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21 novembro 2015

LEMBRANÇAS DA ILHA

Gregório Antonio Fernandes de Andrade

Não sou negão
O preso de um modo geral, no decorrer do cumprimento da sentença, sofre muitas transferências de presídios. Costumávamos dizer que o preso é mercadoria do Estado. Comigo não foi diferente, passei por mais de 15 carceragens no decorrer de minha caminhada. 
Em todas estas as transferências, há um procedimento denominado “admissão”, que é realizado pela equipe de “recepção” do presídio que recebe o preso para o “cadastro”. Nele é Concretizada uma rápida entrevista, onde dentre outras coisas, é perguntado nome completo, idade, estado civil, endereço, delito pelo qual foi condenado, se é preso de seguro[i], se tem doenças. Também é perguntado como o preso auto denomina-se em relação a cor de sua pele.
Esta entrevista deveria ocorrer em local privado, onde o preso pudesse explanar as informações sem que outros pudessem tomar conhecimento, contudo, há uma diferença abissal entre o que deveria e o que realmente ocorre por detrás dos altos muros das prisões deste nosso Brasil.
Fato é que em uma destas muitas transferências, chamou-me a atenção o ocorrido com um companheiro que chamávamos de “Bola Sete”. Bola Sete era um irmão de caminhada que deixava a cadeia dos irmãos mais leve[ii], tamanho o seu senso de humor e gaiatice. 
Gilmar (Nome do Bola Sete) consistia em um homem de quase dois metros de altura, pesava uns 150 quilos, e tinha um coração de igual envergadura ao seu tamanho. Bola sete era muito doce, solidário, desprendido materialmente, para ter uma ideia, ele dividia a marmita com os companheiros, o que era dele, era dos outros. É obvio que para fazer jus ao nome o apelido tinha que fazer menção a sua cor de pele. Bola Sete era preto, bem preto.
Voltado à questão da transferência, tomei um “bonde[iii]” juntamente com meu amigo gaiato Bola Sete, quando chegamos à carceragem de destino, nos colocaram algemados no pátio, juntamente com todos os outros transferidos, ao todo x pessoas. Debaixo do sol de meio dia, sem almoço, sem água e sem usar o Boi (banheiro). Por volta das 16 horas, começaram a fazer a “admissão”, contudo, pelo avançado da hora, e pelos guardas estarem em vias de trocar o plantão, realizaram “entrevista” coletiva, assim, no meio de todo mundo. Chamavam pelo número de infopen (o meu, jamais esqueci: o preso para o Estado é apenas um numero). Falávamos os nomes e íamos respondendo o que nos era perguntado, estado civil, idade, endereço, auto denominação de cor de pele...
Bola Sete foi o primeiro a responder: estava em minha frente, respondi tudo dentro das conformidades, com presteza e agilidade, mas quando chegou ao questionamento da cor de pele ele me solta: 
- Sou Pardo!
Foi uma risada geral, já que como falei, Bola Sete era o cara mais preto que conheci na vida. Fiquei intrigado com a resposta de meu amigo e, assim que pude, questionei qual o motivo daquela resposta:
- Qualé desta de responder que é pardo?
- Qualé nada doido, já tô preso, fudido, qualquer coisa nos esculacham, e você ainda quer que eu fale que sou negão? Sai fora mané!
Dei umas boas gargalhadas e seguimos para a nossa nova morada.
Hoje, refletindo sobre este episódio e sendo conhecedor da seletividade penal, da função do Direito Penal, fico me perguntado: que País é este em que um ser humano tem vergonha de sua cor. Mais que isto, acredito que, de certa forma, o meu irmão tinha razão. 
Tudo é mais difícil para o preto neste Brasil, sobretudo em um ambiente em que, na própria concepção, foi criado para separar e segregar aqueles que a sociedade entende serem pessoas de segunda classe.
Deve ser por isto que as “estatísticas oficiais” dão conta do número incrivelmente grande de “pardos” no sistema prisional, por pessoas com o mesmo entendimento e percepção do Gilmar, o Bola Sete...


Gregório Antonio Fernandes de Andrade, (Greg Andrade), Advogado, sobrevivente do sistema carcerário brasileiro, Ativista e militante em Direitos Humanos no Coletivo PESO – Periferia Soberana.

[Greg Andrada foi convidado por Ernande: convidado publica na Rua Balsa das 10 aos sábados e domingos.]



[i] Se achar interessante, escreva aqui a definição de preso de seguro. Preso de seguro é quem foi sentenciado por crimes contra a liberdade sexual, ou acusados de serem delatores.
[ii] Este presídio, para onde fui transferido, tem características de ser para presos em regime semiaberto, que podem sair para trabalhar extra muros
[iii]Bonde é o nome dado as transferências, mudanças de cadeia. 

08 novembro 2015

SE A RESSOCIALIZAÇÃO FOSSE ANUNCIADA COMO UM PRODUTO DE MERCADO, COMO SERIA?

Greg Andrade


Egressos do sistema prisional, com variados níveis de condenação e multiplicidade de delitos se candidatam à reinserção social.
Os candidatos possuem:
1.      Baixa escolaridade e/ou são considerados analfabetos funcionais;
2.      Qualificação profissional incompatível com os padrões do mercado de trabalho;
3.      Alto índice de reincidência criminal;
4.      Laços familiares rompidos, que resulta em permanente desestruturação familiar;
5.      A grande maioria sequer foi socializada/incluída...
Está aí o nosso produto, lhe parece vendável?
Sinceramente não acredito que a sociedade o compre. É um produto que não dá qualquer tipos de garantia.
Será que um Pai de família acredita na ressocialização de um estuprador, mesmo tendo se passado anos da condenação?
Você colocaria sua filha para conviver com ele, o estuprador?
Um assassino contumaz, se ressocializa?
Quanto tempo se leva para um egresso se ressocializar?
Meses, anos, uma vida ou temos que contar com a eternidade?
O Estado com tantas deficiências consegue dar cumprimento à Lei de Execuções Penais e reinserir este indivíduo no meio social?
Qual a garantia que o empresário tem de que o egresso do sistema prisional não voltará a cometer crimes, que sua empresa não será arrombada na calada da noite, em virtude de informações privilegiadas? Que nenhum familiar, ou ele mesmo, não será vítima de sequestro?
Uma palavra governamental pode lhe dar alguma segurança?

O cidadão de "bem" realmente contrataria esse indivíduo, acreditando num processo ressocializador, ou somos bem feitores querendo salvar a humanidade?
A verdade é que não temos respostas, porque o nosso produto é humano: seres individuais, inigualáveis, perfeitos na sua imperfeição, anjos e demônios travestidos num corpo de carne. Ainda não criamos uma vacina para tratar essa doença, somente leis humanas e condutas morais. O mito da ressocialização existe desde os primórdios. O que fazer com Caim, após a morte de Abel?
O preso é simplesmente o reflexo de nós mesmos, aquele que teve maior coragem, ou se assim o quiserem, maior desequilíbrio no momento da ação delituosa. O egresso sou eu, o egresso é a face viva de nós mesmos, pois não somos melhores ou piores do que os que estão aprisionados. Não faremos diferença alguma se nos colocarmos num pedestal, como aquele que conhece o caminho a ser seguido.
A vida e as dores, bem como a alegria e os acertos competem às individualidades. Como o egresso do sistema prisional, não pode dar garantias de sua recuperação, tampouco os homens de "bem", não poderão garantir que um dia não cometerão crimes...


Gregório Antonio Fernandes de Andrade, (Greg Andrade), Advogado, sobrevivente do sistema carcerário brasileiro, Ativista e militante em Direitos Humanos no Coletivo PESO – Periferia Soberana.


[Greg Andrada foi convidado por Ernande: convidado publica na Rua Balsa das 10 aos sábados e domingos.] 

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