Bloc de Educação Popular em Saúde com foco em crônicas, contos e poesias. Reflete o dia a dia de trabalhadores do Sistema Único de Saúde e Saúde Pública e Coletiva.
(cotidiano, saúdes, vidas, poéticas, sensibilidades, ternuras, raivas, gritos)
O paciente ideal
Fala pouco
Não chora, não geme, não grita
Aceita e concorda com tudo
Segue as prescrições
Não usa celular
Não tem história social
Tem uma queixa exata
E apresenta só uma queixa de cada vez
Tem uma dor de descrição precisa
Não fuma, não bebe, não cheira
Não come demais
Não come gordura
Não come nada com açúcar (nem carboidrato)
Não faz muito sexo e sempre usa preservativo,
anticoncepcional, e todos os outros métodos possíveis
Tem três refeições por dia
Tem casa para morar
Sabe ler e seguir ordens
Toma a medicação na hora certa
Não faz cara feia
Tem no máximo um acompanhante
Sabe comunicar-se e expressar-se bem
Faz os exames no tempo certo
Não tem vícios
Tem dúvidas pontuais e de fácil resposta
O paciente ideal, senhores,
Não tem graça, nem troca.
Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo." -
Maria Carolina de Jesus
“A liga que não faz nada” entre outras frases como “a liga
que só filosofa”, “a liga que escreve sonetos”, “o pessoal que cheira cola”, “a liga
desorganizada”. Cotidiano de pessoas, acadêmicos do curso de medicina, que
vivem no terreno árido e hospitalocêntrico da vida universitária - na tentativa de desenvolver um projeto de extensão popular. Afrontas não
só de outros acadêmicos, mas também de professores e técnicos. A grande questão
não é o que é melhor ou é pior, é compreender que tudo faz parte de um sistema
e que cada conhecimento se complementa, é apenas diferente. Para muitos, a verdadeira alegria da
medicina ganha vida nas relações formadas com os pacientes. É difícil
quantificar o problema, mas as ofensas sutis, pequenas tensões e hostilidades
entre médicos (e também acadêmicos) somam um estresse mental significativo, nos
quais os efeitos podem ser deletérios. O que tem “tom de brincadeira” é
dividido por uma linha tênue de afrontas e humilhações. Nesse sentido, compreender
que a diminuição ou depreciação dos colegas sobre a Liga de Educação em Saúde e
também sobre a Estratégia Saúde da Família (aproveito o ensejo para falar também
deste tema) ou as escolhas de cada um são formas desrespeitosas de lidar com os
colegas, amigos e pessoas.
É difícil você ouvir falar que o trabalho de um clínico é
"sempre a mesma coisa" ou que um cirurgião "é médico de
mentira" ou que você é “petista” (ou “comunista”) porque escolheu fazer
ginecologia. Ninguém fala que você é burro ou menos capaz porque você escolheu
pediatria. Ou ainda dificilmente alguém utiliza demagogias de que você não sabe
escolher a sua própria especialidade ou que você deveria rever as suas escolhas. Por que
então falar isso dos médicos de família? Por que falar isso de acadêmicos que
criam e participam de uma Liga de Educação em Saúde? Se você falar que quer ser
médico de família durante a sua formação certamente você irá ouvir algumas
perguntas como: "você sabe encaminhar?", se "você votou na
Dilma?" se "você tem preguiça?", ou a afirmação "eu não vou te ensinar
porque você quer ser médica de família". Às vezes nem perguntam, como
escutei há umas duas semanas, “aí vem a médica do PSOL” - eu olhei para o
médico residente que fez a brincadeira, pessoa que nunca havia trocado uma
palavra comigo, nem me cumprimentado, eu não conhecia ele e pior nunca
demonstrei minha opinião política nesse sentido. Além disso, eu não entendo o
que isso muda na minha prática e habilidade médica. Existe, na conjuntura atual, uma certa dificuldade em distinguir opiniões e fatos políticos com a prática e escolhas dentro da medicina.
Por que acadêmicos que decidem desenvolver trabalhos na
comunidade que são de difícil acesso com todas as peculiaridades possíveis e
imagináveis são considerados "babacas", "drogados" ou
"retardados"? Devo dizer que a vida na comunidade não é setorizada e
organizada como ligas que lidam com problema setorizados (clínica, cirurgia,
trauma e cia). É difícil ter cronograma quando a chuva destrói o telhado do
local que você faz reunião, ou quando você lida com perdas, ou quando a
comunidade não pode te receber por causa do tiroteio da noite anterior, ou
ainda quando um grupo de artesãs precisa fazer uma grande encomenda e a reunião
não poderá ser aquela semana. O que é difícil é ter que realizar reuniões e refazer
cronogramas para discutir a denigração e a dificuldade de conduzir um projeto com
a comunidade longitudinalmente dentro do curso de medicina. Ainda mais difícil
é o especialista, clínico, cirurgião (e cia) perceber que, quando eles forem
explicar sobre determinado remédio da tireoide, aquela pessoa da comunidade
que teve a chance de participar de uma “Liga de Educação em Saúde” vai saber
onde a tireoide fica o seu formato e para que serve. Ou quando for receitado um
antidiabético aquela pessoa vai conhecer o mecanismo da diabetes e síntese do
"açúcar". É raro o especialista, ou “acadêmico-especialista” (palavra que tenta definir a superespecialização
no curso de medicina) perceber a diferença de um paciente que conhece a
localização do fígado, sua função e inclusive suas enzimas. Ou mudar a
alimentação de uma família porque finalmente eles entenderam o que é “diminuir
o sal”. E ainda, analisando mais profundamente,
talvez o que quase ninguém discuta (ainda mais difícil) é a importância e emponderamento da
comunidade que conhece seus direitos em saúde.
Geralmente não se percebem essas nuances que uma Liga de Educação
em Saúde é capaz de promover. Ou um Médico de Família ou mesmo um profissional
bem formado e com habilidades de competência comunicativa intercultural (outro “carro
chefe” da Liga de Educação em Saúde). Não importa a área que um acadêmico
exposto a esses conhecimentos irá trabalhar, as marcas de uma comunicação
adequada baseada em uma relação de troca, e não de imposição já demonstram as
diferenças entre: paternalismo médico e emponderamento em saúde.
Então, você vivencia as versões do mesmo discurso, "o médico
de 'postinho' é ruim" (ou é comunista, incapaz, a escória da
medicina, entre outros) remendadas pela fala “mas eu sei que você vai ser boa”.
Por acaso fala-se isso dessa forma de outras especialidades? Eu nunca escutei
"endocrinologistas são ruins, não vale a pena fazer essa
especialização" ou "não encaminhe de volta para o cardiologista que
ele não sabe lidar com a situação". Ou diariamente tem alguém que irá
falar algo do tipo: “talvez você pode
ser boa na medicina de família, mas sabe, qualquer um está indo trabalhar na
atenção primária, então é difícil”. Eu gostaria que um médico especialista que fala isso fosse em um congresso de Medicina de Família e visse a legião de “qualquer uns”
trabalhando pelo cuidado integral do paciente. Certamente quem estiver utilizando
os óculos do viés hospitalocêntrico (óculos ensinado/colocado durante a
formação médica) vai comentar: “mas os cardiologistas são mais bem preparados,
os médicos de ‘postinho’ não são”. Será? Não são dois ou até três anos de
especialidade também? As habilidades são diferentes, isso eu concordo. Aliás,
devemos cuidar com algumas generalizações (que não mudam a depreciação de
médicos que decidem atender na atenção primária), mas os “médicos de postinhos” não
são iguais a médicos que optaram por realizar a residência em medicina de
família. Explico melhor: no universo dos médicos que trabalham em unidades
básicas existem médicos de família, médicos de outras especialidades e médicos
sem especialidade. Mas ninguém fala dos médicos de "hospitalzinho"
que também congregam todas essas características de formação. Ainda, é difícil
você ver, mesmo quando um médico de família recebe uma péssima nota de alta
hospitalar, alguém falar "ah esses médicos de pronto socorrozinho que não
fazem seu trabalho direito", "esses médicos de hospitalizinho que não
sabem encaminhar" ou "esses médicos que nem fazem medicina que fingem
que trabalham".
Isso não acontece só com a especialidade de medicina de
família (apesar do contraste ser maior)*. Os médicos que trabalham com o paciente zombam
dos médicos patologistas e radiologistas que “não habitam o mundo real”. E
clínicos ridicularizam por certa doença ser mais de um ou de outro (por
exemplo: essa doença é mais do cardiologista, ou do nefrologista, ou “não o porquê que o pneumologista quer modificar a conduta”), nunca está certo o local do
qual eles pertencem (claro doenças são multifatoriais e multifacetadas). Cirurgiões
discutem o papel do clínico e criticam as condutas tomadas (e vice-versa). R2s
(residentes do segundo ano) “brincam” com R1s (residentes do primeiro ano) em
geral humilhando ao invés de promover um ambiente de construção do conhecimento.
E as brigas seguem entre si em busca de
hierarquias arraigadas ao sistema. Por fim, os médicos de família estão cansados
da falta de condescendência de especialistas.
Pesquisas não cansam de demonstrar o aumento dos níveis de
ansiedade, depressão e burnout entre os médicos. Em geral as desculpas giram em
torno de longas jornadas de trabalho, pacientes exigentes e burocracia
inesgotável, mas qual é o papel que desempenham os colegas prejudicando um ao
outro (mesmo sem querer)? Eu não vou denegrir a imagem de nenhum colega com
este texto, quero abrir a discussão madura sobre medicina de família e projetos
de extensão popular (a Liga de Educação em Saúde), não quero fazer um apelo,
quero conscientizar os abusadores para prestarem atenção, porque violência
mesmo verbal, discriminatória ou emocional é prejudicial para todos (e, diga-se
também, pode se enquadrar como crime).
Um dos caminhos para isso, pasmem, é a educação médica
(educação em saúde) onde se deveria não apenas resolver o conflito, mas evitá-lo.
Ao invés de só termos (ainda que poucas) instruções de como se comunicar bem com
o paciente, porque não aprendermos como ser agradável com os colegas (aliás desdobro
isso para os colegas de outras profissões)? Por fim, a Liga de Educação em
Saúde tem trabalhado para garantir uma educação de qualidade no curso de medicina,
independente da especialidade (medicina de família ou outras). Educação não
apenas técnica, mas, também, humana, para tentar assegurar que a universidade
não deforme acadêmicos durante o curso com ideias depreciativas sobre projetos
que trabalham na comunidade. Nesse
aspecto, descubro que ainda tem muito o que fazer.
Aliás, feliz dia do médico e que esta seja uma reflexão para
todos que escolheram essa profissão.