Uma árvore com muitos galhos - Ernande (2016) |
Ernande Valentin do Prado
A integralidade é um princípio do Sistema Único
de Saúde (SUS), assim como a universalidade, a equidade, a participação
popular, e outros. Porém parece ser o princípio mais difícil de pôr em prática,
de ser compreendido, talvez por ser o mais utópico, isso porque integralidade
envolve, entre outras coisas, desejo, necessidade e vontade, como na música,
comida[1], do Titãs.
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...
A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer...
Talvez seja um princípio complexo demais para
todos entender em sua plenitude, mas, por suas características, tem o potencial
de nos mantem ciente de que o SUS ainda está em construção, que depende da
evolução da sociedade, do que nós queremos e podemos construir enquanto nação.
Integralidade é uma imagem-objetivo[2], um lugar onde chegar. Para
dar uma ideia da importância disso, vou evocar a terra prometida de Moises, ou
seja, uma utopia, uma imagem objetivo que foi capaz de manter um povo inteiro
vivo caminhando pelo deserto em busca de uma promessa, apesar das imensas
dificuldades.
Integralidade no SUS tem um significado
polissêmico, multifacetado, dinâmico: alguns pensam que sabe do que está
falando ao cita-la, outros têm certeza que está falando apenas de uma parte ou
da parte que lhe interessa divulgar.
Embora a discussão seja complexa (e
complicada), assim como é complexo falar de saúde no SUS, nos últimos anos
houveram grandes avanços a esse respeito, embora algumas vezes pareça que a
integralidade esteja mergulhada em sombras. Neste texto, a intenção é falar um
pouco do sentido político e organizacional e das práticas intersubjetivas de
saúde.
AFINAL
Quando falamos de universalidade no SUS:
estamos falando de um sistema para todos, ricos e pobres, negros e branco, nordestinos
e sulista; ao falar de equidade: estamos falando de solidariedade que promove
igualdade, de oferecer o cuidado apropriado e necessário para cada um,
tornando-os um pouco menos desiguais; evocar o controle social: é debater a participação popular, o controle do
SUS pelos cidadãos, dar voz e poder para que quem usa o SUS possa tomar
decisões sobre como ele deve funcionar; mas ao falar de integralidade: estamos
falando do quê?
Numa abordagem simplista, mas bastante
difundida, poder-se-ia dizer que a integralidade no SUS é aquele princípio que
diz que o cidadão tem direito a tudo, desde uma orientação sobre higiene bucal
até o transplante de um órgão. O que não deixa de estar correto, mas é uma
abordagem que esconde ou mostra demais, o que dá no mesmo. Será que é justo
esperar do SUS todo tipo de cirurgia, até as estéticas? Há juízes que pensam
assim e dão ganho de causa para algumas pessoas que entram na justiça com essa
interpretação. Hoje há quem exija na justiça, com base nesta interpretação de
integralidade, não apenas cirúrgicas estéticas, mas medicações como Botox,
Viagra, recursos tecnológicos de última geração, e a preços exorbitantes, que
não têm eficiência comprovada e/ou que têm similares tão eficaz quanto, a um
custo menor. Se essa é a integralidade que interessa à sociedade, e não apenas
aos que entram na justiça, no que se convencionou chamar de judicialização da
saúde, ela precisa debater novas formas de financiar o SUS.
Existe outra abordagem de integralidade que é
centrada no aspecto formal, na racionalidade de organização e oferta de
serviços. Enfatiza-se as camadas assistenciais: atenção básica, atenção
secundária e terciária, concebendo a atenção básica como porta de entrada ou,
mais modernamente, como a porta de entrada preferencial ao sistema de saúde.
Dão ênfase a racionalidade através dos encaminhamentos de um serviço para o
outro, de uma cidade para outra e até entre estados. Não deixa de ser um
aspecto válido e coerente com a abordagem cartesiana e flexineriana na saúde. O
palco desta integralidade talvez sejam as câmaras de gestão, os pactos de
governabilidade e responsabilização sanitária, com suas hierarquias, que no
papel, funcionam maravilhosamente bem, mas que na prática fragmenta e
despersonaliza o cuidado.
Pessoas reais precisam de uma integralidade que
vá além de aspectos formais, mas sem esquecer destes, pois a desorganização dos
serviços o desestabiliza, porém sem parar nele ou exagerar em sua aplicação. A
desorganização, tanto quanto a organização inflexível, normatizada
exacerbadamente, incoerente, despersonalizada, sem bom senso, são incoerentes
com a integralidade enquanto princípio do SUS.
Existe
ainda uma abordagem que é centrada na pessoa, o que representa uma grande
evolução do pensar e do fazer em saúde. É a integralidade como uma forma de
cuidado, de reconhecer o ser humano, suas dores e delícias, suas necessidades,
desejos e vontades e não só as doenças. Essa abordagem exige que o sistema
incorpore diversas visões do que se entende por saúde, a científica, a
espiritual, os saberes populares e as tradições milenares.
Talvez a integralidade (realmente integral)
esteja na junção destas abordagens: política, organizacional, práticas
intersubjetivas de saúde, processo de trabalho, enfim, integralidade como forma
de ver, entender, praticar e ser. A pessoa real, aquela que precisa de um
sistema organizado, hierarquizado, humanizado, não pode ser apenas parte e sim
a razão de ser de todo o sistema. Essa pessoa não pode ser limitada por uma
integralidade organizativa, nem pela integralidade política e financeira, ela
precisa de um sistema que a veja como um todo, como realmente é, submetida as
condições reais de vida em família, em comunidade e em uma sociedade cada vez
mais opressiva e fragmentada.
Mas será que o SUS está preparado para
funcionar com esse nível de compreensão, seja nos aspectos organizacionais ou
de preparo profissional? Uma abordagem integral do ser humano exige
atendimentos diferenciados para cada pessoa, cada caso, cada comunidade. A
maioria dos profissionais que trabalham em APS ainda continuam aprisionados ao
modelo individual e fragmentado de atendimento[3], fruto do ensino
pautado no relatório flexner, no modelo cartesiano. Essa visão é um problema
que nasce na formação: com raras exceções, as escolas formadoras privilegiam em
seus currículos aspectos biológicos em detrimento de uma visão integral do
processo saúde/doença/cuidado[4]. Ainda hoje, a visão biologicista
do processo saúde/doença/cuidado, é prevalente entre os trabalhadores da saúde,
apesar do conhecimento sobre os determinantes sociais ser amplo entre a maioria
dos profissionais. O SUS modificou os arranjos institucionais do setor, mas não
as práticas de saúde[2]. Os conhecimentos parecem ser ignorados na
clínica e o que prevalece é a visão de que ter saúde é não ter uma dor, uma
ferida localizada inequivocamente em uma parte do corpo.
Há como continuar evoluindo no fazer em saúde
no atual estágio do sistema, não há dúvida, mas há limites evidentes para isso
dentro deste modelo limitado pela visão flexeneriana do fazer, pensar em saúde.
“O trabalho em equipes multiprofissionais na saúde coletiva remete à
complexidade e promove experiências que exigem o encontro com as fronteiras
disciplinares, com as diferenças e com as vulnerabilidades dos agentes sociais.
Essa fragmentação impossibilita ou no mínimo dificulta que a integralidade,
enquanto princípio do SUS, seja alcançada. O trabalho em APS é necessariamente
inter-e-transdisciplinar[5] e parece coerente que essa visão
pautasse o ensino.
Pode até parecer que a integralidade é um sonho
distante, mas na verdade há que reconhecer que, embora lentamente e aquém do
necessário, há evolução. Se ela parece ser uma “prática” distante do dia a dia
no SUS, já há certos consensos importantes, ao menos em nível teórico e
político, o que sempre quer dizer alguma evolução na prática. Entre esses
sinais de evolução, podem ser citados a própria APS e a ESF, a Promoção de
Saúde, a Humanização, as Práticas integrativas, o pacto pela saúde, entre
outros.
Consolidar um modelo
integral de atenção à saúde da pessoa no SUS, passa necessariamente pela
integração destas diferentes visões do que seja integralidade. Passa, também,
pela superação das diversas fronteiras de conhecimentos disciplinares
fragmentados, característico da APS[6], mas sobretudo pela construção
compartilhada de saberes/fazeres, cada dia menos disciplinares e mais
inter-e-transdisciplinares, porque o “sujeito não pode ser capturado por uma
única disciplina”[4].
Referencias
[1]
ANTUNES, Arnaldo; BRITO, Sérgio; FROMER, Marcelo. Comida. Disponível em:
Acessado em:
03 abr. 2016
[2]
MATTOS, R. A. D. A integralidade na prática (ou sobre a prática da
integralidade). Cadernos de Saúde Pública, v. 20, p. 1411-1416, 2004.
[3]
Fonseca MLG, Guimarães MBL, Vasconcelos EM. Sofrimento difuso e transtornos
mentais comuns: uma revisão bibliográfica. Rev. APS 2008; 11(3): 285-294.
[4]
ABRAHÃO, A. L. Tecnologia: conceito e relações com o trabalho em saúde. In:
FONSECA, A. F. (Org.). O processo histórico do trabalho em saúde. Rio de
Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007. p.117-137.
[5]
SEVERO, S. B.; SEMINOTTI, N. Integralidade e Transdisciplinaridade em equipes
multiprofissionais na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, p.
1685-1698, 2010.
[6]
Paim JS, Almeida Filho N. A crise da saúde pública e a utopia da saúde
coletiva. Salvador: Casa da Qualidade; 2000.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]