Mostrando postagens com marcador medicina de família e comunidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador medicina de família e comunidade. Mostrar todas as postagens

12 abril 2019

Amélia em Quadrinhos

Conheci o Pablo nos bastidores do TEDxUnisinos quando nos preparávamos para um dos maiores frios das nossas barrigas. Conversamos e ele me presenteou o livro "Alvorada em quadrinhos" onde ele foi redesenhando a cidade em que ele nasceu e contando a história das pessoas. Entre 2018 e o começo deste 2019 tive a chance de apresentar Pablo e Maria Amélia em Porto Alegre para a Amélia virar uma super heroína de história em quadrinhos - pelo menos foi assim que brincamos.

Pablo está construindo também o projeto Conversas em Quadrinhos e disso veio a Amélia em quadrinhos. Hoje olhando a história de Amélia pelos desenhos de Pablo vejo ela falando dos pequenos projetos das resistências, dificuldades e alegrias no bairro Porto Novo em Porto Alegre. Ele mesmo escreveu que "Aprendemos bastante só de ver outra realidade. E nesse dia vi várias realidades. Tanto a dela como a de seus pacientes. Foi ótimo.".

E foi ótimo poder ler e mergulhar com carinho em caminhos que vi e vejo ela construir. Certamente como um colega escreveu a medicina de família e comunidade do amor. Obrigada pelo olhar atento Pablo e pelas histórias de aninhar o coração Amélia! Não deixem de conferir:











Não deixem de conferir os trabalhos do Pablito Aguiar, e claro se possível compartilhando e curtindo:
Website: https://pablitoaguiar.com.br/
Facebook: https://www.facebook.com/pablito.diego
Instagram: https://www.instagram.com/pablito_aguiar/

Confira também a palestra no TEDxUnisinos "Redesenhando uma Cidade" do Pablo Aguiar:


Fica minha genuína alegria e emoção de aproveitar essa leitura. 

Abraços que pousam,
Mayara Floss

30 agosto 2017

23 agosto 2017

Fábio



Cuidar dos pacientes no interior foi minha forma de voltar para a terra. Eu plantava fumo e hoje tento fazer os pacientes pararem de fumar.

Barão, jul/17

Abraços que pousam,
Mayara Floss

16 agosto 2017

Das pequenas alegrias - Dias de Igor


Para no posto de gasolina e eles oferecem desconto de 40 centavos no litro da gasolina, por causa do serviço prestado. Ao mesmo tempo, conta sobre o cartaz dos planetas com a filha. Quer fazer de material reciclável e descobriu que Plutão não existe mais e que ontem chegou tarde e as crianças já estavam dormindo. Vamos visitar uma paciente e ele diz “a gente nunca imagina que vai chegar o ponto de ter a comida que você mais gosta e não conseguir comer”. Ou reflete “sai tão ingênuo da universidade, achando que poderia fazer alguém parando de fumar, obedecer um medicamento”. Quase na hora do almoço corremos para levar um paciente do presídio que ele cuida voluntariamente no hospital, o paciente diz Trás um pipocão pra mim”, a resposta “Sim, pode deixar”. Após ir até a casa de um senhor lá bem no alto do morro em Caratinga, ele oferece carona para o filho que senta no banco da frente e eles conversam sobre o pai doente, sobre a situação da família. Vamos para o presídio e o paciente nos diz: “Ou você está para morrer ou para matar”. Uma história de uma paciente que apanhou por dias na cela e que ele disse que não ia mais atender ninguém até pararem de bater nela. À noite depois um dia extenso de finitudes, que começa antes das sete horas da manhã vamos rever o paciente ao colocar os pés na porta do hospital me olha “Ih, esquecemos do pipocão” eu emendo falando “Trazemos amanhã”, ele diz “Não, vamos lá buscar”. Entramos no carro, descemos o morro, fomos até o centro, atravessamos a rua, já passando das nove. Compramos o pipocão. Ele vai avaliar o paciente senta na cama ao lado dele e os dois comem pipoca, quase que em uma travessura. No final ele me diz: “Eu quero ver ele sem essa roupa do hospital azul horrível e sem o uniforme do presídio, queria ver ele vestido como gente”. 


Caratinga, 2017.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

28 junho 2017

Benzedura e sutura

Pântano do Sul
*Texto publicado no blog e site do Tainha na Rede do Pântano Sul pelo Fernando Alexandre entusiasta e fomentador da cultura da ilha de Santa Catarina.

“Deus te criou, eu que te benzo e deus te cura”.

Fui visitar uma benzedeira na casa dela no sul da ilha de Florianópolis. Mais de 100 anos de vida, conta-me que aprendeu a rezar com a mãe, mas não porque queria, porque ela quando jovem não queria benzer, queria mesmo é dançar. Dançava muito.

Um dia desses quando moça foi para Cachoeira e estava descansando quando uma mulher veio pedir para ela benzer um menino. Ela disse que não, que não benzia. A mulher disse: "deixa disso que eu sei que tu benze, tua mãe benze". Ela meio que sem graça disse que ia benzer, e assim fez sua primeira benzedura para mal olhado, mas logo avisou "não conta pra ninguém". O menino pegou jeito e logo já estava em todas as bocas. A mãe dela faleceu e ela que só sabe cinco rezas, a de cobreiro, zirpa, calor de figo, empiche e mal olhado. Cobreiro tem que benzer nove vezes e cruzar os pauzinho, adverte e reza. “Sabe o que é calor de figo? É quando desce uma aguaceira pelas canela, assim ó” – e gesticula com as mãos a água descendo das canelas. “Eu não sei benze fungado, mas tô benzendo e tá curando”. No “não conta para ninguém” a fama se espalhou de dançarina para benzedeira, rendeira, mas não parteira, nem macumbeira que ela avisa. O que eu não sei rezar minha mãe ajuda, ela que sabia todas as orações, já rezei até para espinha de peixe.

- E esse machucado na testa? – pergunto vendo o curativo grande na testa.

- Ah isso aqui eu cai e machuquei o joelho – ela levanta a calça com o joelho infeccionado e os pontos de sutura muito avermelhados.

- E não tá doendo? -.

- Não dói não. – eu examino com calor local, secreção. Ela me diz:

- O médico foi tão bonzinho que costurou, eu tava toda cheia de sangue ele não me deixou esperando, disse para eu voltar na sexta-feira para tirar os pontos, mas na última sexta-feira eu não fui, quero tirar só com ele -.

- Mas era importante tirar os pontos – comento mansamente.

- Mas ele disse que vai resolver o problema da minha pele – ela diz e aponta para o rosto - vou tirar os pontos só com ele -. Penso um pouco.

- Eu acho que está infeccionado -  ela logo me diz – mas eu já benzi, benzedura forte com zirpa, até vi uma rosa branca no meu quarto no final da tarde.

- Certo, quem sabe vamos fazer assim, eu tiramos aqui os pontos do joelho e na sexta-feira você tira os pontos da testa – que estavam limpos e cicatrizando.

- Bem que tô sentindo umas ferroada, não consigo dobrar o joelho assim ó – e ela tenta dobrar o joelho, e segue - Vai doer? – . 

- Menos que ter um filho – respondo, ela solta uma risada larga – se é menos que ter um filho eu aguento, tive oito -.

- Tá combinado? Acho que vamos ter que tomar um remédio por uns dias – explico e olho nos olhos de benzedura.

- Amanhã de manhã eu vou lá – e ela segue me contando e rindo das histórias de benzedeira.

Um dia ela estava passeando e uma comadre pediu para ela benzer a criança, “eu sei que hoje é domingo mas dá última vez que você benzeu minha filha deu tão certo”. “Domingo eu não benzo, tem muita missa” mas ela disse que “ia benzer escondidinho, por causa da distância”, logo alguém espalhou que ela estava benzendo e teve que benzer uma “porção de menino”. Até as benzeduras que ela não conhece ela já benzeu, “não sei benzer coluna, mas estou benzendo e está curando”. Mas se for mal de carne quebrada encaminho para o Seu Patrício – quase uma rede de benzeduras de plantão. “Vem aqui, benze aqui” e assim foi.

Ela também me adverte que não come peixe, mesmo vivendo na vila de pescadores. Só come frango e dá risada, mas distribui os peixes que ganha de presente quando reza para a pesca e o barco vem cheio. Já benzeu um padre, a Xuxa e o repórter que foi lá no último final de semana e ela estava muito  preocupada que apareceu na televisão benzendo com o curativo na testa.

Florianópolis 30/05/2017

Abraços que pousam,
Mayara Floss

07 setembro 2016

Carta ao estudante de medicina



 Texto-desabafo de uma discussão sobre a visão do especialista sobre o profissional na APS e a influência desta visão na escolha jovem médico (que por pressão dos colegas, professores e outros profissionais fica em dúvida em relação a escolha), acabei escrevendo a seguinte resposta (transformada em carta). 

Para Marcela

Caro estudante de medicina/jovem médico,

Acho que dividir histórias ajudam a nos entendermos e entender o próximo. Passei por um processo de aceitação quando no terceiro ano da faculdade desconstrui muitas das visões romantizadas da medicina e bati o pé que queria fazer medicina de família e comunidade, e hoje além de fazer medicina de família e comunidade ainda bato o pé que quero ir trabalhar na zona rural. Desde então foram desde professores que se negaram a dar uma explicação porque eu escolhi ser médica de família, até escolherem os pacientes humildes para eu tratar porque é "medicina de pobre". Penso que consegui aprender muito e fazer grandes trocas tentando trabalhar a competência cultural e minha própria bagagem nas consultas.

Hoje e a cada dia o que eu mais tenho certeza é que não quero fazer uma outra especialização. Fragmentar, dissecar e clinicar sem ver os determinantes de saúde e sociais, medicar sem entender contexto, usar meias e minhas verdades como generalizações e aprendo a enxergar essas diferenças com a medicina de família diariamente, mesmo ainda sendo estudante (sim, entendo a importância do especialista, mas não entendo porque ao escolher medicina de família e comunidade tenho que ouvir sermões sobre maus encaminhamentos, sobre médicos ruins no PSF, sobre minha escolha ser equivocada e que vou "ganhar pouco dinheiro"). Eu me questiono muito como muitas vezes o médico que tanto crítica  a especialidade (currículo oculto ou preconceito velado) não consegue despir-se das roupas velhas (sim, precisamos todos rejuvenescer, já dizia Belchior).

Nunca a medicina foi tão capaz de resolver coisas e tão incapaz de alcançar as pessoas. Nunca fomos tão criticados. E nunca fomos tão incapazes de ouvir (em tempos de comentários e jocozidades sobre "febre interna", "espinhela caida" e "peleumonia"). Essa pragmatismo e contrastes encontram uma forma de aproximar as distâncias na medicina de família, no método centrado na pessoa, na chance de emponderar um sujeito e coordenar o cuidado.

Em nosso mundo que cada vez fica maior, mas mais interdependente o paradigma, hoje, de saúde-doença mudou, as doenças crônicas superam as doenças infecciosas e a causas dessas doenças estão fora do "setor saúde" e são profundamente moldadas pelos produtos e práticas das indústrias de alimentos, bebidas, tabaco, álcool e marketing.

E na prática do médico generalista é possível encontrar uma forma de resistência e não é uma resistência sozinha (médico para médico, profissional para profissional) mas no sujeito que está a sua frente.

E não só na perspectiva brasileira, mas quando paramos para pensar que a diferença de expectativa de vida dos países "desenvolvidos" e em "desenvolvimento" é de 40 anos, precisamos refletir sobre o papel da atenção primária nesses contextos, nessa revolução - mesmo que muitas vezes discreta. E voltar-se para essa atenção primária é também voltar-se para a direção de um cuidado mais integrado, compreensivo e centrado na pessoa/comunidade.

O trabalho é árduo e demanda muito, em uma mesma sala de espera você pode encontrar um pouco de tudo das mais "difíceis" e raras doenças que um médico deve "estar preparado para lidar" com o bônus de conhecer as pessoas, a comunidade, e no seu diagnóstico poder incluir as causas e determinantes destes problemas de saúde. Do contrário do ambiente hospitalar, a negociação e a conversa terão que ser muito mais aprofundadas, muito mais desafiadas porque o paciente entrará pelo teu consultório "dono de si" e perguntará, opinará e muitas vezes não irá "seguir o que dizes" isso vem de encontro com novas habilidades e caminhos que temos que desenvolver constantemente. Além disso, você "nunca verá",  quando der certo o papel de evitar que um infarto aconteça, que uma diabetes se desenvolva, o paciente que não chegará a emergência, de poder segurar até o fim na mão do paciente são muito mais marcantes e intensos.

O especialista tem que existir e tem o seu papel (isto não é uma batalha/luta, é cuidado coordenado e temos que trabalhar juntos!), mas sempre devem ter os médicos que conhecem os seus pacientes bem o suficiente para gerenciar realmente a totalidade da saúde em todas as suas múltiplas dimensões, incluindo as necessidades mentais e espirituais.

Acho que esses são alguns dos sonhos, utopias e realidades. Espero que possamos ser colegas de residência. 

Abraços que pousam,
Mayara Floss

18 outubro 2015

“A liga que não faz nada”

"(...) não gosto de discutir. Prefiro escrever. 
Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo." - 
Maria Carolina de Jesus

 “A liga que não faz nada” entre outras frases como “a liga que só filosofa”, “a liga que escreve sonetos”,  “o pessoal que cheira cola”, “a liga desorganizada”. Cotidiano de pessoas, acadêmicos do curso de medicina, que vivem no terreno árido e hospitalocêntrico da vida universitária - na tentativa de desenvolver um projeto de extensão popular. Afrontas não só de outros acadêmicos, mas também de professores e técnicos. A grande questão não é o que é melhor ou é pior, é compreender que tudo faz parte de um sistema e que cada conhecimento se complementa, é apenas diferente. Para muitos, a verdadeira alegria da medicina ganha vida nas relações formadas com os pacientes. É difícil quantificar o problema, mas as ofensas sutis, pequenas tensões e hostilidades entre médicos (e também acadêmicos) somam um estresse mental significativo, nos quais os efeitos podem ser deletérios. O que tem “tom de brincadeira” é dividido por uma linha tênue de afrontas e humilhações. Nesse sentido, compreender que a diminuição ou depreciação dos colegas sobre a Liga de Educação em Saúde e também sobre a Estratégia Saúde da Família (aproveito o ensejo para falar também deste tema) ou as escolhas de cada um são formas desrespeitosas de lidar com os colegas, amigos e pessoas.  

É difícil você ouvir falar que o trabalho de um clínico é "sempre a mesma coisa" ou que um cirurgião "é médico de mentira" ou que você é “petista” (ou “comunista”) porque escolheu fazer ginecologia. Ninguém fala que você é burro ou menos capaz porque você escolheu pediatria. Ou ainda dificilmente alguém utiliza demagogias de que você não sabe escolher a sua própria especialidade ou que você deveria rever as suas escolhas. Por que então falar isso dos médicos de família? Por que falar isso de acadêmicos que criam e participam de uma Liga de Educação em Saúde? Se você falar que quer ser médico de família durante a sua formação certamente você irá ouvir algumas perguntas como: "você sabe encaminhar?", se "você votou na Dilma?" se "você tem preguiça?", ou a afirmação "eu não vou te ensinar porque você quer ser médica de família". Às vezes nem perguntam, como escutei há umas duas semanas, “aí vem a médica do PSOL” - eu olhei para o médico residente que fez a brincadeira, pessoa que nunca havia trocado uma palavra comigo, nem me cumprimentado, eu não conhecia ele e pior nunca demonstrei minha opinião política nesse sentido. Além disso, eu não entendo o que isso muda na minha prática e habilidade médica. Existe, na conjuntura atual, uma certa dificuldade em distinguir opiniões e fatos políticos com a prática e escolhas dentro da medicina.

Por que acadêmicos que decidem desenvolver trabalhos na comunidade que são de difícil acesso com todas as peculiaridades possíveis e imagináveis são considerados "babacas", "drogados" ou "retardados"? Devo dizer que a vida na comunidade não é setorizada e organizada como ligas que lidam com problema setorizados (clínica, cirurgia, trauma e cia). É difícil ter cronograma quando a chuva destrói o telhado do local que você faz reunião, ou quando você lida com perdas, ou quando a comunidade não pode te receber por causa do tiroteio da noite anterior, ou ainda quando um grupo de artesãs precisa fazer uma grande encomenda e a reunião não poderá ser aquela semana. O que é difícil é ter que realizar reuniões e refazer cronogramas para discutir a denigração e a dificuldade de conduzir um projeto com a comunidade longitudinalmente dentro do curso de medicina. Ainda mais difícil é o especialista, clínico, cirurgião (e cia) perceber que, quando eles forem explicar sobre determinado remédio da tireoide, aquela pessoa da comunidade que teve a chance de participar de uma “Liga de Educação em Saúde” vai saber onde a tireoide fica o seu formato e para que serve. Ou quando for receitado um antidiabético aquela pessoa vai conhecer o mecanismo da diabetes e síntese do "açúcar". É raro o especialista, ou “acadêmico-especialista” (palavra que tenta definir a superespecialização no curso de medicina) perceber a diferença de um paciente que conhece a localização do fígado, sua função e inclusive suas enzimas. Ou mudar a alimentação de uma família porque finalmente eles entenderam o que é “diminuir o sal”.  E ainda, analisando mais profundamente, talvez o que quase ninguém discuta (ainda mais difícil) é a importância e emponderamento da comunidade que conhece seus direitos em saúde. 

Geralmente não se percebem essas nuances que uma Liga de Educação em Saúde é capaz de promover. Ou um Médico de Família ou mesmo um profissional bem formado e com habilidades de competência comunicativa intercultural (outro “carro chefe” da Liga de Educação em Saúde). Não importa a área que um acadêmico exposto a esses conhecimentos irá trabalhar, as marcas de uma comunicação adequada baseada em uma relação de troca, e não de imposição já demonstram as diferenças entre: paternalismo médico e emponderamento em saúde.

Então, você vivencia as versões do mesmo discurso, "o médico de 'postinho' é ruim" (ou é comunista, incapaz, a escória da medicina, entre outros) remendadas pela fala “mas eu sei que você vai ser boa”. Por acaso fala-se isso dessa forma de outras especialidades? Eu nunca escutei "endocrinologistas são ruins, não vale a pena fazer essa especialização" ou "não encaminhe de volta para o cardiologista que ele não sabe lidar com a situação". Ou diariamente tem alguém que irá falar algo do tipo:  “talvez você pode ser boa na medicina de família, mas sabe, qualquer um está indo trabalhar na atenção primária, então é difícil”. Eu gostaria que um médico especialista que fala isso fosse em um congresso de Medicina de Família e visse a legião de “qualquer uns” trabalhando pelo cuidado integral do paciente. Certamente quem estiver utilizando os óculos do viés hospitalocêntrico (óculos ensinado/colocado durante a formação médica) vai comentar: “mas os cardiologistas são mais bem preparados, os médicos de ‘postinho’ não são”. Será? Não são dois ou até três anos de especialidade também? As habilidades são diferentes, isso eu concordo. Aliás, devemos cuidar com algumas generalizações (que não mudam a depreciação de médicos que decidem atender na atenção primária), mas os “médicos de postinhos” não são iguais a médicos que optaram por realizar a residência em medicina de família. Explico melhor: no universo dos médicos que trabalham em unidades básicas existem médicos de família, médicos de outras especialidades e médicos sem especialidade. Mas ninguém fala dos médicos de "hospitalzinho" que também congregam todas essas características de formação. Ainda, é difícil você ver, mesmo quando um médico de família recebe uma péssima nota de alta hospitalar, alguém falar "ah esses médicos de pronto socorrozinho que não fazem seu trabalho direito", "esses médicos de hospitalizinho que não sabem encaminhar" ou "esses médicos que nem fazem medicina que fingem que trabalham". 

Isso não acontece só com a especialidade de medicina de família (apesar do contraste ser maior)*.  Os médicos que trabalham com o paciente zombam dos médicos patologistas e radiologistas que “não habitam o mundo real”. E clínicos ridicularizam por certa doença ser mais de um ou de outro (por exemplo: essa doença é mais do cardiologista, ou do nefrologista, ou “não o porquê que o pneumologista quer modificar a conduta”), nunca está certo o local do qual eles pertencem (claro doenças são multifatoriais e multifacetadas). Cirurgiões discutem o papel do clínico e criticam as condutas tomadas (e vice-versa). R2s (residentes do segundo ano) “brincam” com R1s (residentes do primeiro ano) em geral humilhando ao invés de promover um ambiente de construção do conhecimento.  E as brigas seguem entre si em busca de hierarquias arraigadas ao sistema. Por fim, os médicos de família estão cansados da falta de condescendência de especialistas. 

Pesquisas não cansam de demonstrar o aumento dos níveis de ansiedade, depressão e burnout entre os médicos. Em geral as desculpas giram em torno de longas jornadas de trabalho, pacientes exigentes e burocracia inesgotável, mas qual é o papel que desempenham os colegas prejudicando um ao outro (mesmo sem querer)? Eu não vou denegrir a imagem de nenhum colega com este texto, quero abrir a discussão madura sobre medicina de família e projetos de extensão popular (a Liga de Educação em Saúde), não quero fazer um apelo, quero conscientizar os abusadores para prestarem atenção, porque violência mesmo verbal, discriminatória ou emocional é prejudicial para todos (e, diga-se também, pode se enquadrar como crime).

Um dos caminhos para isso, pasmem, é a educação médica (educação em saúde) onde se deveria não apenas resolver o conflito, mas evitá-lo. Ao invés de só termos (ainda que poucas) instruções de como se comunicar bem com o paciente, porque não aprendermos como ser agradável com os colegas (aliás desdobro isso para os colegas de outras profissões)? Por fim, a Liga de Educação em Saúde tem trabalhado para garantir uma educação de qualidade no curso de medicina, independente da especialidade (medicina de família ou outras). Educação não apenas técnica, mas, também, humana, para tentar assegurar que a universidade não deforme acadêmicos durante o curso com ideias depreciativas sobre projetos que trabalham na comunidade.  Nesse aspecto, descubro que ainda tem muito o que fazer.

Aliás, feliz dia do médico e que esta seja uma reflexão para todos que escolheram essa profissão.

Documentário sobre a Liga de Educação em Saúde
Voam abraços,

Mayara Floss

* Eu não sou a primeira pessoa a escrever sobre isso, veja o texto de Ranjana Srivastava “How doctors treat doctors may be medicine's secretshame” que inspirou o este parágrafo.

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog