Bloc de Educação Popular em Saúde com foco em crônicas, contos e poesias. Reflete o dia a dia de trabalhadores do Sistema Único de Saúde e Saúde Pública e Coletiva.
(cotidiano, saúdes, vidas, poéticas, sensibilidades, ternuras, raivas, gritos)
Conheci o Pablo nos bastidores do TEDxUnisinos quando nos preparávamos para um dos maiores frios das nossas barrigas. Conversamos e ele me presenteou o livro "Alvorada em quadrinhos" onde ele foi redesenhando a cidade em que ele nasceu e contando a história das pessoas. Entre 2018 e o começo deste 2019 tive a chance de apresentar Pablo e Maria Amélia em Porto Alegre para a Amélia virar uma super heroína de história em quadrinhos - pelo menos foi assim que brincamos.
Pablo está construindo também o projeto Conversas em Quadrinhos e disso veio a Amélia em quadrinhos. Hoje olhando a história de Amélia pelos desenhos de Pablo vejo ela falando dos pequenos projetos das resistências, dificuldades e alegrias no bairro Porto Novo em Porto Alegre. Ele mesmo escreveu que "Aprendemos bastante só de ver outra realidade. E nesse dia vi várias realidades. Tanto a dela como a de seus pacientes. Foi ótimo.".
E foi ótimo poder ler e mergulhar com carinho em caminhos que vi e vejo ela construir. Certamente como um colega escreveu a medicina de família e comunidade do amor. Obrigada pelo olhar atento Pablo e pelas histórias de aninhar o coração Amélia! Não deixem de conferir:
Para no posto de gasolina e eles oferecem desconto de 40 centavos no litro da gasolina, por causa do serviço prestado. Ao mesmo tempo, conta sobre o cartaz dos planetas com a filha. Quer fazer de material reciclável e descobriu que Plutão não existe mais e que ontem chegou tarde e as crianças já estavam dormindo. Vamos visitar uma paciente e ele diz “a gente nunca imagina que vai chegar o ponto de ter a comida que você mais gosta e não conseguir comer”. Ou reflete “sai tão ingênuo da universidade, achando que poderia fazer alguém parando de fumar, obedecer um medicamento”. Quase na hora do almoço corremos para levar um paciente do presídio que ele cuida voluntariamente no hospital, o paciente diz Trás um pipocão pra mim”, a resposta “Sim, pode deixar”. Após ir até a casa de um senhor lá bem no alto do morro em Caratinga, ele oferece carona para o filho que senta no banco da frente e eles conversam sobre o pai doente, sobre a situação da família. Vamos para o presídio e o paciente nos diz: “Ou você está para morrer ou para matar”. Uma história de uma paciente que apanhou por dias na cela e que ele disse que não ia mais atender ninguém até pararem de bater nela. À noite depois um dia extenso de finitudes, que começa antes das sete horas da manhã vamos rever o paciente ao colocar os pés na porta do hospital me olha “Ih, esquecemos do pipocão” eu emendo falando “Trazemos amanhã”, ele diz “Não, vamos lá buscar”. Entramos no carro, descemos o morro, fomos até o centro, atravessamos a rua, já passando das nove. Compramos o pipocão. Ele vai avaliar o paciente senta na cama ao lado dele e os dois comem pipoca, quase que em uma travessura. No final ele me diz: “Eu quero ver ele sem essa roupa do hospital azul horrível e sem o uniforme do presídio, queria ver ele vestido como gente”.
*Texto publicado no blog e site do Tainha na Rede do Pântano Sul pelo Fernando Alexandre entusiasta e fomentador da cultura da ilha de Santa Catarina.
“Deus te criou, eu que te benzo e
deus te cura”.
Fui visitar uma benzedeira na
casa dela no sul da ilha de Florianópolis. Mais de 100 anos de vida, conta-me
que aprendeu a rezar com a mãe, mas não porque queria, porque ela quando jovem
não queria benzer, queria mesmo é dançar. Dançava muito.
Um dia desses quando moça foi
para Cachoeira e estava descansando quando uma mulher veio pedir para ela
benzer um menino. Ela disse que não, que não benzia. A mulher disse:
"deixa disso que eu sei que tu benze, tua mãe benze". Ela meio que
sem graça disse que ia benzer, e assim fez sua primeira benzedura para mal
olhado, mas logo avisou "não conta pra ninguém". O menino pegou jeito
e logo já estava em todas as bocas. A mãe dela faleceu e ela que só sabe cinco
rezas, a de cobreiro, zirpa, calor de figo, empiche e mal olhado. Cobreiro tem
que benzer nove vezes e cruzar os pauzinho, adverte e reza. “Sabe o que é calor
de figo? É quando desce uma aguaceira pelas canela, assim ó” – e gesticula com
as mãos a água descendo das canelas. “Eu não sei benze fungado, mas tô benzendo
e tá curando”. No “não conta para ninguém” a fama se espalhou de dançarina para
benzedeira, rendeira, mas não parteira, nem macumbeira que ela avisa. O que eu
não sei rezar minha mãe ajuda, ela que sabia todas as orações, já rezei até
para espinha de peixe.
- E esse machucado na testa? –
pergunto vendo o curativo grande na testa.
- Ah isso aqui eu cai e machuquei
o joelho – ela levanta a calça com o joelho infeccionado e os pontos de sutura
muito avermelhados.
- E não tá doendo? -.
- Não dói não. – eu examino com
calor local, secreção. Ela me diz:
- O médico foi tão bonzinho que
costurou, eu tava toda cheia de sangue ele não me deixou esperando, disse para
eu voltar na sexta-feira para tirar os pontos, mas na última sexta-feira eu não
fui, quero tirar só com ele -.
- Mas era importante tirar os
pontos – comento mansamente.
- Mas ele disse que vai resolver
o problema da minha pele – ela diz e aponta para o rosto - vou tirar os pontos
só com ele -. Penso um pouco.
- Eu acho que está infeccionado
- ela logo me diz – mas eu já benzi,
benzedura forte com zirpa, até vi uma rosa branca no meu quarto no final da
tarde.
- Certo, quem sabe vamos fazer
assim, eu tiramos aqui os pontos do joelho e na sexta-feira você tira os pontos
da testa – que estavam limpos e cicatrizando.
- Bem que tô sentindo umas
ferroada, não consigo dobrar o joelho assim ó – e ela tenta dobrar o joelho, e
segue - Vai doer? – .
- Menos que ter um filho –
respondo, ela solta uma risada larga – se é menos que ter um filho eu aguento,
tive oito -.
- Tá combinado? Acho que vamos
ter que tomar um remédio por uns dias – explico e olho nos olhos de benzedura.
- Amanhã de manhã eu vou lá – e ela
segue me contando e rindo das histórias de benzedeira.
Um dia ela estava passeando e uma
comadre pediu para ela benzer a criança, “eu sei que hoje é domingo mas dá
última vez que você benzeu minha filha deu tão certo”. “Domingo eu não benzo,
tem muita missa” mas ela disse que “ia benzer escondidinho, por causa da
distância”, logo alguém espalhou que ela estava benzendo e teve que benzer uma
“porção de menino”. Até as benzeduras que ela não conhece ela já benzeu, “não
sei benzer coluna, mas estou benzendo e está curando”. Mas se for mal de carne
quebrada encaminho para o Seu Patrício – quase uma rede de benzeduras de
plantão. “Vem aqui, benze aqui” e assim foi.
Ela também me adverte que não
come peixe, mesmo vivendo na vila de pescadores. Só come frango e dá risada,
mas distribui os peixes que ganha de presente quando reza para a pesca e o
barco vem cheio. Já benzeu um padre, a Xuxa e o repórter que foi lá no último
final de semana e ela estava muito
preocupada que apareceu na televisão benzendo com o curativo na testa.
Texto-desabafo de uma discussão sobre a visão do especialista sobre o profissional na APS e a influência desta visão na escolha jovem médico (que por pressão dos colegas, professores e outros profissionais fica em dúvida em relação a escolha), acabei escrevendo a seguinte resposta (transformada em carta).
Para Marcela
Caro estudante de medicina/jovem médico,
Acho que dividir histórias ajudam a nos entendermos e entender
o próximo. Passei por um processo de aceitação quando no terceiro ano da
faculdade desconstrui muitas das visões romantizadas da medicina e bati o pé
que queria fazer medicina de família e comunidade, e hoje além de fazer
medicina de família e comunidade ainda bato o pé que quero ir trabalhar na zona
rural. Desde então foram desde professores que se negaram a dar uma explicação
porque eu escolhi ser médica de família, até escolherem os pacientes humildes para
eu tratar porque é "medicina de pobre". Penso que consegui aprender muito e fazer grandes trocas tentando
trabalhar a competência cultural e minha própria bagagem nas consultas.
Hoje e a cada dia o que eu mais tenho certeza é que não
quero fazer uma outra especialização. Fragmentar, dissecar e clinicar sem ver
os determinantes de saúde e sociais, medicar sem entender contexto, usar meias
e minhas verdades como generalizações e aprendo a enxergar essas diferenças com
a medicina de família diariamente, mesmo ainda sendo estudante (sim, entendo a
importância do especialista, mas não entendo porque ao escolher medicina de família e comunidade tenho que ouvir sermões sobre maus encaminhamentos, sobre médicos ruins no PSF, sobre minha escolha ser equivocada e que vou "ganhar pouco dinheiro"). Eu me questiono muito como muitas vezes o médico
que tanto crítica a especialidade (currículo oculto ou preconceito velado) não consegue despir-se das roupas velhas
(sim, precisamos todos rejuvenescer, já dizia Belchior).
Nunca a medicina foi tão capaz de resolver coisas e tão
incapaz de alcançar as pessoas. Nunca fomos tão criticados. E nunca fomos tão
incapazes de ouvir (em tempos de comentários e jocozidades sobre "febre
interna", "espinhela caida" e "peleumonia"). Essa
pragmatismo e contrastes encontram uma forma de aproximar as distâncias na
medicina de família, no método centrado na pessoa, na chance de emponderar um sujeito e coordenar o cuidado.
Em nosso mundo que cada vez fica maior, mas mais
interdependente o paradigma, hoje, de saúde-doença mudou, as doenças crônicas
superam as doenças infecciosas e a causas dessas doenças estão fora do
"setor saúde" e são profundamente moldadas pelos produtos e práticas
das indústrias de alimentos, bebidas, tabaco, álcool e marketing.
E na prática do médico generalista é possível encontrar uma
forma de resistência e não é uma resistência sozinha (médico para médico,
profissional para profissional) mas no sujeito que está a sua frente.
E não só na perspectiva brasileira, mas quando paramos para
pensar que a diferença de expectativa de vida dos países
"desenvolvidos" e em "desenvolvimento" é de 40 anos,
precisamos refletir sobre o papel da atenção primária nesses contextos, nessa
revolução - mesmo que muitas vezes discreta. E voltar-se para essa atenção
primária é também voltar-se para a direção de um cuidado mais integrado,
compreensivo e centrado na pessoa/comunidade.
O trabalho é árduo e demanda muito, em uma mesma sala de
espera você pode encontrar um pouco de tudo das mais "difíceis" e
raras doenças que um médico deve "estar preparado para lidar" com o
bônus de conhecer as pessoas, a comunidade, e no seu diagnóstico poder incluir
as causas e determinantes destes problemas de saúde. Do contrário do ambiente
hospitalar, a negociação e a conversa terão que ser muito mais aprofundadas,
muito mais desafiadas porque o paciente entrará pelo teu consultório "dono
de si" e perguntará, opinará e muitas vezes não irá "seguir o que
dizes" isso vem de encontro com novas habilidades e caminhos que temos que
desenvolver constantemente. Além disso, você "nunca verá", quando der certo o
papel de evitar que um infarto aconteça, que uma diabetes se desenvolva, o paciente que não chegará a emergência, de
poder segurar até o fim na mão do paciente são muito mais marcantes e intensos.
O especialista tem que existir e tem o seu papel (isto não é uma batalha/luta, é cuidado coordenado e temos que trabalhar juntos!), mas sempre devem ter os
médicos que conhecem os seus pacientes bem o suficiente para gerenciar
realmente a totalidade da saúde em todas as suas múltiplas dimensões, incluindo
as necessidades mentais e espirituais.
Acho que esses são alguns dos sonhos, utopias e realidades.
Espero que possamos ser colegas de residência.
Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo." -
Maria Carolina de Jesus
“A liga que não faz nada” entre outras frases como “a liga
que só filosofa”, “a liga que escreve sonetos”, “o pessoal que cheira cola”, “a liga
desorganizada”. Cotidiano de pessoas, acadêmicos do curso de medicina, que
vivem no terreno árido e hospitalocêntrico da vida universitária - na tentativa de desenvolver um projeto de extensão popular. Afrontas não
só de outros acadêmicos, mas também de professores e técnicos. A grande questão
não é o que é melhor ou é pior, é compreender que tudo faz parte de um sistema
e que cada conhecimento se complementa, é apenas diferente. Para muitos, a verdadeira alegria da
medicina ganha vida nas relações formadas com os pacientes. É difícil
quantificar o problema, mas as ofensas sutis, pequenas tensões e hostilidades
entre médicos (e também acadêmicos) somam um estresse mental significativo, nos
quais os efeitos podem ser deletérios. O que tem “tom de brincadeira” é
dividido por uma linha tênue de afrontas e humilhações. Nesse sentido, compreender
que a diminuição ou depreciação dos colegas sobre a Liga de Educação em Saúde e
também sobre a Estratégia Saúde da Família (aproveito o ensejo para falar também
deste tema) ou as escolhas de cada um são formas desrespeitosas de lidar com os
colegas, amigos e pessoas.
É difícil você ouvir falar que o trabalho de um clínico é
"sempre a mesma coisa" ou que um cirurgião "é médico de
mentira" ou que você é “petista” (ou “comunista”) porque escolheu fazer
ginecologia. Ninguém fala que você é burro ou menos capaz porque você escolheu
pediatria. Ou ainda dificilmente alguém utiliza demagogias de que você não sabe
escolher a sua própria especialidade ou que você deveria rever as suas escolhas. Por que
então falar isso dos médicos de família? Por que falar isso de acadêmicos que
criam e participam de uma Liga de Educação em Saúde? Se você falar que quer ser
médico de família durante a sua formação certamente você irá ouvir algumas
perguntas como: "você sabe encaminhar?", se "você votou na
Dilma?" se "você tem preguiça?", ou a afirmação "eu não vou te ensinar
porque você quer ser médica de família". Às vezes nem perguntam, como
escutei há umas duas semanas, “aí vem a médica do PSOL” - eu olhei para o
médico residente que fez a brincadeira, pessoa que nunca havia trocado uma
palavra comigo, nem me cumprimentado, eu não conhecia ele e pior nunca
demonstrei minha opinião política nesse sentido. Além disso, eu não entendo o
que isso muda na minha prática e habilidade médica. Existe, na conjuntura atual, uma certa dificuldade em distinguir opiniões e fatos políticos com a prática e escolhas dentro da medicina.
Por que acadêmicos que decidem desenvolver trabalhos na
comunidade que são de difícil acesso com todas as peculiaridades possíveis e
imagináveis são considerados "babacas", "drogados" ou
"retardados"? Devo dizer que a vida na comunidade não é setorizada e
organizada como ligas que lidam com problema setorizados (clínica, cirurgia,
trauma e cia). É difícil ter cronograma quando a chuva destrói o telhado do
local que você faz reunião, ou quando você lida com perdas, ou quando a
comunidade não pode te receber por causa do tiroteio da noite anterior, ou
ainda quando um grupo de artesãs precisa fazer uma grande encomenda e a reunião
não poderá ser aquela semana. O que é difícil é ter que realizar reuniões e refazer
cronogramas para discutir a denigração e a dificuldade de conduzir um projeto com
a comunidade longitudinalmente dentro do curso de medicina. Ainda mais difícil
é o especialista, clínico, cirurgião (e cia) perceber que, quando eles forem
explicar sobre determinado remédio da tireoide, aquela pessoa da comunidade
que teve a chance de participar de uma “Liga de Educação em Saúde” vai saber
onde a tireoide fica o seu formato e para que serve. Ou quando for receitado um
antidiabético aquela pessoa vai conhecer o mecanismo da diabetes e síntese do
"açúcar". É raro o especialista, ou “acadêmico-especialista” (palavra que tenta definir a superespecialização
no curso de medicina) perceber a diferença de um paciente que conhece a
localização do fígado, sua função e inclusive suas enzimas. Ou mudar a
alimentação de uma família porque finalmente eles entenderam o que é “diminuir
o sal”. E ainda, analisando mais profundamente,
talvez o que quase ninguém discuta (ainda mais difícil) é a importância e emponderamento da
comunidade que conhece seus direitos em saúde.
Geralmente não se percebem essas nuances que uma Liga de Educação
em Saúde é capaz de promover. Ou um Médico de Família ou mesmo um profissional
bem formado e com habilidades de competência comunicativa intercultural (outro “carro
chefe” da Liga de Educação em Saúde). Não importa a área que um acadêmico
exposto a esses conhecimentos irá trabalhar, as marcas de uma comunicação
adequada baseada em uma relação de troca, e não de imposição já demonstram as
diferenças entre: paternalismo médico e emponderamento em saúde.
Então, você vivencia as versões do mesmo discurso, "o médico
de 'postinho' é ruim" (ou é comunista, incapaz, a escória da
medicina, entre outros) remendadas pela fala “mas eu sei que você vai ser boa”.
Por acaso fala-se isso dessa forma de outras especialidades? Eu nunca escutei
"endocrinologistas são ruins, não vale a pena fazer essa
especialização" ou "não encaminhe de volta para o cardiologista que
ele não sabe lidar com a situação". Ou diariamente tem alguém que irá
falar algo do tipo: “talvez você pode
ser boa na medicina de família, mas sabe, qualquer um está indo trabalhar na
atenção primária, então é difícil”. Eu gostaria que um médico especialista que fala isso fosse em um congresso de Medicina de Família e visse a legião de “qualquer uns”
trabalhando pelo cuidado integral do paciente. Certamente quem estiver utilizando
os óculos do viés hospitalocêntrico (óculos ensinado/colocado durante a
formação médica) vai comentar: “mas os cardiologistas são mais bem preparados,
os médicos de ‘postinho’ não são”. Será? Não são dois ou até três anos de
especialidade também? As habilidades são diferentes, isso eu concordo. Aliás,
devemos cuidar com algumas generalizações (que não mudam a depreciação de
médicos que decidem atender na atenção primária), mas os “médicos de postinhos” não
são iguais a médicos que optaram por realizar a residência em medicina de
família. Explico melhor: no universo dos médicos que trabalham em unidades
básicas existem médicos de família, médicos de outras especialidades e médicos
sem especialidade. Mas ninguém fala dos médicos de "hospitalzinho"
que também congregam todas essas características de formação. Ainda, é difícil
você ver, mesmo quando um médico de família recebe uma péssima nota de alta
hospitalar, alguém falar "ah esses médicos de pronto socorrozinho que não
fazem seu trabalho direito", "esses médicos de hospitalizinho que não
sabem encaminhar" ou "esses médicos que nem fazem medicina que fingem
que trabalham".
Isso não acontece só com a especialidade de medicina de
família (apesar do contraste ser maior)*. Os médicos que trabalham com o paciente zombam
dos médicos patologistas e radiologistas que “não habitam o mundo real”. E
clínicos ridicularizam por certa doença ser mais de um ou de outro (por
exemplo: essa doença é mais do cardiologista, ou do nefrologista, ou “não o porquê que o pneumologista quer modificar a conduta”), nunca está certo o local do
qual eles pertencem (claro doenças são multifatoriais e multifacetadas). Cirurgiões
discutem o papel do clínico e criticam as condutas tomadas (e vice-versa). R2s
(residentes do segundo ano) “brincam” com R1s (residentes do primeiro ano) em
geral humilhando ao invés de promover um ambiente de construção do conhecimento.
E as brigas seguem entre si em busca de
hierarquias arraigadas ao sistema. Por fim, os médicos de família estão cansados
da falta de condescendência de especialistas.
Pesquisas não cansam de demonstrar o aumento dos níveis de
ansiedade, depressão e burnout entre os médicos. Em geral as desculpas giram em
torno de longas jornadas de trabalho, pacientes exigentes e burocracia
inesgotável, mas qual é o papel que desempenham os colegas prejudicando um ao
outro (mesmo sem querer)? Eu não vou denegrir a imagem de nenhum colega com
este texto, quero abrir a discussão madura sobre medicina de família e projetos
de extensão popular (a Liga de Educação em Saúde), não quero fazer um apelo,
quero conscientizar os abusadores para prestarem atenção, porque violência
mesmo verbal, discriminatória ou emocional é prejudicial para todos (e, diga-se
também, pode se enquadrar como crime).
Um dos caminhos para isso, pasmem, é a educação médica
(educação em saúde) onde se deveria não apenas resolver o conflito, mas evitá-lo.
Ao invés de só termos (ainda que poucas) instruções de como se comunicar bem com
o paciente, porque não aprendermos como ser agradável com os colegas (aliás desdobro
isso para os colegas de outras profissões)? Por fim, a Liga de Educação em
Saúde tem trabalhado para garantir uma educação de qualidade no curso de medicina,
independente da especialidade (medicina de família ou outras). Educação não
apenas técnica, mas, também, humana, para tentar assegurar que a universidade
não deforme acadêmicos durante o curso com ideias depreciativas sobre projetos
que trabalham na comunidade. Nesse
aspecto, descubro que ainda tem muito o que fazer.
Aliás, feliz dia do médico e que esta seja uma reflexão para
todos que escolheram essa profissão.