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11 junho 2014

A cura das almas


Livro de anotações no Sint-Janshospital


Fui visitar Brugge na Bélgica e aproveitei para ver a minha prima que não via há mais de ano. Em Brugge passei por um museu de hospital criado no século XII, o Sint-Janshospital. O Hospital foi uma iniciativa das autoridades municipais e de uma burguesia rica da época. Eu quase não entrei no hospital: “tem tanto disso no meu dia-a-dia”. Mas depois que o namorado da minha prima insistiu, adentrei as portas de pedra do antigo hospital. Logo cheguei e pensei “ainda bem que eu vim”.

Encontrei algumas pinturas famosas daquelas que você encontra recorrentemente nas aulas do primeiro ano da faculdade. Uma coisa muito legal foi ver as anotações dos médicos da época (há mais de 1000 anos atrás), os desenhos, os prontuários médicos enrolados como pergaminho.  Mas não foi isso que me impressionou de fato. Foi cantinho falando da história do hospital falando no tratamento da alma.

Estava escrito: “A morte em um hospital não era incomum. Por isso, a atenção espiritual estava fortemente presente. Sint-Jan contava com o seu próprio cura. O hospital tinha o direito de enterrar os mortos. A capela do hospital era parte da sala hospitalar. A devoção dos santos e da cultura popular religiosa estavam intimamente relacionados com o funcionamento do hospital. As freiras assistiam o cura quando um paciente ia morrer.”

Em 1188 quem entrava no hospital eram as pessoas em apuros, os viajantes e peregrinos. E as principais “virtudes” do hospital era a hospitalidade e a caridade. Outra passagem que chamou atenção foi que até a metade do século XIX o hospital não era um centro médico como hoje. Como o conhecimento médico era limitado, as pessoas recorriam a remédios alternativos. E por isso era tão evidente a busca da “cura das almas”.

Fiquei a pensar. A medicina avançou tanto que praticamente tudo que não é aferível não é válido. Como disse Helman (2009, p.113): “Quando um fenômeno não pode ser observado ou medido objetivamente por exemplo, as crenças de uma pessoa sobre as causas de uma doença, tal fenômeno é, de certa forma menos ‘real’ do que algo como o nível da pressão arterial do paciente ou a sua contagem de leucócitos (...)”¹.

Dá-se mais valor a medição, a contagem, ao índice, ao órgão do que a pessoa, do que as palavras do paciente. Da história e da vida que está por trás da anamnese. Quantos séculos vamos ter que voltar para falarmos que não são só as medidas? Quanto nós “avançamos” e quanto nós “retrocedemos” nessa caminhada?

Ainda falava-se de remédios alternativos. Composição das plantas. Na parte psiquiátrica do hospital estava escrito sobre “perturbação do espírito”. Sempre quando deparo com isso penso que a visão biológica é apenas uma das maneiras de compreender e analisar a pessoa.  A cura das almas não é tão aferível, assim como a visão biológica não é a maneira mais, única ou melhor de compreender um indivíduo. 

Sint-Janshospital

¹ HELMAN, C. G. Cultura, Saúde e Doença. 5 ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. 431 p.


[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

22 abril 2014

"A VIDA NÃO SE RESUME EM FESTIVAIS"


“A VIDA NÃO SE RESUME EM FESTIVAIS”
Geraldo Vandré


            Era início dos anos 80, fim de ditadura, democracia, artistas retornando ao Brasil. Eu, lá com meus 8 anos, entendia nada do que se passava, apenas sabia que tinha uma “anistia” e isso estampado nos jornais e as outras palavras novas já me davam uma sensação de importância e novidade. Eu bem que podia ser personagem daqueles filmes em que a visão política de crises, ditaduras e ideologias são contadas por uma criança. Tipo: “A culpa é do Fidel!” ou “O ano em que meus pais saíram de férias”. As tirinhas da Mafalda servem também. E tudo isso misturado com cidade nova, casa nova, escola nova e colegas novos. Nada parecia ser coincidência e era óbvio que a dita “abertura” devia ter algo a ver com aquilo tudo.
            Ema manhã, a escola que estudava foi invadida de forma ditatorial e arbitrária por um grupo vestido de branco, “armado” de pistolas e que, para meu bem e, possivelmente, para o bem da nação, pretendia aplicar aquela pistola no meu braço direito. Era o que chamavam vacina da BCG. Oras, não fui avisada e tampouco consultada sobre aquela ação e sabia muito bem o que significava vacina: agulha! Aquilo era inaceitável! Precisava não só me escapar daquilo como também, proteger minhas irmãs de tamanha brutalidade. Não sei como consegui resgatar minhas irmãs mais novas e, com a ajuda de uma professora risonha e generosa (talvez irresponsável), fugimos do colégio.
            Na rua, a coragem diminuiu. Sabia pouco onde ficava nossa casa nova, em rua de cidade nova e acho que demos algumas voltas até que finalmente, chegamos. Confesso que me senti heroína em ter chegado com as meninas em casa, sãs e salvas das vacinas. O pai se surpreendeu com a nossa chegada, cedo, sozinhas. E quando falei da vacinação e toda a ameaça e toda a nossa aventura e fuga, ele só riu. Sempre adorou subversões. Não brigou. Apenas disse pra gente ir pra cozinha com ele ajudar e experimentar o almoço. Logo a mãe chegou assustada. Tinha ido nos buscar e disseram que já tínhamos saído do colégio. Ficou um pouco brava, mas depois relaxou. Fui anistiada!
            Era véspera de semana santa. O pai fazia bacalhau e ouvia rádio. Música legal do Geraldo Vandré: “caminhando e cantando e seguindo a canção...”. Aumento o volume e ele pede pra diminuir: “música proibida!”. Não era mais, mas fiquei mais interessada. Ele contou a história da música do seu jeito de contar, para uma criança de 8 anos. Disse que por causa da música, aquele homem de voz engraçada teve que fugir e se esconder. Era encantador. O dia foi encantador. Fuga perfeita, acolhida de pai, música nova-velha “desproibida” bonita, cheiro de bacalhau, feriado e o melhor pra mim, na época, escapamos da BCG. Que nem o cantor, me revoltei e desobedeci. Talvez eu fosse uma subversiva e até me agradei da ideia.
            Cresci e entendi melhor não só aquele momento político, mas também, a importância da BCG. No entanto, “pra não dizer que não falei das flores” me lembra sempre cheiro de bacalhau, me lembra eu e minhas manas, “braços dados”, “caminhando”, fugindo da vacina. A letra me lembra até hoje, nós três perdidas entre a escola e a casa. “Vem, vamos embora, vamos fugir da BCG...” Até rima! Sim, nenhuma de nós tem a marca. Não fomos vacinadas depois. A ausência da marca no braço direito é uma boa história de contar em um tempo político tão duro e uma época da vida tão doce.
            Mas a “vida não se resume em festivais”, fugas, cirandas de crianças, feriado, páscoa, carnaval, copa e almoço de pai. A vida também não se resume nas vaias nos festivais, nas manifestações, nos palanques, nas subversões públicas em palavras gritadas. Faz parte, mas o essencial é a busca incessante de justiça e ética nos nossos espaços de convívio. Simples demais para um guerrilheiro, talvez. Pouco demais para um revolucionário, quem sabe. Estamos em tempos de Comissão da Verdade para apurar os crimes da ditadura, depois copa e eleições. Esperemos que o mais valioso em uma nação jamais se torne banal: cuidar das crianças, cuidar da infância.
            Semana passada, descobriram no necrotério de um hospital público no Rio de Janeiro, ligado a uma das mais importantes universidades públicas do estado, 40 corpos amontoados de fetos e bebês que, segundo o diretor da instituição, foram abandonados pelas mães em função de “condições sociais”. As condições sociais, certamente, incluem as perversidades do estado que fecha os olhos para a epidemia de crack, sem nenhuma política pública eficiente para a proteção de mulheres e crianças. As crianças que nem nasceram, as crianças que morreram sem verem as luzes do dia e as crianças que estão aí, na escuridão de becos e ruas, sofrendo violências. Desamparo.
            Amontoam os corpos das crianças mortas abandonadas. Abandonam as vidas das crianças amontoadas nos lixos. Ameaça maior que agulha. Tristeza maior que a falta de carinho, falta de memória de uma meninice com páscoa e natal, escola e casa nova. Violência tanta que nem assassinato por subversão. Tortura que nem busca delatores. Música, ciranda proibida de uma infância censurada. Sem anistia por se nascer em contexto adverso. Sem abertura para se permitir a devida visibilidade. Sem Comissão da Verdade para diretores e gestores que responsabilizam o “problema social” e se eximem de culpas. Achava, criança, ouvindo a música e as explicações do meu pai que a dita democracia era pra ser melhor, mais feliz, mais justa...
            Quando nada fizer sentido e nem mesmo a democracia, a nova constituição, a liberdade de fazer e cantar canções salvar as crianças, a infância, a esperança, o futuro, resta a revolta para fugir para um lugar seguro. O sonho da casa com pai e mãe, quintal, castelo, sonho, gaivota no céu, feriado, escola, um avião e um navio desenhados, o mundo melhor. Resta ainda a luta. A luta nossa contra a desumanidade que amontoa corpos de crianças como se fossem entulho. Contra esse discurso perverso que culpabiliza a “mãe viciada”, o “problema social”. Contra essa democracia que, de fato, nunca se fez governo de todos, bem comum, direito de viver e morrer com dignidade.

09 abril 2014

Ao educador as batatas



 Este texto foi publicado no livro "A colcha de retalhos: Vivências da Liga de Educação em Saúde", conheça mais clicando aqui.

    Sempre gosto de falar que o meu pai é engenheiro florestal e a minha mãe é bióloga – talvez, goste de falar pela influência de tantos fatores diferentes principalmente em relação a natureza na minha formação. Claro que falei isso um dia na comunidade da Barra para a Celina, uma senhora muito simpática que tem um jardim vasto ao redor da sua casa, ali tem flores, árvores, plantas de chá, frutíferas, arbustos... Um “matagal” – como o filho dela diz, para ela um lugar harmonicamente organizado. E de fato é, porque ela conhece cada palmo daquele chão e daquelas plantas, tem uma mapa detalhado de onde fica cada planta, vaso, semente, flor.

    Não raro, você passa na frente da casa da Celina e ela está caminhando levemente encurvada remexendo em suas plantas. Ela quase sempre anda com um lenço amarrado na cabeça, sempre colorido, passeando pelo terreno. Quando está sentada na varanda fala com sua imensa sobre os chás e as flores com sorrisos espertos e carinhosos.

    Quando eu falei que meu pai era Engenheiro ela parou e falou imediatamente: “Então você poderia trazer umas plantinhas para mim!”. Na verdade, ela corrigiu depois e disse que eu poderia “roubar” umas plantinhas para ela, afinal como ela explicou planta roubada “vinga melhor”, ela sempre brinca com a vizinhança que está com flores bonitas e que vai passar a noite roubar uma muda da planta. Eu não esperava aquele pedido, mas não poderia negar.

    Só que eu acho que a Celina esqueceu que eu moro cerca de 1000km de distância de Rio Grande, no oeste catarinense. Mas agora estava feito, estava comprometida em ajudar com ela no seu jardim. O que certamente ela gosta muito, então enquanto não ia para casa, comecei a pesquisar sobre armadilhas de caramujos (tem uma com uma lata de cerveja que funciona bem!), receitas caseiras para formigas, plantas medicinais, flores.

    Comecei a levar para ela mudas que conseguia comprar no centro, textos de livros sobre plantas medicinais que meu pai indicava, formas de plantar, épocas, colheitas. Mas ainda não tinha levado as tais plantas roubadas, o que ela adorava me lembrar. Ela nem escolheu a planta, só colocou a condição “tem que ser de Santa Catarina”, afinal a Celina é minha conterrânea.

    Foi ai então que nas vésperas de um feriado avisei meu pai para preparar as “plantas roubadas” para quando eu voltasse do feriado então trazê-las. Foi ai que começou a saga das batatas yácon (Smallanthus sonchifolius), as quais meu pai pesquisava e estudando um pouco mais descobri que elas são um importante alimento funcional pois tem bastante frutano, um tipo de açúcar não absorvido pelo trato digestivo e empregada na dieta adjuvante para pessoas com  colesterol alto e diabetes.

    Meu pai tinha muitas batatas yacón no herbário de plantas medicinais então não seria difícil “roubá-las” e eu gostava das tais batatas que são de origem andina e são consumidas cruas. Além disso, era época de plantar o yacón. Tudo minuciosamente calculado. Fui para casa e na hora de voltar tinha a minha mala, uma mochila, meu travesseiro (companheiro inseparável) e uma caixa consideravelmente pesada carregas de mudas de batata yacón (estava levando as batatas para consumo para que pudessem experimentar). Em Porto Alegre eu teria que trocar de ônibus em pleno domingo de manhã em feriado.

    Quando eu estava atravessando a rodoviária de Porto Alegre a duras penas, rompeu a parte de baixo da caixa (que havia sido reforçada) e as tais batatas saíram rolando para todos os lados. Tive que largar tudo para catar as batatas e improvisar em um saco plástico, uma cena cômica pensando agora e desesperadora para um momento apertado no qual eu tinha que correr para trocar de ônibus.

    Mas consegui coletar as batatas naquela rodoviária vazia. Na sexta-feira seguinte cheguei triunfante na comunidade carregando as batatas. Infelizmente, a Celina havia viajado para Santa Catarina naquela semana e eu não pude entregar as batatas para ela plantar. Mas as artesãs experimentaram as batatas que eu lavei e cortei na cozinha na Unidade Básica de Saúde tradicional da Barra durante o encontro da Liga de Educação em Saúde.

    Os integrantes do grupo dividiram as batatas entre si e plantaram as mudas da Celina em um balde para entregar a ela quando ela voltasse de viagem. Hoje elas já estão no jardim da Celina, com folhas verdes e mais ou menos meio metro de altura. E claro, ela já me pediu outras plantas “roubadas” depois que cumpri a promessa do yacón. E assim se faz também a Educação Popular, com batatas! Por isso, parafraseando Machado de Assis no seu livro Quincas Borba: “Ao educador, as batatas”.
 
Voam abraços,

Mayara Floss

 [Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

01 abril 2014

Dia bom





Menina, a felicidade
é cheia de praça,
é cheia de traça
é cheia de lata
é cheia de graça.
Tom Zé



Dia bom, dia bonito. Estou descansada e energizada das férias. Atendo bastante e consigo resolver boa parte das demandas, bem como fazer as receitas e atestados pendentes. Consigo auxiliar aos colegas com dúvidas sobre pacientes e ainda, começo a organizar a agenda e distribuir parte das lembrancinhas que trouxe das viagens. Saio um pouco além da hora, mas feliz e tranquila com o dia.

Pego carona com uma colega divertida. Dividimos as balinhas de gelatina colorida – presente da companhia aérea - uma a uma, tagarelando até uma parte da cidade, onde devo pegar outra condução.

Logo saindo do carro, já entro na lotação, no primeiro banco. Na parada seguinte, uma menina engraçada de chapeuzinho de palha, pede paciência que vai entrar umas duas vezes, pois tem muitas coisas para levar. De fato, entra primeiro com uns cinco quadros grandes e depois, volta trazendo uma sacola cheia e um jarro de violetas. O motorista adverte que isso não pode, que vai passar duas vezes e vai dar no “sistema” que são duas pessoas. Enfim, uma breve conversa que se resolve com ele auxiliando a menina engraçada a subir.

Vendo a atrapalhação, saio do meu lugar e ofereço à menina, para que fique mais perto das suas coisas. Ela agradece e senta. Mais adiante, na minha parada, a menina também faz sinal pra descer. Fica atrapalhada e sem mãos para tantas coisas. Assim, resolvo pegar a sacola e o jarro de violetas e ela, agradecida, fica com os grandes quadros. Saímos da lotação e, na calçada, ela me agradece. Me preocupo em como ela vai carregar tudo aquilo, mas já estava atrasada para meu próximo compromisso. Vou caminhando para atravessar a rua e ela me chama: “moça!”. Volto meu olhar e ela, sorrindo, me presenteia com o jarro de violetas... Diz que pra boa vontade não tem preço. Aceito e saio caminhando. Olho pra trás e nos abanamos, sorrindo uma para outra: velhas amigas de segundos.

Caminho umas cinco quadras até meu bairro, com o jarro de violetas até uma padaria na esquina de uma rua cheia de árvores que amo. Chego, com uma fome de fim de tarde e um tempinho de 15 minutos até meu compromisso. Peço um café e uma broa de milho com erva doce, chamada cavaca mineira que é o meu lanche predileto. A “gula” da tarde me faz pedir mais duas cavacas pra levar. Demoro uns 10 minutos me deliciando com o café e a broa, olhando para as florzinhas cor de rosa ao vento fresco de outono que começa a se insinuar e noto alguma simpatia dos outros clientes pela minha mesa. Sim, a única mesa com flor; meu presente surpresa, prêmio por ajudar a menina engraçada de chapeuzinho de palha.

Saio da padaria e vou direto para um salão perto da minha rua, onde a Ana, minha parceira de cuidados, é expert em “tosar” minhas sobrancelhas cheias de falhas... Só ela mesmo! Aguardo um pouquinho e ela me chama com o sorriso de costume. Sou a última sempre e ela está, nesse horário, mais cansada, mas sempre alegre e contando as histórias do dia, assim como eu. Antes de tudo, me cumprimenta e eu tiro uma das broas da sacola e digo: “experimenta, essa é especial!”. Depois da primeira mordida, deliciada, deixa a broa de lado e diz que vai comer o restante com café, mais tarde. Dou todas as referências de onde comprar, o horário em que está fresquinha e enquanto ela me “belisca gentilmente” com a pinça, falamos dos sabores, da erva doce, dos grãos de milho mais graúdos, das diferenças de farinhas de milho...

 Ana me diz que a mãe dela que ficou viúva recentemente, sempre a espera com um café no fim da tarde, depois que chega do trabalho. Que, agora, nessa fase de ressignificar a vida e o viver, alguns rituais e alguns cuidados vem tomando uma importância maior para as duas. Penso que, possivelmente, esse café em família tinha a presença do pai de Ana que já não mais está. Ana me diz, então, que amanhã vai passar na padaria e levar as broas de milho com erva doce para o café com a mãe. Diz que ela vai adorar o lanche, pois adora tudo que é de milho e aquela broinha é mesmo muito especial. Assim, depois de alguns minutos, nos despedimos, pego minha violeta que me espera em um canto da sala e, finalmente, sigo para casa.

 Em casa, comendo a segunda cavaca mineira, escrevo essa passagem simples e cotidiana de um fim de tarde de outono, com um sabor de erva doce e ternura. Ganhei uma violetinha rosa e amanhã, mãe e filha vão ter um café de fim de tarde mais especial, com um saborzinho a mais. Penso que são esses pequenos atos tão simples, o sorriso e o tchauzinho da menina engraçada do chapeuzinho de palha, os 10 minutos de café de fim de tarde, a broa de milho quentinha é que dão o sabor mágico do dia e da vida. Olho para as folhas verdes da minha nova plantinha e tenho certeza de que ela sabe do que estou falando. Ela floresce e precisa ser cuidada, regada, que nem nós, que nem nossos dias.

Quando mãe e filha se sentarem para se acalentarem, para renovarem suas esperanças na vida, para diminuírem a saudade e a ausência, para degustarem uma broinha de milho, para falarem de seus dias, não vão nem imaginar que tudo começou com uma bala de gelatina colorida. Brinde de companhia aérea... Pois que a vida é mesmo isso. É brinde, é esse café, esse encontro, esse vento de outono, esse sorriso, esse cansaço, esse presente inusitado, esse sabor de querer ajudar, dividir e agradecer. Vida é mesmo esse verdinho escondido na farinha de milho que se saboreia de olhos fechados que nem abraço de saudade, que nem beijo de amor. Vida é a erva doce...





[Maria Amélia Mano publica na Rua Balsa das 10 às 3as-feiras]

26 março 2014

Ninar


"Vem meu ursinho querido
Meu companheirinho
Ursinho Pimpão
Vamos sonhar aventuras
Voar nas alturas
Da imaginação"


                Chovia na rua. Sentei ao lado de uma jovem grávida no meio da comunidade. Sem jaleco, sem nenhuma grande “proteção” médica. Segundo ano da faculdade, mais ouvidos, menos opiniões. Sentei e comecei a falar sobre o tempo, afinal a desculpa para todos os dias úmidos de Rio Grande. Ela estava sentada, com a barriga aparecendo, blusa curta, calça colada, chinelos de dedo, cabelo preso, sorriso no rosto.

                Gravidez na adolescência era o que eu pensava. Meu cérebro estava trabalhando, pensando em camisinha, sexo seguro, usar anticoncepcional. Mas enfim, decidi falar do clima. Ela falou que a casa que ela morava alagou, mas estava feliz porque agora ia ter uma casa só sua. Perguntei onde, e ela disse sorrindo que era no fundo da casa da mãe dela, perto da casa do seu irmão. Por enquanto ia ser um só cômodo, e ainda estavam pensando se iam fazer banheiro ou não, mas a casa era dela. Dela e do bebê.

                E o pai da criança? Era o que eu deveria perguntar, mas o assunto surgiu assim sem mais nem menos, sem nenhuma interrogação. O pai era mais velho, trabalhava no porto e de vez em quando aparecia, não muito feliz que ela estava grávida, mas esperava que fosse um menino. E ela tinha um sorriso imenso no rosto.

Estava orgulhosa que ia ser mãe com seus quinze anos, que ia ter um espaço só para ela, e ajudava a construir o seu novo lar. Agora teria o espaço seu, tão sonhado depois de dividir por muito tempo os cômodos entre vários irmãos. Nesse ponto acho que muita coisa foi se desmanchando em mim, todas as minhas preconcepções de mundo. Ela não era uma jovem grávida que “errou”, deixou de estudar para ter um filho, não usou camisinha, não tomou anticoncepcional. Era uma mulher fazendo suas escolhas.

                Ela tinha esse brilho, a vontade de ser mais, de poder ter o seu espaço. Eu consegui ouvir e perceber a importância da maternidade na independência dela. Toda a lista de “coisas erradas” (ou talvez “mais corretas”) perdeu o sentido, e aprendi a tentar buscar compreender o diferente e não deixar que a minha avalanche de conhecimentos científicos viesse sufocá-la no seu direito de ser mãe.

Conversamos mais e sobre vários assuntos, falei que gostava de tocar violão e ela falou “não sabia que médicos tocavam violão, achei que só estudassem”. Nos despedimos com um abraço comovido e sem julgamentos, trocamos muito sem nem perceber, sem impor, sem mais nem menos, só diferentes. Médicos tocam violão e meninas escolhem ser mães. Nós, mulheres, crianças, jovens escolhendo seus caminhos. Eu-menina começando a medicina e ela gestando. Ninamo-nos sem perceber. E a chuva continuou lá fora.




[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

25 março 2014

Lá...


Lá onde a luz brilha,
Lá onde o amor vai
nós achamos a trilha
de uma estrela que cai.
— A Turma do Balão Mágico

    Um dia nos planejamos para o batizado, o aniversário, a primeira comunhão, a formatura, o noivado, o casamento, o chá de panela, a despedida de solteiro, o primeiro dia de aula, o último dia do ano, o velório, a missa... Planos de tempos esperados, desejados, festejados ou sofridos, temidos... Histórias que nossos pais e os pais de nossos pais escreveram e registraram em fotos que enfeitam as paredes, os álbuns, os baús de memórias de família.

    De todos os planos, todos os encontros, a nossa necessidade ancestral do rito. Algo que marque nossa passagem, tal qual um portal que nos atravessa para um outro mundo: o mundo dos adultos, dos formados, dos casados e dos órfãos... Em uma série de atos que, geralmente têm uma ordem estabelecida, uma sequência lógica, nós nos despedimos de um momento e inauguramos outro.

    Mas de toda essa vida de esperas e planos, há o real da vida vivida sem estreias com data marcada. Sim, em um dia não riscado com um círculo vermelho em volta, damos um passo a mais, um sorriso a menos, uma palavra nova ou antiga dita de outro jeito, um desejo que não contemos e pronto, nos tornamos alguém que não éramos antes. Nem sempre percebemos. Não há ritual claro, não há aviso, não há vestido novo, nem valsa especial, não há hino ou hastear de bandeira, nem cortar de fitas ou troca de alianças... Simplesmente vamos, somos, nos tornamos e seguimos vida afora, sonhando com um dia novo.

    É verdade que todos os dias, em todos os encontros e desencontros, em todas as palavras e silêncios, há a chance de inaugurarmos e estrearmos, mas falo de coisas mais profundas, dessas que deixam marcas, dessas que deixam cores, cheiros, que deixam raízes onde nos sustentamos e nos alimentamos. Coisas que nos refazem, que ressignificam nossa história e que, de alguma forma até, acredito, mudam a rotação do mundo, a translação, a lua, as estações do ano e as marés. Coisas encantadas.

    Tenho prestado atenção nessas estreias sem aviso. Nessas passagens sem festa. E ainda, afirmo que, mesmo sem perceber, de forma tênue, mas muito especial e concreta, esses momentos têm sim, uma espécie de ritual mágico, escondido, tímido, quase uma névoa, uma neblina no dia claro. Tipo aquelas gotinhas de nada que se escondem no nevoeiro da primeira hora da manhã. Pois está lá, bem lá... E mais! Pode ser mais importante, mais revolucionária, mais significativa que qualquer corte de fita, qualquer assinatura de certidão, qualquer marcha nupcial ou soco no ar ao segurar o diploma. Porque o momento não é percebido no durante como todos esses outros. Ele é percebido depois. E nessa percepção é que nos dizemos em silêncio: “foi lá...”

    Que nem a musiquinha do Balão Mágico que fez parte da minha infância: “lá onde a luz brilha”. Sim, lá onde uma luz brilhou e, nem sempre percebemos. Lá achamos a trilha pra estrela que caiu, o sol que nasceu, para a chuva repentina, para o dia que mudou, para nós mesmos que nos tornamos outros, renascemos, descobrimos...

    15 anos faço de formada em julho. Desde o primeiro semestre a turma se preparava para a formatura. Festas, bingos, planos, reuniões, estratégias de conseguir dinheiro. Depois, empresas, fotos, convites, clube, baile, cerimonial, discursos, oradores, homenageados, músicas, entrada triunfal, togas, diplomas. Tudo sonhado em 6 anos e durou menos que 6 horas. Mas vale e valeu muito: lágrimas, orgulho, gratidão, alegria, sensação de alívio, liberdade e dever cumprido. Mas tenho certeza de que o momento em que a luz brilhou, o momento da minha festa de formatura foi antes, bem antes...

    Era o ano de 1998 e fui para Anguera, sertão baiano, pelo Programa Universidade Solidária. Algo semelhante ao antigo Projeto Rondon: estudantes de diversas áreas atuando em regiões vulneráveis, trocando, aprendendo e ensinando. Meu grupo passou um mês vivendo na pequena cidade. Dias intensos de descobertas, momentos de muita angústia e muita esperança, muita indignação e muita luta. Os dias e noites, todas, passaram tão rápido e tão densos que chegamos ao fim com a surpresa e o cansaço dos que correm, correm, correm e nem sabem para onde. E nem sabíamos mesmo que caminhávamos para uma maturidade e uma experiência que valia por semestres e semestres de salas de aula, laboratórios e provas finais...

    Em Anguera, fizemos um grupo de gestantes e nos mobilizamos, junto com a comunidade, para garantir a assistência pré-natal. Foi uma briga boa. Fiz muitos atendimentos, muitas visitas, muitos grupos de educação em saúde nos lugares mais diversos e até, debaixo de uma mangueira. Um dia, chegamos em uma escola para fazer um grupo e, juntos, nosso grupo e moradores, varremos a sala e limpamos as cadeiras. Descobri uma outra medicina e, naquelas tardes quentes do sertão, naquelas noites enluaradas de festas nas ruas, com as crianças e adolescentes, entendi que seguiria pelo caminho da medicina preventiva e social.

    Na última noite em que passamos em Anguera, a comunidade liderada pelas meninas da Pastoral da Criança organizaram uma serenata de despedida. Na madrugada fomos todos acordados por canções de adeus e agradecimento. Todos fomos chamados pelos nomes e recebemos rosas. O sol foi nascendo e a manhã do dia seguinte, o dia da nossa partida, foi chegando devagarinho, enquanto o forró tocava na calçada, na rua e a gente dançava, todos, tudo junto e misturado... Era fim e era começo...

    Foi lá...

    Lá onde a luz brilha, brilhou... Onde comecei a me tornar a médica que sou hoje. Onde achei a trilha de muitas estrelas que passaram e passam na minha vida. A minha foto junto com as meninas da pastoral, as meninas que me acompanharam em grupos e lutas, festas e orações é a foto da minha formatura. A serenata feita por elas foi a minha música de entrada. A rosa que me deram, foi meu diploma. Mais de um ano antes de me formar oficialmente, dancei a minha valsa de formatura: forró, com o sol nascendo e a alma e o coração recém aprendendo a juntar estrelas. Saindo da meninice da universidade e virando médica, de pés descalços na rua amanhecida e encantada de Anguera.



[Maria Amélia Mano publica na Rua Balsa das 10 às 3as-feiras]

19 fevereiro 2014

Quando eu desacreditei na medicina...

     Sim, isso aconteceu. No auge dos meus 15 anos, uma época reconhecidamente difícil para em geral todas as pessoas. Eu iniciei com uns vulgo “calombos” nos meus braços sem explicação aparente (afora o fato de eu tocar violão e guitarra umas cinco ou seis horas por dia além do colégio). Fui no médico e ele disse “nada de tocar violão por 20 dias”. Obedeci. Os “caroços” que insistentemente eu apertava para tentar fazer voltar para o lugar de onde vieram começaram no braço direito. E bem 20 dias aumentaram a dor e não alteraram nada o quadro inicial, mais repouso para a adolescente.

    Depois de alguns meses repousando muito e tentando fazer alongamentos, começou a fisioterapia, calor local, fortalecimento. Tudo parecia piorar, e eu que tentei inverter as cordas do violão para tocá-lo “virado” e parar de lesionar a mão direita logo desenvolvi o mesmo problema na mão esquerda. Começaram os exames: raios-x, ressonâncias, ultrassons, marcadores. Até uma conclusão insatisfeita do meu médico de que “isso aí é raro: bruxaria”. Começaram os medicamentos, doses cavalares para dor, pílulas, antidepressivos e tudo que poderia descer pela minha garganta. Eu não gostava do médico não lembrar do meu nome, ter que ler o prontuário toda a vez, não examinar meus “calombos”, e pior ser “a menina sem solução” com um olhar com um misto de pena e curiosidade. Não foi um, foram vários. Meus marcadores eram surpreendente sempre bons, negativos – as notícias eram desanimadoras, minha adolescência era desanimadora. Além da dor de ter que parar de tanger as cordas do violão.

Comprimidos. Fonte: Google imagens

    Foi mais ou menos um ano assim, de médico em médico, especialista para super-especialista, psicólogo, fisioterapeuta, hospital, laboratório, punções, e de volta para o especialista. Esgotada depois de um ano tomando e seguindo os repousos, exercícios e o que podia fazer cheguei em casa e falei: “não vou mais tomar remédio nenhum”. Cansei, suspendi sozinha tudo. Era melhor suportar a dor do que os efeitos colaterais dos remédios e dos tratamentos. Meu pragmatismo médico acabou ali. Desacreditei. Decidi tomar as rédeas do meu tratamento.

    E parti para uma nova jornada da minha vida e tratamento: seguir o que as pessoas me diziam. Primeiro fui me benzer, porque já que era “bruxaria” deveria tentar resolver isso. Fui em um benzedor, uma benzedeira, outro benzedor. Perdi a conta, mas me benzi, retornei, me benzi de novo. Tinha mudado a política de cuidado, iria tentar tudo e tudo iria me tentar. Fiz regressão, hipnose, e tomei passes. Terapia holística, cromoterapia, aromaterapia, acupuntura. Fui em um padre que dava “gotinhas”. Fiz tratamento espiritual, cirurgia espiritual, a procura do que a minha alma precisava. Tomei centenas de banhos de sal grosso e com outras ervas. Parei de comer carne, glúten, e até por um tempo tomei cinco litros de água por dia.

    Acredito que o mais difícil de todos foi tomar babosa por seis meses todos os dias, todas as manhãs. Usava suco de laranja para amenizar. Fiz homeopatia. Fui em muitos massagistas, fiz alongamento, parei de fazer alongamento. Tomei chás, de todos os tipos. Usei arnica, erva de baleeira, e misturas que me deram ou eu comprei. Li livros. Fiz, refiz e desfiz amizades. Lavei a minha alma chorando. Estudei anatomia, filosofia, antropologia, meditação. Chegou um tempo em que me perdi, não sabia mais no que acreditar. Mas me (re)construí, abri a minha mente. Estava constantemente acompanhada pela dor. Parei de tocar e comecei a escrever – minha alma inquieta não aguentava o silêncio das cordas, procurei amparo nas palavras.
A famosa babosa. Fonte: Google imagens


    Segui visitando os médicos, não tão certa. A medicina não me dava respostas, mas como em tudo que estava acreditando segui na crença em mim. Propostas de cirurgias, novos medicamentos, novos exames, novos diagnósticos para meu corpo cansado de dezesseis-dezessete anos. Mas com o tempo fui me modificando, encontrando os pontos de equilíbrio. Descobri que a acupuntura me fazia bem, que a meditação me ajudava a controlar a dor. E não tão contente e nem tão descontente fui me conhecendo, buscando a minha alma, crescendo. Equilibrando.

    Fui reconhecendo o que de fato me cuidava e me aproximei mais. Já com dezenove anos, depois de muito rodar voltei a tocar violão, e para fazer “um movimento diferente com os dedos” comecei a tocar bateria. Já sabia que não poderia seguir na carreira musical (aquela velha história: você pensa que sai da música, mas a música nunca sai de você), desenvolvi mais a minha escrita. E (re)construí no meio da minha descrença a vontade de cursar medicina. Reconstruí porque era sonho antigo, desses que ficam guardados da infância. Descobri antes de entrar na faculdade que queria abraçar meus pacientes, reformular o que eu passei, conhecer eles além da anamnese. Saber os nomes, conhecer as histórias e saber que a medicina por si só era limitada.

    O diagnóstico mesmo, veio muito tempo depois quando já estava na faculdade de medicina. Hoje não digo que desacreditei na medicina, mas passar por essa miscelânea de vivências me fez acreditar em outros cuidados que vão além dela.

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

22 janeiro 2014

Mudança


Luan e Júlio carregando o minha estante pelas ruas riograndinas, agora ela vai ocupar a casa do Júlio

     Se eu deixar que meus sonhos antigos se tornem besteiras, então isso só pode ser um nítido sinal de envelhecimento. Pouso o lápis na escrivaninha e fito a janela de infindáveis vidas que me espreitam. A vida muda, os tempos mudam e os desejos também. Mas talvez se olhar para trás e ver que tem muitas coisas ficando porque é mais confortável seguir assim, algo está errado. Está certo, tenho o conforto, a casa, a televisão, mas o que de tudo isso me vale frente a vida que se desdobra?
    Hoje meus amigos carregaram a estante, o sofá, estou emprestando os pedaços da minha casa para ocupar outros lares. Olho para o apartamento mais vazio, mas lembro dos sorrisos, penso que alguém vai lavar roupas na máquina de lavar, e eu vou lavar a minha roupa em outros lugares. Me conformo ao sentar cansada depois de empacotar várias caixas e ter que estudar para uma prova. A vida é dinâmica, penso. Divido os livros, a impressora, o rádio.
    Simplesmente não posso continuar com tudo tão bem organizado para seguir a ordem por seguir. Porque a vida tem os seus dissabores, e até um dedo cortado vem preencher a minha noite e o meu apartamento vazio.  Mas na balança vamos equilibrando as coisas boas e ruins, deixando pesar mais as coisas boas. Por isso a bagunça, as malas, as caixas, e a sensação inevitável de “estou esquecendo alguma coisa”. Aliás, estou esquecendo vários pedaços de mim, me reinventando.
    Bom, muitos falam “que loucura”, mas perdoem-me os normais, acho que enlouqueci para não seguir o caminho mais acertado. Está feito então, vou organizando uma pequena mochila, um notebook, alguns kgs de erva-mate (para o chimarrão me acompanhar nas noites solitas), um caderno peruano que ganhei de presente para anotações e as minhas vivências que frente a esse mundão parecem um quê de nada. Mas é preciso partir.

Voam abraços,

Mayara Floss

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

08 janeiro 2014

Gesso

Olhos. Autor desconhecido.

    Era um desses dias da disciplina de traumatologia prática. Estávamos lá discutindo sobre um fraturas de membro inferior e chegou acompanhada de uma estagiária uma senhora simples, levemente encurvada, com um casaco xadrez, blusa vermelha, pele um pouco escurecida, alguns dentes faltando, e os olhos muito assustados. 

    Chegou lá no meio daquele exército de jalecos brancos, ela iria tirar o gesso. Para quem ainda não vivenciou essa experiência, para retirar o gesso é utilizada uma serra vibratória, muito barulhenta e que é realmente assustadora. Ela não é circular, apenas vibratória, só corta o gesso e não corta a pele, tanto que os alunos ficam fazendo demonstrações para os pacientes para deixá-los tranquilos colocando a serra vibratória nas próprias mãos. O fato de não cortar, não exime a pessoa do medo. 

    Cada um reage de uma maneira, já vi reagirem rindo, brincando, gritando, chorando. Essa senhora que iria tirar o gesso do braço direito estava nitidamente apavorada. Mal sentou na cadeira e já estava com os olhos cheios de água, olhando em suplica para nós. A estagiária foi aprontando a serra, dizendo para colocar o braço aqui, e colocando o avental na senhora, e conversando com pressa. 

    Ela começou a serrar o gesso, enquanto a senhora olhava desesperadamente para todos nós, até que nos aproximamos e ela deu a mão para uma colega minha. A estagiária terminou e ao tentar retirar o gesso ele não soltou, e aí ela olhou para a senhora e só então percebeu que ela estava tremendo e chorando. Eu fui buscar um copo de água para acalmá-la, colocamos a serra de lado e enquanto ela estava tomando água, com os olhos de desespero a estagiária falou que teria que utilizar a serra novamente. Ela sorveu a água tremendo, gole por gole e me olhando nos olhos. Quando ela terminou eu perguntei se ela tinha alguma religião.

    Ela falou que era luterana e tinha feito a eucaristia com um pastor que ela gostava muito na sua cidade. Eu olhei profundamente nos olhos dela e pedi se ela queria fazer uma oração antes de tentarmos serrar o gesso novamente. Ela disse que sim. Fechou os olhos e ficou em silêncio, a respiração acalmou, ela ficou serena e quando abriu falou que estava pronta para o segundo tempo. Ela apertou a mão da minha colega e eu fiquei todo o tempo com a minha mão no seu ombro e olhando nos seus olhos.

    Era um infinito até terminar de serrar o gesso, mas acabou. Ela suspirou e sorriu aliviada. Seus olhos se transformaram em agradecimento, não falou nenhuma palavra, apenas assentiu com a cabeça. E depois partiu para o setor de Raio-X.

28/06/2013

Do meu caderno de vivências, voam abraços,

Mayara Floss

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às quartas-feiras]

17 dezembro 2013

O DIA EM QUE DESCOBRI QUE EXISTIAM RICOS E POBRES E QUE EU ERA POBRE

Ernande Valentin do Prado

Quando era pequeno, meu pai sempre trabalhou na Fazenda do Nego, até onde me lembro. No início, morávamos na fazenda que ficava no Município de Doutor Camargo. Depois, fomos para Campina da Lagoa, ambas no Paraná. Em Campina da Lagoa morávamos na cidade, não sei se porque não tinha casa na fazenda para nós ou porque era desejo de minha mãe que fôssemos para a escola. Eu deveria ter uns sete anos nessa época.
Com a chegada do Natal, eu me preparei para receber os presentes de sempre e fazia planos. Indaguei certa vez ao meu pai: o que será que Papai Noel vai trazer neste natal?
Ele disse, não sei não. Acho que Papai Noel está sem dinheiro e vai trazer só balas neste Natal.
Na minha cabeça aquela ideia era absurda, afinal de contas, balas não eram presentes. Disse isso para ele e o assunto morreu.
Na véspera de Natal, eu e minhas irmãs colocamos os sapatos na janela e fomos dormir bem tarde tentando ver o Papai Noel trazer os presentes, mas finalmente dormimos, até porque meu pai disse que papai Noel só vem se as crianças dormirem e era melhor não arriscar ficar sem presente.
No dia seguinte, fui o primeiro a levantar e correr na janela para ver meus presentes, mas meu sapato estava cheio de balas. Muitas balas, tantas que até pareciam presentes, encheram o “conga”.
Fiquei muito decepcionado, afinal de contas, balas não era presente de jeito nenhum e Papai Noel não tinha o direito de fazer aquilo comigo e com minhas irmãs.
Pensei em acordar todo mundo e protestar. Lembrei-me da história de Papai Noel achar a casa dos vizinhos do morro muito longe para ir até lá e fiquei com mais raiva ainda dele.
Voltei para cama, mas não dormi mais. Fiquei acordado pensando em presentes, em Papai Noel e no que poderia fazer para mudar aquela situação.
Em frente minha casa, tinha um predinho (sobrado) de alvenaria de dois andares, coisa que só conheci na cidade. Na fazenda, todas as casas eram de madeira e baixas e, na cidade, a minha casa era de madeira. Nele moravam duas crianças. Elas tinham brinquedos “de pilha”, as roupas eram de cores vivas e não tinham furos nem remendos. Cada um tinha mais de um tênis e sapatos, usavam calça comprida para ir à aula e à missa, tinham dinheiro para comprar doce na venda e figurinhas para os álbuns. Na casa deles, que parecia enorme, tinha geladeira de duas portas e TV em cores.
Lembrei que, na hora do almoço, minha mãe fazia suco de pacotinho (daqueles que um frasco dava uns cinco litros) e eu ia pedir gelo na casa do vizinho, que não ficava muito feliz.
Estava na cama pensando em tudo isso e tive vontade de chorar.
Um mundo novo se abria para mim e não era melhor do que o mundo onde eu vivia.
Não tive raiva de meus pais por não ser rico, mas achei aquilo muito injusto, afinal deveríamos ter tudo que os vizinhos tinham. Naquele momento, descobri que Papai Noel não existia, só poderia ser meu próprio pai, afinal como ele saberia das balas antes de Papai Noel entregá-las?
Fiquei conformado e com pena de meu pai por não poder nos dar brinquedos aquele ano. Fiquei com raiva do mundo por ter gente que não podia ter brinquedos e por Papai Noel não existir. Igualmente fiquei aliviado de saber que, afinal, Papai Noel não era (um filho da puta) preguiçoso, que não foi na casa do vizinho por achar longe. Entendi que meu pai não iria dar presentes para o vizinho, pois cada pai faria isso por seus filhos.
Quando minhas irmãs acordaram, eu disse que tinha balas nos sapatos, mas que eram balas muito boas, que valiam a pena ganhar. No almoço, minha mãe assou uma galinha inteira e fez maionese que enfeitava com tomate, alface e ovos em forma de flores (achava isso a coisa mais linda do mundo). Abriu-se uma garrafa de tubaína (que só tomávamos no domingo) e eu busquei gelo no vizinho, que não ficou feliz com isso. Mas aquele Natal foi especial e triste para mim. Chupei balas a semana toda. E contava para todo o mundo que Papai Noel tinha me dado balas por que estava sem dinheiro.
No ano seguinte, ganhei o caminhão de puxar cavalos , um monte de cavalinhos e um caminhão Mercedes azul igual aos de verdade. Eu mesmo escolhi uma semana antes e meu pai comprou e fingiu ser Papai Noel.
Será que eu não seria mais feliz sem consciência dessas coisas? Será que precisava descobrir isso tão cedo ou desse jeito?
Agora (estes dias) fui a casa de uma senhora que mora com três filhos em um barraco de pau- a- pique. Dois ambientes. Sem piso. Uma cama para todo mundo. As crianças sujas andando no chão e subindo na cama cheia de roupa. Vinte um anos,três filhos. Fiquei pensando como a miséria aumentou e se aprofundou nestes anos que separam minha infância do meu presente.
Perguntei para uma das crianças se tinha escova de dentes e ela respondeu: “meu pai tá desempregado por isso não comprou, mas vai comprar assim que tiver dinheiro”.
Hoje, as crianças ficam sem escovas de dentes e sem Papai Noel.

Ver também:

PAPAI NOEL
Revisão: Cecília Mano.



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