Não sou negão
O preso de um modo geral, no decorrer do
cumprimento da sentença, sofre muitas transferências de presídios. Costumávamos
dizer que o preso é mercadoria do Estado. Comigo não foi diferente, passei por
mais de 15 carceragens no decorrer de minha caminhada.
Em todas estas as transferências, há um
procedimento denominado “admissão”, que é realizado pela equipe de “recepção”
do presídio que recebe o preso para o “cadastro”. Nele é Concretizada
uma rápida entrevista, onde dentre outras coisas, é perguntado nome completo,
idade, estado civil, endereço, delito pelo qual foi condenado, se é preso de
seguro[i], se tem doenças. Também é
perguntado como o preso auto denomina-se em relação a cor de sua pele.
Esta entrevista deveria ocorrer em local
privado, onde o preso pudesse explanar as informações sem que outros pudessem tomar
conhecimento, contudo, há uma diferença abissal entre o que deveria e o que
realmente ocorre por detrás dos altos muros das prisões deste nosso Brasil.
Fato é que em uma destas muitas transferências,
chamou-me a atenção o ocorrido com um companheiro que chamávamos de “Bola
Sete”. Bola Sete era um irmão de caminhada que deixava a cadeia dos irmãos mais
leve[ii], tamanho o seu senso de humor
e gaiatice.
Gilmar (Nome do Bola Sete) consistia em um
homem de quase dois metros de altura, pesava uns 150 quilos, e tinha um coração
de igual envergadura ao seu tamanho. Bola sete era muito doce, solidário,
desprendido materialmente, para ter uma ideia, ele dividia a marmita com os
companheiros, o que era dele, era dos outros. É obvio que para fazer jus ao
nome o apelido tinha que fazer menção a sua cor de pele. Bola Sete era preto,
bem preto.
Voltado à questão da transferência, tomei um
“bonde[iii]” juntamente com meu
amigo gaiato Bola Sete, quando chegamos à carceragem de destino, nos colocaram
algemados no pátio, juntamente com todos os outros transferidos, ao todo x
pessoas. Debaixo do sol de meio dia, sem almoço, sem água e sem usar o Boi
(banheiro). Por volta das 16 horas, começaram a fazer a “admissão”, contudo,
pelo avançado da hora, e pelos guardas estarem em vias de trocar o plantão,
realizaram “entrevista” coletiva, assim, no meio de todo mundo. Chamavam pelo número
de infopen (o meu, jamais esqueci: o preso para o Estado é apenas um numero). Falávamos
os nomes e íamos respondendo o que nos era perguntado, estado civil, idade,
endereço, auto denominação de cor de pele...
Bola
Sete foi o primeiro a responder: estava em minha frente, respondi tudo dentro
das conformidades, com presteza e agilidade, mas quando chegou ao
questionamento da cor de pele ele me solta:
- Sou Pardo!
Foi uma risada geral, já que como falei, Bola
Sete era o cara mais preto que conheci na vida. Fiquei intrigado com a resposta
de meu amigo e, assim que pude, questionei qual o motivo daquela resposta:
- Qualé desta de responder que é pardo?
- Qualé nada doido, já tô preso, fudido,
qualquer coisa nos esculacham, e você ainda quer que eu fale que sou negão? Sai
fora mané!
Dei umas boas gargalhadas e seguimos para a
nossa nova morada.
Hoje, refletindo sobre este episódio e sendo
conhecedor da seletividade penal, da função do Direito Penal, fico me
perguntado: que País é este em que um ser humano tem vergonha de sua cor. Mais que
isto, acredito que, de certa forma, o meu irmão tinha razão.
Tudo é mais difícil para o preto neste Brasil,
sobretudo em um ambiente em que, na própria concepção, foi criado para separar
e segregar aqueles que a sociedade entende serem pessoas de segunda classe.
Deve ser por isto que as “estatísticas
oficiais” dão conta do número incrivelmente grande de “pardos” no sistema
prisional, por pessoas com o mesmo entendimento e percepção do Gilmar, o Bola
Sete...
Gregório Antonio Fernandes de
Andrade, (Greg Andrade), Advogado,
sobrevivente do sistema carcerário brasileiro, Ativista e militante em Direitos
Humanos no Coletivo PESO – Periferia Soberana.
[Greg Andrada foi convidado por Ernande:
convidado publica na Rua Balsa das 10 aos sábados e domingos.]
[i] Se
achar interessante, escreva aqui a definição de preso de seguro. Preso de
seguro é quem foi sentenciado por crimes contra a liberdade sexual, ou acusados
de serem delatores.
[ii] Este
presídio, para onde fui transferido, tem características de ser para presos em
regime semiaberto, que podem sair para trabalhar extra muros
[iii]Bonde
é o nome dado as transferências, mudanças de cadeia.