26 março 2014

Ninar


"Vem meu ursinho querido
Meu companheirinho
Ursinho Pimpão
Vamos sonhar aventuras
Voar nas alturas
Da imaginação"


                Chovia na rua. Sentei ao lado de uma jovem grávida no meio da comunidade. Sem jaleco, sem nenhuma grande “proteção” médica. Segundo ano da faculdade, mais ouvidos, menos opiniões. Sentei e comecei a falar sobre o tempo, afinal a desculpa para todos os dias úmidos de Rio Grande. Ela estava sentada, com a barriga aparecendo, blusa curta, calça colada, chinelos de dedo, cabelo preso, sorriso no rosto.

                Gravidez na adolescência era o que eu pensava. Meu cérebro estava trabalhando, pensando em camisinha, sexo seguro, usar anticoncepcional. Mas enfim, decidi falar do clima. Ela falou que a casa que ela morava alagou, mas estava feliz porque agora ia ter uma casa só sua. Perguntei onde, e ela disse sorrindo que era no fundo da casa da mãe dela, perto da casa do seu irmão. Por enquanto ia ser um só cômodo, e ainda estavam pensando se iam fazer banheiro ou não, mas a casa era dela. Dela e do bebê.

                E o pai da criança? Era o que eu deveria perguntar, mas o assunto surgiu assim sem mais nem menos, sem nenhuma interrogação. O pai era mais velho, trabalhava no porto e de vez em quando aparecia, não muito feliz que ela estava grávida, mas esperava que fosse um menino. E ela tinha um sorriso imenso no rosto.

Estava orgulhosa que ia ser mãe com seus quinze anos, que ia ter um espaço só para ela, e ajudava a construir o seu novo lar. Agora teria o espaço seu, tão sonhado depois de dividir por muito tempo os cômodos entre vários irmãos. Nesse ponto acho que muita coisa foi se desmanchando em mim, todas as minhas preconcepções de mundo. Ela não era uma jovem grávida que “errou”, deixou de estudar para ter um filho, não usou camisinha, não tomou anticoncepcional. Era uma mulher fazendo suas escolhas.

                Ela tinha esse brilho, a vontade de ser mais, de poder ter o seu espaço. Eu consegui ouvir e perceber a importância da maternidade na independência dela. Toda a lista de “coisas erradas” (ou talvez “mais corretas”) perdeu o sentido, e aprendi a tentar buscar compreender o diferente e não deixar que a minha avalanche de conhecimentos científicos viesse sufocá-la no seu direito de ser mãe.

Conversamos mais e sobre vários assuntos, falei que gostava de tocar violão e ela falou “não sabia que médicos tocavam violão, achei que só estudassem”. Nos despedimos com um abraço comovido e sem julgamentos, trocamos muito sem nem perceber, sem impor, sem mais nem menos, só diferentes. Médicos tocam violão e meninas escolhem ser mães. Nós, mulheres, crianças, jovens escolhendo seus caminhos. Eu-menina começando a medicina e ela gestando. Ninamo-nos sem perceber. E a chuva continuou lá fora.




[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

Um comentário:

  1. Que bonito isso, Mayara. É tão difícil não cair em julgamentos morais nesta situação. Parabéns, você conseguiu ouvir essa mulher escondida na adolescente grávida.
    Eu também deixei minhas preocupações de lado um instante lendo seu texto.

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