonhos, o que são lembranças. E, quando sei que são lembranças, não sei se são minhas. Nosso cérebro é capaz de lembrar o que vivemos e o que nos contaram, o que lemos, soubemos de algum modo, então como vou saber que lembranças são minhas e quais são só coisas que sei de ouvir dos outros, de buscar no Google?
Li, mas não sei onde e nem quando nem porque, não pergunte, que a memória é uma, entre as diversas funções cognitivas do cérebro humano. Dizem que é através da memória, da associação de lembranças, de fatos, de sentimentos, emoções, coisas simples, concretas, abstratas, coisas complexas, reais, fantasiosas, com e sem importância, enfim, é pelo todo que sabemos e sabemos que sabemos ou não, porque tem coisa que sabemos, mas não sabemos que sabemos, nosso subconsciente é tão poderoso...
- Não consigo me concentrar...
São muitos pensamentos ao mesmo tempo e... algumas perguntas não tenho coragem de fazer, porque talvez não aguente saber a resposta sem desabar.
- não sei se sou assim, se minha imaginação é do tipo flutuante, com pensamentos delirantes que não se fixam em nada ou se isso também não sou eu, não sou quem fui?
Deixa eu tentar ordenar meus pensamentos: a memória é uma função complexa e fica ainda mais complexa por causa da linguagem...
- Foi assim que li.
...aprendemos coisas novas pela associação entre o que já sabemos e o que descobrimos, imaginamos, conseguimos deduzir, inferir. Quanto mais sabemos, mais capacidade de continuar aprendendo, combinando coisas em nossa cabeça, dar sentido e originalidade. Isso é bom.
- Não. Nem sempre é bom saber, lembrar. 
Será que quero mesmo saber quem é a menina na minha lembrança, que leito é esse, quando? Será que quero mesmo saber se isso é uma memória ou um sonho?
- Pensar nisso me dá uma tristeza, uma agonia, um desespero. Tenho vontade sair correndo, ir para bem longe, não ouvir, não ver, não falar com ninguém que saiba a resposta.
Se essas são lembranças, estão em minha memória, então serei capaz, mais cedo ou mais tarde, de recuperá-las, foi o que disse o médico antes de assinar a alta.
- Memórias são tão difíceis de apagar que até quando se apaga um hd, ainda é possível recuperar as informações supostamente deletadas. Com nosso cérebro não é diferente, as memórias podem e são recuperáveis, assim como nos hd de computadores.
Explicou o médico. Eu no centro, do meu lado outras pessoas. Parentes, amigos, gente que se importa comigo. Disseram.
- ...mas para isso...
Continuou o homem, que usava um estetoscópio no pescoço. Todas as vezes que o vi estava com esse estetoscópio, mas nunca o vi usando. Estranho. A sua expressão estava bem séria. Olhou diretamente em meus olhos, como que querendo indagar: você quer? Mas não disse nada. Só falou:
- ...é necessário querer recupera-las”.
A dificuldade para apagar definitivamente uma memória é verdade, tanto para as memórias orgânicas, que é essa capacidade de guardar, lembrar, armazenar e evocar informações disponíveis em nosso cérebro, quanto para os hd de computadores, que são as memórias artificiais.
Então parece que não tenho escolha. Mais cedo o mais tarde vou lembrar quem é essa menina, que hospital é esse, que dor é essa que sinto quando penso nela. Olhos claros, tristes... Deus do céu... que sensação de culpa é essa que sinto por não lembrar?
- Quem é ela? 
O telefone toca. Não reconheço o número de quem chama. Será que tem importância? Devo atender?
Como sei que isso que faz barulho é um telefone, que do outro lado tem uma pessoa querendo se comunicar comigo? Claro, se não for engano, se não for o telemarketing (tenho a impressão que só quem quer vender coisas me liga). A gente pode até se esquecer de quem é, mas o telemarketing não te esquece jamais.
Como sei que esse número é meu ou foi meu?
Como não consigo lembrar dessa vida, destas pessoas que parecem saber quem sou eu, quem é ela? Tentam me contar. Tentaram várias vezes, disseram, mostraram fotos, vídeos, mas não sinto que seja verdade, não faz sentido. Tão logo contam, esqueço. Só fica essa sensação de que falta algo muito importante, algo sem o qual não estou completa. Até nos momentos de sossego fica essa sensação de ausência.
Mas não devo me preocupar, disse o médico.
Será verdade, será que não preciso me preocupar?
Se não preciso me preocupar...
- Quando estiver preparada vai lembrar...
...então porque a expressão séria, quase acusatória em seu rosto?
Esqueci parte de minha vida, parte de quem sou, passado e presente e não guardo novas informações... ou melhor, como diz o médico: recuso-me a recordar, a aceitar... mas ainda sei falar, consigo pensar, andar.
Como ainda sei ligar o chuveiro, lavar os cabelos com shampoo, como sei que gosto de sabonete com cheiro de limão siciliano? Como esquecemos certas coisas e outras não?
Isso eu sei que sei: a memória tem a função de promover a nossa adaptação ao mundo e é por essa adaptação que sobrevivemos. Sem memórias, sem as lembranças, que é essa capacidade de evocar o passado, perdemos a qualidade de ser seres humanos.
- Dá para dizer que ser humano é ter o dom de guardar o tempo que passou, guardas as nossas experiências e as experiências alheias, dar-lhe significados.
E, se aprendemos, se nos integramos como sujeitos e não apenas nos adaptamos ao mundo, isso se faz pelo que sabemos, pelo que vivemos, pelo tempo que registramos como ontem, hoje e assim podemos projetar o amanhã.
- O gato vive um eterno presente, não tem consciência de sua história.
Como sei disso? Li algum dia, em alguma vida que tive. Mas por que sei isso, por que lembro disso?
O que somos são as histórias, as lembranças de sucessos e fracassos, de alegrias e tristezas, de tudo que aprendemos e do que ainda precisamos aprender. Todas essas memórias fazem o que somos e o que ainda vamos ser.
Será? E se perdemos as memórias, se perdemos todas as nossas lembranças, deixamos de ser quem somos? Se deixamos de ser quem somos ou quem fomos, será que podemos começar do zero, ser outra pessoa?
Quem sou é representado pelas minhas memórias, minhas lembranças e o significado que elas têm para eu e para quem comigo as compartilhou, é isso?
Ter memórias boas e ruins, honradas e vexatórias, é saber de fato quem sou? O eu é definido pelo que sei de mim mesmo? E se o que sei de mim é o que foi contado por outros, ainda assim o que sei é o quem sou?
Hoje sou só um gato. E, na maior parte do tempo, é assim que gostaria de continuar. Mas há lembranças, essas que veem e vão como um sonho e parecem formar nada mais do que uma colcha de retalhos desconexa, sem combinação de tecidos, de cores.
- Até quando?
Sou a mãe daquela menina morrendo? E se eu não quiser mais ser essa mãe, posso esquecer? Esquecendo deixo de ser mãe de alguém? Tenho esse direito?
Não sei se aguento continuar a ser essa colcha, esse gato, mesmo sentido que descobrir quem sou, quem é a menina no hospital, vá me despedaçar mais ainda. Isso é insuportável.
Fico quietinha, deixo o telefone tocar até a chamada se perder ou cair na caixa postal, o que dá no mesmo. Não vou olhar. Quero ser esquecida, quero não mais existir do mesmo jeito que as pessoas não mais existem em minha memória.
O médico disse que isso é transitório, que minhas memórias vão voltar, mas não sei se quero que voltem, não sei se quero lembrar. O pouco que estou recordando me faz sofrer de um jeito que não sei se consigo suportar.  Posso não lembrar? Tem um jeito de me reinventar ou devo voltar a ser quem fui?
Lá fora as plantas secam sem água nos vasos. Não me importo. Na cozinha a louça suja se acumula na pia. Uma mulher, que diz ser minha irmã, falou com muita certeza que eu não suportaria essa situação: louça suja, vasos com plantas morrendo por falta de água, poeira acumulando sobre os móveis.
- Você não é assim.
Falou a minha irmã.
No fundo ela quis dizer: nada disso é o que me lembro de você. Só existimos pelo que os outros sabem e lembram da gente, pelo que nós deixamos que saibam da gente. E, como ainda não inventaram um jeito de ler nossos pensamentos, só sabem o que nós contamos, o que podem nos ver fazendo. De verdade mesmo só nós sabemos quem somos, porque só nós podemos ler nossos pensamentos, nossos sentimentos mais profundos.
Nunca ninguém vai saber.
Tem coisas que sabemos de nós mesmos que não tem nem como traduzir em palavras ou atos. Por isso só nós sabemos quem somos. E, sem memórias, sem saber o que fizemos, nem nós sabemos quem somos realmente, do que somos e fomos capazes.
 Quem garante que eu não era do tipo que não me importava em limpar a casa, em cuidar de plantas? Quem garante que eu não estava fingindo me importar?
- Pensamento delirante, de novo, de novo e de novo.
Vontade perguntar para alguém se eu era assim, delirante, sem foco, dada a filosofar. Mas eu mesma pedi para ficar só, para não ser incomodada nestes primeiros dias de volta.
Às vezes basta alguém que nos conhece para nos orientar, para nos dar rumo, plumo. E agora, ao menos agora, por agora, talvez eu realmente não queira saber de nada. Nem se eu era capaz de suportar poeira sobre os móveis ou suportar outras dores bem piores. Nada. Saber de nada.
Por isso essa necessidade de ficar sozinha, de não falar com ninguém que me conhece, que sabe quem eu fui, que se importe comigo. Nem com o homem que se diz meu marido, que diz me amar e estar disposto a fazer tudo por mim, nem minha irmã, essa mulher que liga todo dia, que insiste, que bate na minha porta.
- Deve ser ela de novo.
Ouço as batidas na porta, os cachorros dos vizinhos latindo. Não tenho vontade de atender. Deixo batendo, vai acabar concluindo que não tem ninguém em casa ou que eu não quero atender. Estou vazia. Durmo, foi orientação médica. Acho que por isso me deixaram um pouco em paz.
Estou sozinha. Agora os rostos aflitos não me acusam tanto. Durmo, acordo, volto a dormir. Sonho. Sonho muito, sonho o tempo todo. E quando acordo não sei se são só sonhos ou verdades, coisas que me contaram antes de eu dormir e que não esqueci ou se são memórias mais antigas.
O sonho com a menina no hospital, não foi o único. Talvez tenha sido o mais completo, mais nítido, mas não o único. O tempo todo vêm fleches de sons, cores, cheiros, músicas, imagens, situações. Alguns eu tento reter na memória, guardar, acreditar que são memórias verdadeiras, porque são bons, despertam sentimentos bons, saudades. Outros eu quero convencer-me que não podem ser verdades. Quero voltar a dormir e esquecer que sonhei, esconder, esquecer, esquecer porque são doloridos demais para eu aceitar como acontecidos, como sendo parte de quem devo voltar a ser.
Em meus pensamentos, só meus, vejo uma menina com longos cabeços claros e cacheados. Do outro lado da rua ela acena. Também sorri, chama com as mãos e a boca, mas não consigo ouvir, só vejo. Ela está feliz. Usa um vestido florido, sapatos vermelhos. O dia está quente, penso em sorvete, tipo italiano, destes baratinhos que tem em toda esquina. Vou até ela, que diz:
- eu também quero. Adoro sorvete, adoro, adoro, adoro.
Acordo e fico deitada muito tempo tentando guardar essa lembrança. Só pode ser uma lembrança, um momento feliz que eu tinha esquecido. Meu coração se alegra, sinto um calor brotar no meu peito, uma vontade de lembrar mais desta menina, saber quem eu sou, quem é essa menina espontânea, falante, feliz que sai para chupa sorvete ao meu lado com tanta intimidade.
Aí, sem mais nem menos, lembro da outra menina, a adolescente sem cabelos no leito do hospital. Será que são as mesmas meninas?
Deus, não permita que essa menina alegre seja a outra, a que está deitada no leito do hospital... não permita, meus Deus.
Tento não dormir, não sonhar de novo, não voltar a sofrer com essa agonia. Mas ficar acordada não é certeza de não sofrer, de não lembrar de nada, de não pensar em como a vida pode ser bela e num instante se transformar num inferno, num mar de mágoas.
- O Google  diz que Freud explicava que quando a pessoa dorme a mente subconsciente desperta. E quando acordamos, a mente consciente acorda e a subconsciente adormece.
Freud também concluiu que durante o sonho todos os nossos desejos frustrados, emoções, pensamentos que não foram liberados durante o dia são libertados por nossa mente inconsciente. E que isso são os nossos sonhos, segundo Freud.
- Mas há outras interpretações, segundo Kabbalah...
Que não sei quem é e nem nunca ouvi lar.
- ...Freud está certo só em partes, porque há os sonhos espirituais e que através deles podendo receber mensagens proféticas do mundo superior.
Não sei se acredito nisso e nem se quero acreditar, nem em um e nem em outro. Freud e Kabbalah.
Só quero mesmo fica aqui sozinha. Quando tenho um sonho bom, acordo feliz, com bons sentimentos. Desperta percebo que o sentimento bom do sonho não dura muito. Tem sempre um porém, tem sempre a imagem da menina no hospital e a dor é insuportável.
Às vezes quero ficar o maior tempo possível acordada para não sonhar, para não lembrar de nada, então vem os pensamentos confusos, rápidos, delirante, as reflexões, as perguntas que não quero realmente encontrar a resposta.
Depois do almoço não consegui ficar acordada. O sol estava muito quente, já estava há horas acordada. Cochilei, coisa de oito minutos. Veio esse sonho:
Um homem alto, com um grande bigode e jaleco branco. Lá do alto onde o vejo, diz:
- Infelizmente o exame foi pior do que esperávamos.
Eu começo a chorar instantaneamente. Sem controle. Ele sai da sala e eu fico sozinha. Agora estou em um salão fazendo as unhas. É manhã, estou de mal humor de uma noite mal dormida. Não quero conversar, mas a manicure não para de falar. Fala, fala, fala de coisas que não quero saber, mas não faço nada, deixo ela continuar falando, falando sem parar e finjo estar ouvindo. Ela não percebe a diferença. Meus olhos estão lagrimejando enquanto ela lixa minhas unhas. Meu coração está apertado. Entra correndo uma menina de cabeços cacheado, corre e se joga no meu colo:
- Também quero fazer as unhas...
Estou olhando o mar em uma tarde. Águas verdes até onde vai a visão. O sol está quase se ponto nas costas do mar de Tambaú. Ouço música enquanto miro o horizonte, lá onde o mar não acaba e não se consegue ver mais. As ondas veem e vão, mas não ouço nada, nem o barulho das pessoas que passam atrás fazendo caminhada, pedalando, falando, rindo. Só ouço a música que está num volume bem alto. Sepultura: Orgasmatron. Tão alto que sinto os tímpanos vibrando e provocando dor. Ainda sinto o mesmo aperto no peito, uma agonia que vai aumentando à medida que percebo que alguma coisa está errada. Orgasmatron nem combina com mar, alguém está faltando. Tem algo muito errado neste cenário. Nem as ondas esmeraldas que veem e vão conseguem me acalmar. Quero sumir. Melhor, quero que todos sumam e só fique eu olhando aquele mar, mas sem essa música que não deixa eu ouvir o barulho das ondas quebrando na paia.
Contando, os sonhos parecem demorar, parece que durou uma noite toda. Felizmente ou infelizmente não é assim. No sonho parece que horas se passaram, mas ao acordar o relógio mostra que poucos minutos se passaram.
Entre um fleche e outro acordo. Sono agitado. O corpo dolorido. As vezes são os cães latindo que me acorda.
- Será que minha irmã voltou?
Penso. Mas continuo quietinha esperando não ouvir ninguém chamar, nenhuma batida na porta. Volto a cochilar.
Ela levanta-se, as pernas ainda bambas. Caminha até eu, sentada no sofá da sala. Um sofá vermelho que não tenho mais.
Não tenho mais?
Segura a falda em uma das mãos e tenta se equilibrar com gestos de quem segura o ar:
- Mãe, não preciso mais.
O carro da frente freou bruscamente. Bati. Coisa boba, uma lanterna quebrada. Um homem, vestido com farda da PM saiu gritando, me chamando de louca, pergunta onde comprei a carteira. Minha filha, no bando de trás fica assustada, começa a chorar. Ele para ao ver a menina.
- Tenho uma filha... sim, tenho uma filha. Onde ela está? Está precisando de mim? Como uma mãe esquece a própria filha?
É manhã. A mesa do café está posta, como dizem que eu gostava de fazer todos os dias. Estamos tomando café. Minha filha anda de um lado para o outro. A mochila está nas costas, está preparada para ir à escola. Tem nove, dez anos?
Meu Deus... como pude ter esquecido disso?
Digo:
- Vem cá...
E ela vem. Seguro seu rosto entre as minhas mãos. Olhos lindo, olhos verdes, olhos enormes. Quando ela era menor, muito menor do que agora, eu não cansava de olhar esses enormes olhos verdes e pensar:
- Olhos de mangá.
Minha filha tem olhos enormes, verdes, lindos. Olhos de mangá.
Mas hoje tem alguma coisa diferente. Os olhos verdes de mangá estão amarelos.
- O que será isso?
O que será é meu último pensamento, antes de virar para o lado e o sonho de lugar, de tempo, de sensações.
Um sono tão leve que até a respiração mais profundo me acorda. Dormindo a mente continua trabalho. Sim. Algumas pessoas pensam que ao dormir o cérebro para, descansa, mas não é assim que acontece. Dormindo resolvemos muitos problemas, que acordados não conseguimos solução. Então viro para o lado e meu cérebro continua jogando imagens que vão se sucedendo.
Duas horas da manhã acordo assustada, a cama molhada. Acordo o homem deitado ao meu lado, ele está sem camisa. Faz muito calor.
- A bolsa rompeu...
Ele levanta assustado, veste rapidamente uma camiseta branca, amassada, pelo avesso.
- Não precisa correr, tem tempo até ela nascer.
Será um sonho com o dia do nascimento de minha filha? Que gostoso passar por tudo isso. É como se estivesse revivendo tudo isso de novo. Não tenho mais como negar. Tenho uma filha. Esses sonhos são lembrança de uma filha que tenho.
- Tive?
Fecho os olhos. Quero continuar sonhando, sentindo essa coisa boa no meu peito.
A menina chora, está muito triste. Diz:
- Eu sou nova demais para morrer.
Choro também. Compulsivamente, descontrolada. A enfermeira fala calmamente, insiste, depois grita, uma, duas, três vezes:
- Mãe, se controle... Mãe, se controle... Mãe, se controle ou saia do quarto, por favor.
Saio e me vejo em uma rua toda arborizada. Um muro baixo longo, todo pintado com figuras infantis. Minha filha...
- Qual o nome de minha filha?
Ela caminha pela calçada, em frente ao muro colorido. A professora espera no portão. Nas costas uma mochila maior do que ela, mas carrega com dignidade. Recusa-se a ser ajudada.
- Mãe, não precisa entrar comigo, já sou adulta.
Seguro entre a mão o teste. Não sei como contar. Esse não era o plano, não agora. Um filho em tão pouco tempo. Como vai ser?
Estou numa praça enorme. Tem criança para todo lado: correndo, andando de patins, patinete, bicicleta, soltando pipa. Minha filha diz, olhando as rodinhas:
- Tira, mãe, já estou muito grande para usar rodinhas.
Tiro. Ela sobe na bicicleta e pedala, uma, duas, três vezes e cai. O meu coração bate mais forte, senti ele na boca. Mas antes que eu pudesse correr para ampara-la, levanta-se, ergue a bicicleta, olha para eu, ali sem conseguir me mexer. Sorri e sobe na bicicleta. Sai pedalando de novo e não caiu mais.
Finalmente acordo.
Sei onde estão as lembranças. Cada uma delas e nem estou falando das fotos nas paredes desta casa, que só percebo agora. Nem do quarto ao lado, das gavetas, dos objetos espalhados pela casa, cada um com pedaços de nossas vidas. Nem falo das lembranças guardadas na memória dos que ainda rondam minha vida e se importam com meu bem-estar. Sei que as lembranças, essas mesmas que me recusei a trazer de volta, estão aqui, comigo. Sei que vou ter que lembrar. Lembrar de tudo, não só dos momentos que fizeram minha vida mais feliz, mais completa.
Terei de lembrar da menina de cabelo cacheado e da menina sem cabelo. Terei que descobrir o que aconteceu com elas, porque estão todas aqui. Quero lembrar porque esse tempo, registrado nestas lembranças, tanto as boas quanto as ruins, as desesperadoras, trazem de volta uma parte de quem sou. Não ter lembranças é não ter uma filha. E ter uma filha, mesmo que não esteja mais comigo, é parte de quem sou, de quem quero ser.
Quero voltar a me sentir completa, esquecer que um dia preferi esquecer que tive, que tenho uma filha. Se vou me despedaçar em mil pedaços, por completar essas lembranças, tudo bem. 
- Depois vou me juntar...
Lembrar tudo, lembra de minha filha, guardar as lembranças...
E tem mais. Mas hoje, só hoje quero pensar no quanto esse tempo ao lado de minha filha foi bom e me tornou outra pessoa.
Lembro, sem dormir, sem sonhar, dela levantando-se, lá de onde passou um longo tempo quietinha pintando com giz de cera.
- Mãe, mãe, olha mãe...
E estende uma folha toda borrada com diferentes corres. No centro:
Luzia.
- Escrevi meu nome, tá certo, mãe?


 [Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
COLEÇÃO: ALÉM DA ARREBENTAÇÃO


19 janeiro 2018

AMOROSIDADE (SEGUNDA PARTE)

Arvores de Rio Negro. Ronaldo Ávila, 2007.
                                                                                                             Ernande Valentin do Prado

De onde estou deitado vejo toda a estrada, a entrada e a saída da ponte.
É por aqui que têm que passar, não tenho dúvidas, essa é a rotina da família. Todas as quartas-feiras montam seus cavalos, e seguem puxando duas mulas carregadas com queijo. Levam à feira, depois do almoço voltam com as mulas já sem a carga que levaram pela manhã. Sempre, desde que era menino, desde que meu pai trabalhava para o maldito, conheço essa lida. Vão passar por aqui, a qualquer momento e hoje os queijos vão estragar no lombo das mulas.
O sol queima meu rosto, como se não estivesse acostumado. Os mosquitos zunem em minhas orelhas, como se não estivesse acostumado, o tempo passa mais lentamente, como se eu não estivesse acostumado a esperar. É só mais um dia. Depois volto para casa, alma lavada, lavada com sangue de desgraçado, de jararaca ruim, capaz de morder e envenenar a própria filha, os netos... alma lavado com sangue de maldito.
Tem que ser feito, agora não tem volta. Depois, em casa, vou abraçar meus filhos, olhar o rosto de Silvana, entregar a carabina, pela última vez, em suas mãos, cano ainda quente. Três tiros. Só três: um no coitado do acompanhante, dois no maldito.
Fico esperando, aqui de cima, olhando a cabeceira da ponte, por onde vão passar e lembrando dos porcos mortos: podia ser meus filhos, podia ser Silvana... isso me dá mais ódio, mais coragem, tira minhas dúvidas, faz eu saber que não tem outro jeito... tem que ser feito.
- Maldito.
Tem que ser feito, é o certo... ou Silvana não mandaria...

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]




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publicada em 09 de outubro de 2015.

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