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Outubro Rosa em Dias D'Ávila - Ernande, 2013 |
Ernande Valentin do
Prado
Apesar do Sistema Único
de Saúde (SUS) já ter mais de duas décadas e de ter assumido a necessidade de
institucionalização de um modelo assistencial que atenda de forma universal e
com integralidade às necessidades de saúde e cuidado da população, o que
continua prevalecendo é o atendimento fragmentado no modelo biomédico clássico(1).
Esse modelo que pouco ou nada leva em conta que saúde e doença não são
condições aleatórias, mas dizem respeito à posição social de cada um e da
comunidade(2), como deixa ver a Lei 8080 de 1990(3).
Apesar de parecer
natural, a concepção de saúde que temos hoje, essa da constituição e dos
documentos do Ministério da Saúde, é importante lembrar que o conceito de saúde
muda conforme a época e os valores da sociedade em determinado momento.
Saúde/doença, em épocas remotas, especialmente antes da ciência como forma
dominante de saber, já foram pensadas como merecimento ou castigo divino(4).
Naquelas épocas os cuidados de saúde eram coerentes com a concepção de
saúde/doença que se tinha e consistia basicamente em fazer a vontade divina,
expiar as ofensas que contribuíam para o adoecer. O conhecimento dos meios de
cura, pensados como expressão de assistência e (talvez) de cuidado, davam
poderes místicos e/ou religiosos ao cuidador: curandeiro/médico(4).
Centenas de anos se
passaram desde estas épocas remotas da humanidade, novas concepções foram sendo
incorporadas, mas o entendimento mágico religioso ainda perdura em culturas
urbanas e rurais, apesar dos esforços realizados ao menos desde o século XVII
em racionalizar e normatizar os cuidados de saúde(5). Entender, sem
preconceitos esta dinâmica sociocultural, é fundamental para conseguir promover
saúde nos dias de hoje.
E por que é importante
estudar e entender isso?
Cada sociedade organiza
seu sistema de saúde conforme o entendimento que tem do que é saúde(6).
Esse entendimento determina as práticas profissionais desenvolvidas no
cotidiano dos serviços de atenção à saúde(7), por isso, discutir
essas concepções, que nascem da reflexão da conjuntura social, econômica,
política e cultural da época em que se vive, é mais do que importante, é
fundamental, porque embora pareça meramente teórica, tem implicações na prática
cotidiana, no pacote de serviços que é ou não é oferecido ao cidadão que busca
assistência. O que se pensa tem implicações no que se faz(8), embora
nem sempre se consiga ver.
Como a “historia” não
tem fim, concepções antigas continuam vigentes entre as pessoas, ao mesmo tempo
que as novas concepções. Por conta disso, para entender como as pessoas percebem
o que é ter saúde, precisamos considerar valores individuais, concepções científicas,
religiosas, filosóficas(9), a história e o lugar de cada um. Isso é
especialmente importante porque o SUS tem como um de seus princípios mais
importantes a integralidade.
Como oferecer um
serviço integral sem conhecer as concepções de saúde que perduram entre a
população e os profissionais?
É natural que
profissionais e usuários dos serviços, por exemplo, tenham expectativas
diferentes do que é e do que produz saúde. O cuidado ou a assistência à saúde
dependem deste entendimento e variam, assim como o conceito de saúde, com o
tempo. Por outro lado, é preciso considerar que as práticas cotidianas dos
profissionais e serviços condicionam o conceito de saúde da população(10).
O entendimento sobre o
que é saúde, no Brasil, começou a mudar a partir da reforma sanitária nos anos
70 e culminou com a criação do SUS na Constituição Federal de 1988. Ele foi
pensado para dar respostas às condições de vida da população e atender as
necessidades integrais, ver o sujeito dentro de seu contexto: família,
comunidade, história, religião, aspirações, não apenas para dar respostas ao
corpo doentes. No entanto, as práticas
nos serviços de saúde ainda são centradas meramente na análise dos sintomas
físicos, estáticos, descontextualizados, apresentados no momento da consulta. É
nesse cenário que a maioria dos profissionais se sentem confortáveis, é o que
efetivamente conhecem. A “imagem” de saúde que não leva em conta os
determinantes sociais do processo saúde/doença, não corresponde à realidade e
as necessidades contemporâneas(11), mas as condições de vida ainda
são constantemente ignoradas na clínica.
Mudar práticas de saúde
que não levam em conta os determinantes sociais não depende apenas de mudanças
conceituais, embora sejam importantes, prova disso é que na Constituição
Federal(12) (CF) e nos documentos do SUS, as mudanças já foram
feitas e são coerentes com nossos tempos. O Art. 196 da CF diz que a saúde é
direito de todos e que cabe ao estado garantir acesso universal e igualitário
às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde. A Lei
Orgânica de Saúde3, no artigo 3º, diz que saúde depende dos fatores
determinantes e condicionantes, entre outros, alimentação, moradia, saneamento
básico, meio ambiente, trabalho e renda, educação, transporte, lazer, acesso
aos bens e serviços essenciais. Enfim, ter saúde depende das condições de vida
e não apenas das questões biofisiopatológicas.
A persistência deste
modo de organizar o fazer em saúde parece ser responsabilidade, também do
complexo formador e sua ênfase exagerada em especializações cada vez mais
disciplinares, que é o resultado lógico da concepção mecanicista da vida
derivada da ciência cartesiana(13). Uma das consequências disso é
pensar os cuidados apenas como procedimentos, e não como uma forma de estar com
as pessoas que precisam. Cuidado é escuta(14), cuidado tem relação
com a atitude de desvelo e preocupação com o outro(15), o que, em
outras palavras, quer dizer também responsabilidade com seus destinos. Cuidar
não é só executar uma técnica, embora a técnicas possam e devam ser feitas com
cuidado.
A concepção de
saúde/doença continua evoluindo e há evidencias de que estamos avançando em
direção à integralidade, que cada dia mais os profissionais de saúde estão
considerando os determinantes sociais do processo saúde/doença/cuidado, embora
lentamente e bem aquém do necessário. Se a integralidade parece ser uma
“prática” distante do dia a dia dos serviços, já há discussões importantes em
nível teórico e político, o que sempre quer dizer alguma evolução na prática.
Entre esses sinais de evolução podemos falar da existência da própria APS e a
ESF, na formulação e implementação, ainda incipientes, é verdade, da Política
Nacional de Promoção de Saúde, de Humanização e da clínica ampliada, de
Práticas integrativas, do pacto pela saúde, da Política Nacional de Educação
Popular em Saúde, entre outras.
Cuidado em saúde
coletiva expressa-se melhor através da promoção de saúde14, e isso
não se faz de modo isolado, disciplinar, apenas dentro de consultórios, mas na
comunidade, com todos os recursos públicos e comunitários disponíveis.
Consolidar o conceito
de saúde do SUS passa necessariamente pela integração de seus diferentes
princípios, mas também pela superação das diversas fronteiras de conhecimentos
disciplinares fragmentados, característicos da APS(16), mas
sobretudo pela construção compartilhada de saberes/fazeres, cada dia menos
disciplinares e mais inter e transdisciplinares, porque o “sujeito não tem como
ser capturado por uma única disciplina(17). A discussão e a prática
de saúde no SUS precisa ser cada vez menos fragmentada, o que exige, entre
outras coisas, novas formas de comunicação entre profissionais, gestores e
comunidade.
(1) Prado EVd, Santos ALd, Cubas MR. Educação em saúde utilizando rádio como estratégia. Curitiba: CRV;
2009.
(2) Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde
- CNSDSD. As causas sociais das
iniquidades em saúde no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008.
(3) BRASIL, Lei Federal n. 8.080, de 19 de setembro de
1990. SUS é legal – Rio Grande Do
Sul. Legislação Federal e Estadual. Out.2000, p.22.
(4) Oguisso T. As origens da prática de cuidar. In: Oguisso
T, editor. Trajetória histórica e legal
da enfermagem. Barueri-SP: Manole; 2007. p. 03-29.
(5) LIMA, J. C. F. Bases Histórico-Conceituais para a
Compreensão do Trabalho em Saúde. In: FONSECA, A. F. e STAUFFER, A. D. B. (Org.). O
processo histórico do trabalho em saúde. Rio de Janeiro:
EPSJV/Fiocruz, 2007.
(6) Paim. JS. O que
é o SUS. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2009.
(7) Batistella C. Saúde, Doença e Cuidado: complexidade
teórica e necessidade histórica. In: Fonseca AF, Corbo ADA. (org). O Território e o Processo Saúde-Doença.
Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2007. p. 25-49.
(8) MINAYO, M. C. D. S. Saúde e doença como expressão
cultural. In: MINAYO, M.
C. D. S.; FILHO, A. A., et al (Ed.). Saúde, Trabalho e Formação Profissional.
Rio de Janeiro: FIOCRUZ, v.1, 1997.
(9) Scliar M. História do conceito de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva.
2007;17:29-41.
(10) Minayo MCdS. O
desafio do conhecimento. 12ª ed. São Paulo: HUCITEC; 2010.
(11) CAMPOS, F. E. D.; AGUIAR, R. A. T. D.; BELISÁRIO, S.
A. A formação superior dos profissionais de saúde. In: GIOVANELLA, L.; ESCOREL,
S., et al (Org.). Política e sistema de
saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz / Cebes, 2008. p.1011-1034.
(12) BRASIL, Senado
Federal. Constituição Federal 1988. Brasília:
Senado Federal, 2010.
(13) Capra F. O
ponto de mutação. São Paulo: Cultrix; 1982.
(14) PRADO, e. V. D.; FALLEIRO, l. D. M.; mano. M. A.
Cuidado, promoção de saúde e educação popular – porque um não pode viver sem os
outros. Rev APS, v. 14, n. 4, p.
464-471, 2011.
(15) BOFF, L. Saber
cuidar. Petrópolis-RJ: Vozes,
1999.
(16) Paim JS, Almeida Filho N. A crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva. Salvador:
Casa da Qualidade; 2000.
(17) SEVERO, S. B.; SEMINOTTI, N. Integralidade e transdisciplinaridade
em equipes multiprofissionais na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, p. 168.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]