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24 outubro 2018

O tecido da Educação Popular

Foto: @suldemins


Não é a primeira vez que alguns alunos vem conversar comigo que não entendem como “por em prática a educação popular”, principalmente no “espaço das consultas” não encontram o “espaço da educação popular”. Ainda, dizem que não se encontram, que há uma dificuldade de sair do texto referência e trazer isso para a consulta da pessoa.

Costumo ouvir e perguntar se teve alguma experiência em que isso ficou mais evidente, se tem algo incomodando. Geralmente o incômodo é a própria consulta clínica. O incômodo de estar vendo só uma partezinha da história, estar “engessado” pela anamnese puramente biomédica. Essa “incomodação” é Educação Popular. 

Nos subterrâneo da consulta “estritamente biomédica” e da mesa separando futuro profissional da saúde incomodado e o sujeito está o tecido da Educação Popular. O desconforto do jaleco branco que quando oportunamente em dinâmica da Liga de Educação em Saúde usado pela comunidade faz as mulheres-mães da comunidade serem médicas melhores por olharem nos olhos, examinarem com cuidado e conversarem com calma - coloca muitos acadêmicos em cheque. Tudo teatro da dinâmica mas com verdade, como seria se meu “paciente” usa-se meu jaleco? 

Essa mistura de saberes que não é tão tangível, mas que faz parte do tecido das experiências de estar “desconfortável” e que leva em consideração a pessoa além do seu sinal e sintoma. A experiência inquieta de quem está “traduzindo” essa história para o raciocínio clínico como futuro profissional de saúde de sentimentos mistos é parte do processo pedagógico da educação popular entrelaçando o saber anterior do educando e sujeito como ponto de partida. 

Enxergar e querer fazer uma consulta diferente por estar insatisfeito é o começo da inversão do micropoder do profissional da saúde, a revolução está na “incomodação” que envolve diversos atores – futuros profissionais da saúde, acadêmicos e professores – na construção compartilhada do cuidado. 

A “incomodação” é o ponto de partida. Imaginava-se talvez na ficção distópica de Orwell no livro 1984 que: “No início do século XX, a visão de uma sociedade futura inacreditavelmente rica, ociosa, organizada e eficiente - um mundo antisséptico, cintilantes, de vidro e aço e concreto branquíssimo - fazia parte da consciência de praticamente toda pessoa culta”. Essa sociedade que não aconteceu e que ainda não descambou para o controle totalitário e sádico do livro 1984 também não é o objetivo da educação popular, como disse Brandão (1982): “a Educação Popular não visa a criar sujeitos subalternos educados: sujeitos limpos, polidos, alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja e utilizando fossas sépticas”. A construção do próximo e a “incomodação” faz parte do pano da Educação Popular. 

Costumo desafiar os profissionais de saúde com a ideia de que clinicamente podemos saber muito sobre a Hipertensão Arterial, por exemplo, fisiopatologia, débito cardíaco, exames, medicações formas de prescrever e as famosas “mudanças do hábito de vida”. Porém, sabemos o que é ter “Pressão Alta”? O que é e como é diariamente tomar a medicação prescrita? O mesmo vale para todas as doenças, sabemos muito sobre elas, mas como é viver com diabetes, por exemplo? Esta é a mágica da comunicação e da beleza da aproximação dos diferentes mundos. Mais profundo do que as doenças em si, são as pessoas. 

A fisiopatologia, a clínica e o cuidado são geralmente muito parecidos, basta um bom livro ou uma boa referência para aprender o melhor manejo e diagnóstico. Porém o que é realmente diferente são as pessoas, a experiência de cada “paciente”. E cada paciente é um universo, percepção, espiritualidade, vivências e amorosidade cruzam essa pessoa. Este é o toque humano que nenhum protocolo pode fazer, reservado apenas a outros seres humanos. 

A Educação Popular permite a identificação do humano em comum a partir dos olhos e permite também a compreensão e amorosidade, reconhecendo os diferentes caminhos que cada um traçou. A partir deste tecido, podemos costurar juntos a construção conjunta do conhecimento. A reorientação do cuidado no serviço de saúde não vem apenas da “incomodação” dos acadêmicos, mas também do “incômodo” das pessoas que o utilizam, dos seus gestores e profissionais da saúde. Essa construção do cuidado por vários atores e mãos é central para “prática da educação popular”. Assim, espero sempre mais “incomodados” e eternos em construção. 

Abraços que pousam,

Mayara Floss

26 outubro 2016

Um ensaio sobre sonhar

Sonhos doces em caldas.
Talvez um ensaio sobre sonhar poderia ser uma fase do sono, estritamente calculada com máquinas de leitura do simples ato de dormir. Mas o sonho que quero escrever aqui é o sonho que você lava o rosto pela manhã, "Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga." - como já escreveu Mia Couto.

O sonho queimando em atividade da Liga de Educação em Saúde, tudo de mais especial que você deseja: "carro, casa, saúde, ser médico, ver os filhos crescerem...". Escreva aqui, neste papel, juramentado que ninguém irá ler, tocar, o sonho é todo teu. Clarice iria frizar: "acredito em sonhos e não em utopias".

Guardamos tudo com carinho numa lata de pêssego em calda, sonhos doces, doçuras, conexões, amorosidades, bens materiais. Eu que tenho a tarefa de passar riscar o fósforo e deixar a lata, a lágrima, os sentidos e sentimentos queimarem. Toda a esperança pegando fogo. Reflexões com aquela chama viva da lata de pêssego.

Nos conectamos uns com os outros: "talvez nossos sonhos não se realizem" ou "talvez os sonhos daquela pessoa, sujeito, paciente queimaram, e por isso é difícil lidar com ele". Ecoa naquela lata Drummond: "Fácil é sonhar todas as noites. Difícil é lutar por um sonho".

Ontem escuto na família rural "Deus sabe melhor do que nós os nossos sonhos", então podemos "sonhar errado"? O sonho impossível de Drummond, penso nele, nos meus sonhos, no fogo queimador de sonhos e que faz nascer empatia, cuidado, reflexões. "Afinal, há é que ter paciência, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendido,
e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte.", Guimarães diz ao meu ouvido.

Vejo a menina de 12 anos me perguntando: "mas tia, quantas abdominais eu preciso fazer para perder a barriga, meu sonho é perder a barriga". Conversamos sobre sonhos, mas ela é resoluta, quer perder a barriga e colocar a "gordura nas pernas". Fico um pouco sem saber o que fazer eu ajudando a realizar sonhos? Sonho de perder barriga?

Volto aos sonhos queimados, talvez queimando ainda.

"Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum." - Alvaro de Campos, Fernando Pessoa.

Sonhos cruzam a porta do consultório, notícias que se transformam em lágrimas em atestado de final de sonhos. Como costurar os sonhos perdidos, queimados, atrapalhados, mudados?

Eis que a Suzana e a Ledeni, artesãs da Barra que já tinham planejado fazer livros de tecido com os extensionistas mudam os planos e decidem que vão nos ensinar a fazer um "filtro dos sonhos". Vão costurar os nossos sonhos. E fazer um bem grandão para colocar todos os sonhos ali e pendurar na faculdade de medicina. Todos trabalham, coletamos cipó, a Leda tem um ponto diferente da Suzi, cada uma costura sonhos à sua maneira. Em Terra Sonâmbula de Mia Couto o "sonho é o olho da vida."

Desenhamos no cipó os sonhos costurados com as mãos carinhosas da Suzi e da Leda "voltando um ponto" ou "ajustando uma distância". Elas não descansam até que todos tenham sua teia de sonhos e dizem: "ninguém pode ficar sem".

Costuramos sonhos, recortamos, queimamos, renascemos, re-escrevemos, até resonhamos. Uma educação popular sonhada, costurada, emendada, de aproximação. E vivemos em terras mágicas de repensar o próximo, se aproximar do outro, aprendermos a cuidar, como diz Julio, de seres extraordinários.

Costurando sonhos
Abraços que pousam,
Mayara Floss

22/10/16

31 agosto 2016

O brilho

A Janela
- A pesca mudou muito Mayara - estava a me contar Suzi - era muito bonito antes - fico olhando-a - agora é quase tudo industrial. - respondo apertando os lábios.
- A culpa dos meus filhos terem virado pescador é minha, eu levava eles pequenos para pescar comigo, não tinha com quem deixar colocava eles no bote e ia pescar, desde pequenininhos - ela sorri, eu sorrio também é pergunto - mas dai era pesca artesanal? - ela responde - Sim, era pesca artesanal, tinha o brilho, é diferente das redes de hoje que pegam tudo e matam tudo, tem que saber cuidar e preparar, tem peixe que eles jogam fora e dá para comer, fica igual a atum de latinha só cozinhar com vinagre, óleo e sal na panela de pressão - ela segue - mas agora a malha pega todos os peixes, não sobra nada para o pescador artesanal, eles vem roubam todos os peixes, deixam a sujeira e depois a culpa é de quem? Do pescador artesanal -. 
Nos olhamos, ela continua - você tem que ver Mayara, como é bonito quando íamos pescar os camarões à noite e colocava a luz enquanto ia enchendo a rede e depois colocava no bote tinha tanto brilho, depois a gente já limpava para ganhar um pouco mais de dinheiro no mercado público. O peixe então, Mayara, tinha brilho, as escamas passavam assim e batia um brilho no olho - enquanto ela explica o movimento do peixe com as mãos ondulando.
- Aí eu já limpava o peixe para ganhar mais dinheiro nas postas de filé... Agora não é mais assim Mayara, não é. 
 
Pergunto-me se esse brilho da pesca  é como o mesmo brilho que se perde nos olhos dos profissionais  da saúde? 

Abraços que pousam,
Mayara Floss

18 outubro 2015

“A liga que não faz nada”

"(...) não gosto de discutir. Prefiro escrever. 
Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo." - 
Maria Carolina de Jesus

 “A liga que não faz nada” entre outras frases como “a liga que só filosofa”, “a liga que escreve sonetos”,  “o pessoal que cheira cola”, “a liga desorganizada”. Cotidiano de pessoas, acadêmicos do curso de medicina, que vivem no terreno árido e hospitalocêntrico da vida universitária - na tentativa de desenvolver um projeto de extensão popular. Afrontas não só de outros acadêmicos, mas também de professores e técnicos. A grande questão não é o que é melhor ou é pior, é compreender que tudo faz parte de um sistema e que cada conhecimento se complementa, é apenas diferente. Para muitos, a verdadeira alegria da medicina ganha vida nas relações formadas com os pacientes. É difícil quantificar o problema, mas as ofensas sutis, pequenas tensões e hostilidades entre médicos (e também acadêmicos) somam um estresse mental significativo, nos quais os efeitos podem ser deletérios. O que tem “tom de brincadeira” é dividido por uma linha tênue de afrontas e humilhações. Nesse sentido, compreender que a diminuição ou depreciação dos colegas sobre a Liga de Educação em Saúde e também sobre a Estratégia Saúde da Família (aproveito o ensejo para falar também deste tema) ou as escolhas de cada um são formas desrespeitosas de lidar com os colegas, amigos e pessoas.  

É difícil você ouvir falar que o trabalho de um clínico é "sempre a mesma coisa" ou que um cirurgião "é médico de mentira" ou que você é “petista” (ou “comunista”) porque escolheu fazer ginecologia. Ninguém fala que você é burro ou menos capaz porque você escolheu pediatria. Ou ainda dificilmente alguém utiliza demagogias de que você não sabe escolher a sua própria especialidade ou que você deveria rever as suas escolhas. Por que então falar isso dos médicos de família? Por que falar isso de acadêmicos que criam e participam de uma Liga de Educação em Saúde? Se você falar que quer ser médico de família durante a sua formação certamente você irá ouvir algumas perguntas como: "você sabe encaminhar?", se "você votou na Dilma?" se "você tem preguiça?", ou a afirmação "eu não vou te ensinar porque você quer ser médica de família". Às vezes nem perguntam, como escutei há umas duas semanas, “aí vem a médica do PSOL” - eu olhei para o médico residente que fez a brincadeira, pessoa que nunca havia trocado uma palavra comigo, nem me cumprimentado, eu não conhecia ele e pior nunca demonstrei minha opinião política nesse sentido. Além disso, eu não entendo o que isso muda na minha prática e habilidade médica. Existe, na conjuntura atual, uma certa dificuldade em distinguir opiniões e fatos políticos com a prática e escolhas dentro da medicina.

Por que acadêmicos que decidem desenvolver trabalhos na comunidade que são de difícil acesso com todas as peculiaridades possíveis e imagináveis são considerados "babacas", "drogados" ou "retardados"? Devo dizer que a vida na comunidade não é setorizada e organizada como ligas que lidam com problema setorizados (clínica, cirurgia, trauma e cia). É difícil ter cronograma quando a chuva destrói o telhado do local que você faz reunião, ou quando você lida com perdas, ou quando a comunidade não pode te receber por causa do tiroteio da noite anterior, ou ainda quando um grupo de artesãs precisa fazer uma grande encomenda e a reunião não poderá ser aquela semana. O que é difícil é ter que realizar reuniões e refazer cronogramas para discutir a denigração e a dificuldade de conduzir um projeto com a comunidade longitudinalmente dentro do curso de medicina. Ainda mais difícil é o especialista, clínico, cirurgião (e cia) perceber que, quando eles forem explicar sobre determinado remédio da tireoide, aquela pessoa da comunidade que teve a chance de participar de uma “Liga de Educação em Saúde” vai saber onde a tireoide fica o seu formato e para que serve. Ou quando for receitado um antidiabético aquela pessoa vai conhecer o mecanismo da diabetes e síntese do "açúcar". É raro o especialista, ou “acadêmico-especialista” (palavra que tenta definir a superespecialização no curso de medicina) perceber a diferença de um paciente que conhece a localização do fígado, sua função e inclusive suas enzimas. Ou mudar a alimentação de uma família porque finalmente eles entenderam o que é “diminuir o sal”.  E ainda, analisando mais profundamente, talvez o que quase ninguém discuta (ainda mais difícil) é a importância e emponderamento da comunidade que conhece seus direitos em saúde. 

Geralmente não se percebem essas nuances que uma Liga de Educação em Saúde é capaz de promover. Ou um Médico de Família ou mesmo um profissional bem formado e com habilidades de competência comunicativa intercultural (outro “carro chefe” da Liga de Educação em Saúde). Não importa a área que um acadêmico exposto a esses conhecimentos irá trabalhar, as marcas de uma comunicação adequada baseada em uma relação de troca, e não de imposição já demonstram as diferenças entre: paternalismo médico e emponderamento em saúde.

Então, você vivencia as versões do mesmo discurso, "o médico de 'postinho' é ruim" (ou é comunista, incapaz, a escória da medicina, entre outros) remendadas pela fala “mas eu sei que você vai ser boa”. Por acaso fala-se isso dessa forma de outras especialidades? Eu nunca escutei "endocrinologistas são ruins, não vale a pena fazer essa especialização" ou "não encaminhe de volta para o cardiologista que ele não sabe lidar com a situação". Ou diariamente tem alguém que irá falar algo do tipo:  “talvez você pode ser boa na medicina de família, mas sabe, qualquer um está indo trabalhar na atenção primária, então é difícil”. Eu gostaria que um médico especialista que fala isso fosse em um congresso de Medicina de Família e visse a legião de “qualquer uns” trabalhando pelo cuidado integral do paciente. Certamente quem estiver utilizando os óculos do viés hospitalocêntrico (óculos ensinado/colocado durante a formação médica) vai comentar: “mas os cardiologistas são mais bem preparados, os médicos de ‘postinho’ não são”. Será? Não são dois ou até três anos de especialidade também? As habilidades são diferentes, isso eu concordo. Aliás, devemos cuidar com algumas generalizações (que não mudam a depreciação de médicos que decidem atender na atenção primária), mas os “médicos de postinhos” não são iguais a médicos que optaram por realizar a residência em medicina de família. Explico melhor: no universo dos médicos que trabalham em unidades básicas existem médicos de família, médicos de outras especialidades e médicos sem especialidade. Mas ninguém fala dos médicos de "hospitalzinho" que também congregam todas essas características de formação. Ainda, é difícil você ver, mesmo quando um médico de família recebe uma péssima nota de alta hospitalar, alguém falar "ah esses médicos de pronto socorrozinho que não fazem seu trabalho direito", "esses médicos de hospitalizinho que não sabem encaminhar" ou "esses médicos que nem fazem medicina que fingem que trabalham". 

Isso não acontece só com a especialidade de medicina de família (apesar do contraste ser maior)*.  Os médicos que trabalham com o paciente zombam dos médicos patologistas e radiologistas que “não habitam o mundo real”. E clínicos ridicularizam por certa doença ser mais de um ou de outro (por exemplo: essa doença é mais do cardiologista, ou do nefrologista, ou “não o porquê que o pneumologista quer modificar a conduta”), nunca está certo o local do qual eles pertencem (claro doenças são multifatoriais e multifacetadas). Cirurgiões discutem o papel do clínico e criticam as condutas tomadas (e vice-versa). R2s (residentes do segundo ano) “brincam” com R1s (residentes do primeiro ano) em geral humilhando ao invés de promover um ambiente de construção do conhecimento.  E as brigas seguem entre si em busca de hierarquias arraigadas ao sistema. Por fim, os médicos de família estão cansados da falta de condescendência de especialistas. 

Pesquisas não cansam de demonstrar o aumento dos níveis de ansiedade, depressão e burnout entre os médicos. Em geral as desculpas giram em torno de longas jornadas de trabalho, pacientes exigentes e burocracia inesgotável, mas qual é o papel que desempenham os colegas prejudicando um ao outro (mesmo sem querer)? Eu não vou denegrir a imagem de nenhum colega com este texto, quero abrir a discussão madura sobre medicina de família e projetos de extensão popular (a Liga de Educação em Saúde), não quero fazer um apelo, quero conscientizar os abusadores para prestarem atenção, porque violência mesmo verbal, discriminatória ou emocional é prejudicial para todos (e, diga-se também, pode se enquadrar como crime).

Um dos caminhos para isso, pasmem, é a educação médica (educação em saúde) onde se deveria não apenas resolver o conflito, mas evitá-lo. Ao invés de só termos (ainda que poucas) instruções de como se comunicar bem com o paciente, porque não aprendermos como ser agradável com os colegas (aliás desdobro isso para os colegas de outras profissões)? Por fim, a Liga de Educação em Saúde tem trabalhado para garantir uma educação de qualidade no curso de medicina, independente da especialidade (medicina de família ou outras). Educação não apenas técnica, mas, também, humana, para tentar assegurar que a universidade não deforme acadêmicos durante o curso com ideias depreciativas sobre projetos que trabalham na comunidade.  Nesse aspecto, descubro que ainda tem muito o que fazer.

Aliás, feliz dia do médico e que esta seja uma reflexão para todos que escolheram essa profissão.

Documentário sobre a Liga de Educação em Saúde
Voam abraços,

Mayara Floss

* Eu não sou a primeira pessoa a escrever sobre isso, veja o texto de Ranjana Srivastava “How doctors treat doctors may be medicine's secretshame” que inspirou o este parágrafo.

29 julho 2015

Entre chaves e a educação popular



Waterfall of keys (Cascata de chaves) de Peter Whitehead. Fonte: http://www.artbusiness.com/1open/032312.html


 “ (...) Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave? (...)” – Carlos Drummond de Andrade

Acredito que sempre desdobro uma nova parte da Educação Popular, novas respostas trazem novas perguntas, que trazem novas respostas e perguntas - um ciclo de reflexão inesgotável. Quando meia utopia, meio busca criamos a Liga de Educação em Saúde em 2010 estávamos descontentes com a nossa educação médica, com a “ajuda” verticalizada vivenciada nas matérias práticas do curso de medicina. Não consigo deixar de me remeter ao texto Gronnemeyer (1999) quando falo da “ajuda verticalizada”: “A ajuda sobreviveu inocente como sempre, mesmo que há muito tempo tenha mudado suas cores a tenha se transformado em um instrumento perfeito – e elegante – de exercício do poder”. Quando ajudar se tornou imposição e não emponderamento. A autora segue discutindo sobre ideia da ajuda que é incondicional, dada sem olhar para a pessoa que precisa de ajuda, a situação, a probabilidade de sucesso, ou a possibilidade de causar mais danos pela pessoa que oferece a ajuda.  

Descubro (em meio a redescobertas) que o paciente folha em branco (Eymard, 2009) para prescrever meus ensinamentos biológicos (e ser “ajudado”) da universidade não existe, e quero deixar escrito na minha prescrição (ou falado, expressado, cantado, sonhado): “Não tome nenhum medicamento até questionar tudo”. E cruzo novamente pela “Parábola do rio” de (Manchada, 2013) que conta:

Certo dia existia uma pequena vila na beira de um rio. Nesta vila as pessoas eram boas e a vida na vila era boa. Um dia um morador da vila viu uma criança no rio. Ele pulou na água e foi até a criança para salvá-la. Nos próximos dias mais e mais crianças apareceram descendo correnteza abaixo. Com o tempo a vila organizou equipes de resgate para descer o rio e salvar as crianças, lugares para aquecê-las e alimentá-las. Mas parecia que só piorava e tinha muitas crianças descendo rio abaixo e a vila passou a se contentar só com os que eles salvavam e o seu esquema de ajuda. E a vida da vila seguiu assim. Até que um morador ao invés de pular no rio para salvar decidiu subir o rio para descobrir quem (ou o que) que jogava as crianças rio abaixo. Quando outro morador viu ele subindo o rio ele esbravejou: “Onde você vai? Precisamos de todos aqui envolvidos para salvar essas crianças” e o homem respondeu “Vou descobrir o que está jogando elas no rio”. Alguns moradores da vila não gostaram da ideia, falaram que “era muito arriscado”, e eles falaram “com o número de crianças descendo rio abaixo precisamos de mais apoio aqui”.

Esta parábola me faz refletir sobre a medicina, sobre tirar as crianças do rio, ao invés de descobrir o que às coloca no rio. Ainda lembro, que uma das minhas primeiras reflexões ao ver um atendimento na Unidade Básica de Saúde em que o médico discutiu com o paciente sobre os medicamentos “da pressão” que o paciente não estava tomando, a dieta sem sal, a falta de atividade física e concluiu a conversa com “você deve começar a caminhar” – vi o paciente entristecido e um médico preocupado e frustrado. Nos próximos capítulos eu visitei o paciente em sua casa, continuava sem tomar os remédios, sem fazer a dieta e sem praticar o exercício físico. Eu não entendia nada, não compreendia qual era o caminho que estava faltando na comunicação, comecei a ver uma parede quase intransponível entre a medicina e o paciente. E comecei a refletir que não queria uma medicina que não mudava nada ou quase nada, que no final do dia a soma dava zero. Que salvava as crianças do rio mas não descobria a origem. A tendência neste momento da educação médica e da vida de um estudante é se encantar pela tecnicidade, pelas tecnologias duras e se afastar de uma medicina que “não funciona” para a medicina que “funciona” (que sutura, faz cirurgias, enfaixa, e que “cura”). Ou alguns estudantes do primeiro ano do curso de medicina decidem criar uma Liga de Educação em Saúde para ouvir e discutir saúde com os pacientes.

E como volto para a Educação Popular, volto para a minha educação médica pouco reflexiva e meus “refúgios” reflexivos. Navego pela reflexão crítica de Freire (1974) que se traduz bem nas palavras de Brandão (1982): “a Educação Popular não visa a criar sujeitos subalternos educados: sujeitos limpos, polidos, alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja e utilizando fossas sépticas” (ainda emendaria tomando seu anti-hipertensivo, comento pouco sal, fazendo uma dieta com pouco açúcar e praticando exercícios físicos). Também vejo (em algumas brechas) uma educação em saúde que não quer formar profissionais subalternos educados: sujeitos técnicos, científicos e humanizados. Mas encontro um diálogo entre a educação popular e a educação médica para a conquista de direitos, emponderamento e autonomia - não só das comunidades, mas também dos estudantes e profissionais. A mesma crítica reflexiva e elemento resistência que fez parte da minha educação médica (fora do currículo), é diálogo para empoderamento das comunidades. Mesmo elemento que ajuda a construir um sistema crítico que faz bom uso do controle social. 

Vejo uma discussão que ronda um profissional mais humanizado, que quer um profissional e uma sociedade crítica no caminho de uma maior autonomia, mas encosto novamente nesta parede entre o paciente e o profissional de saúde (paciente, comunidade, profissionais, gestores – a mesma parede). Essa dissonância entre um sistema que quer ser humanizado, crítico, reflexivo e construtivo profissional que quer ser humanizado ter os mesmos valores e  uma comunidade e pacientes que querem viver saúde de uma forma diferente demonstram uma das grandes fendas da educação médica e medicina hoje (Almeida-Filho, 2011): “o maior determinante da baixa qualidade dos serviços oferecidos pelos profissionais do SUS são recursos humanos limitados; porém, essa limitação é qualitativa e não quantitativa”. 

Descubro neste caminho entre várias confusões, teorias e distrações uma porta na a parede. Descobrir a porta, não significa abri-la. Viro o molho de chaves, giro, testo Foucalt, vou para a filosofia, vivo, leio, experiencio. Cedo ou tarde, descubro na Educação Popular uma chave qualitativa que destranca esses dois lados da porta, que abre uma parede de conhecimentos diferentes entre profissionais e comunidade, gestores, cidadãos. Que dá a chance para subir o rio, emponderar, resistir, mudar... dialogar. E como Drummond perguntou, reflito: “Trouxeste a chave?”.

 Voam abraços,
Mayara Floss

Bibliografia

Almeida-Filho N. Higher education and health care in Brazil. Lancet. 2011;377:1898-900.
Brandão CR. Lutar com a palavra: escritos sobre o trabalho do educador. Rio de Janeiro; 1982.
Freire P. Education for critical consciousness. London: Continuum; 1974.
Gronemeyer M. Helping. In: Sachs W, editor. The Development Dictionary: A Guide to Knowledge as Power. 2 ed. New York: Zed Books; 1992. p. 55-73.
Manchada R. The Upstream Doctors: Medical Innovators Track Sickness to Its Source. 38 ed.: TED Conferences; 2013.
Vasconcelos EM. A construção conjunta do Tratamento Necessário. Caderno de Textos - Grupo de Estudos em Educação Popular e Saúde 2009(1):80.

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