Jaime sorriu ouvindo o homem no carro de som.
— O bandido anda armado, mas o pai de família está indefeso.
Disse o homem e esperou pelos aplausos.
— Verdade!
Aplaudiu quase sozinho Jaime com entusiasmo exagerado, enquanto
cutucava um senhor de terno e gravata, com uma bíblia embaixo do braço, em pé
ao seu lado.
— Esse é bom, né não?
Disse encarando o homem, esperando uma resposta que só poderia ser
positiva, segundo o que acreditava como uma verdade absoluta.
— Gente como a gente, né não?
O homem, constrangido, tentou afastar-se. Insistente, aguardando
sua resposta, Jaime deu um passo em direção ao senhor com a bíblia e continuo
argumentando:
— Pai de família tem que andar armado, né não? Eu mesmo não saio
de casa sem meu treisoitão.
Disse e apalpou o volume na cintura para que o homem visse.
— Esse é meu, não é da corporação. Tô ou não tô certo?
Jaime, desde criança está sempre disposto a comprar briga. Não
precisa motivo, parece que nasceu com ódio ou que relaxa esmurrando alguém.
Para melhor executar seu talento, desde cedo frequenta academias e aulas de jui
shih tzu. Tem vontade de ser lutador de MMA, mas já ouviu o Sargento Mendonça
dizendo que isso não é para os homens da corporação. Jaime leva
muito em conta a opinião do sargento mais durão do batalhão.
Jaime, nos dias de folga, diverte-se metendo medo nas pessoas que
discordam de suas opiniões. Coloca roupas civis e entra em todo tipo de
discussão.
Queria mesmo era voltar a descer a porrada em serviço, mas depois
de responder dois processos disciplinares, resolveu atender ao pedido do
coronel e maneirar por uns tempos.
— Tem sempre um escroto dos direitos humanos de olho na gente.
Disse o coronel, ao arquivar mais um processo disciplinar contra
ele.
— Direitos humanos só para humanos, coronel...
Disse batendo continência.
O coronel sorriu olhando o soldado sair de sua sala.
— Cuidado com as câmeras de celulares...
Ainda acrescentou o coronel.
Às 20 horas, daquela mesma noite, Jaime estava sentado no banco
direito da viatura, estacionada em frente ao Cachorro quente do Zé Pretinho.
Atendeu o rádio: violência doméstica.
— Coisa boba...
Pensou.
Instintivamente levou a mão ao revólver e pensou que seria bom
trabalhar na viatura do Sargento Mendonça, trocar tiros com marginal de
verdade. Ultimamente só atendia esse tipo de chamado, quando não era marido
bêbado, era som alto, quase sempre em igrejas pentecostais. Essas chamadas o
Sargento não atende.
Certa vez, quando chegou para atender um destes chamados, já mais
de meia noite, prendeu o reclamante e desculpou-se com o pastor. Essa história
contou de forma anedótica mais de uma vez, sempre tomando cerveja em bares onde
PEMES não pagam as próprias despesas.
— Onde já se viu?
Repetia com o copo na mão, falando cada vez mais alto e mais
entusiasmado:
— O negão era da umbanda...
Dizia esperando que a conclusão fosse óbvia para todos e diante do
silêncio, concluía gritando:
— ...vagabundo, né não? Enfiei o cano do treisoitão na boca do
meliante, algemei e levei o negão embaixo de porrada para delegacia do
Gervásio, que além de delegado dos brabos, é pastor da Assembleia de Deus.
E antes que todos se afastassem, acrescentou:
— Satanista na minha área não, né não, mermão?
Quando chegou ao local, já não ouviu mais nada. A briga devia ter
terminado. Mesmo assim resolveu entrar para averiguar, quem sabe ainda pudesse
dar uns sopapos...
Muitas vezes divertia-se agredindo o agressor. Era sempre a mesma
coisa.
— A mulher, depois de apanhar bem...
Dizia.
— ... ainda pede pelo amor de Deus para liberar o seu marido.
Ria contando essas histórias nas sessões de cerveja e salgadinhos
na faixa, nos bares do bairro, enquanto a viatura ficava estacionada em cima da
calçada.
— Mulher é bicho sem vergonha, né não?
Dizia ao colega, no volante da viatura:
— Nem precisa descer. Essa região é de casas de trabalhador, chá
comigo, eu resolvo.
Desceu, entrou pelo portão, caminhou através do jardim
ouvindo o vira-lata e o colega parar em uma estação de rádio que tocava “Bichos
escrotos”, do Titãs. Deu três batidas leves na porta:
— Abre a porta, cidadão, é a polícia.
Foi o que disse com voz firme.
A porta não se abriu. Jaime bateu novamente três vezes, agora mais
forte e gritou:
— Abre, é a polícia.
Esperou e a porta não se abriu. De dentro, o homem de bem, pai de
família, puxou o gatilho duas vezes.
[Ernande
Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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