"Vem meu ursinho querido
Meu companheirinho
Ursinho Pimpão
Meu companheirinho
Ursinho Pimpão
Vamos sonhar aventuras
Voar nas alturas
Da imaginação"
Voar nas alturas
Da imaginação"
Chovia
na rua. Sentei ao lado de uma jovem grávida no meio da comunidade. Sem jaleco,
sem nenhuma grande “proteção” médica. Segundo ano da faculdade, mais ouvidos,
menos opiniões. Sentei e comecei a falar sobre o tempo, afinal a desculpa para
todos os dias úmidos de Rio Grande. Ela estava sentada, com a barriga
aparecendo, blusa curta, calça colada, chinelos de dedo, cabelo preso, sorriso
no rosto.
Gravidez
na adolescência era o que eu pensava. Meu cérebro estava trabalhando, pensando
em camisinha, sexo seguro, usar anticoncepcional. Mas enfim, decidi falar do
clima. Ela falou que a casa que ela morava alagou, mas estava feliz porque
agora ia ter uma casa só sua. Perguntei onde, e ela disse sorrindo que era no
fundo da casa da mãe dela, perto da casa do seu irmão. Por enquanto ia ser um
só cômodo, e ainda estavam pensando se iam fazer banheiro ou não, mas a casa
era dela. Dela e do bebê.
E
o pai da criança? Era o que eu deveria perguntar, mas o assunto surgiu assim
sem mais nem menos, sem nenhuma interrogação. O pai era mais velho, trabalhava
no porto e de vez em quando aparecia, não muito feliz que ela estava grávida,
mas esperava que fosse um menino. E ela tinha um sorriso imenso no rosto.
Estava
orgulhosa que ia ser mãe com seus quinze anos, que ia ter um espaço só para
ela, e ajudava a construir o seu novo lar. Agora teria o espaço seu, tão
sonhado depois de dividir por muito tempo os cômodos entre vários irmãos. Nesse
ponto acho que muita coisa foi se desmanchando em mim, todas as minhas
preconcepções de mundo. Ela não era uma jovem grávida que “errou”, deixou de
estudar para ter um filho, não usou camisinha, não tomou anticoncepcional. Era
uma mulher fazendo suas escolhas.
Ela
tinha esse brilho, a vontade de ser mais, de poder ter o seu espaço. Eu
consegui ouvir e perceber a importância da maternidade na independência dela.
Toda a lista de “coisas erradas” (ou talvez “mais corretas”) perdeu o sentido,
e aprendi a tentar buscar compreender o diferente e não deixar que a minha
avalanche de conhecimentos científicos viesse sufocá-la no seu direito de ser
mãe.
Conversamos
mais e sobre vários assuntos, falei que gostava de tocar violão e ela falou “não
sabia que médicos tocavam violão, achei que só estudassem”. Nos despedimos com
um abraço comovido e sem julgamentos, trocamos muito sem nem perceber, sem impor,
sem mais nem menos, só diferentes. Médicos tocam violão e meninas escolhem ser mães. Nós, mulheres, crianças, jovens escolhendo seus caminhos. Eu-menina começando a medicina e ela gestando. Ninamo-nos sem perceber. E a chuva continuou lá fora.
[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]