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02 janeiro 2015

LEMBRANÇAS SIMBÓLICAS

Ernande Valentin do Prado

Fogão sujo e cama desarrumada são as imagens da pobreza. Pensei nisto enquanto limpava o fogão e conversava com Larissa que lavava a louça do almoço.
- Deve ser pelas imagens que viu nas favelas de Curitiba, era o que tinha, acho que as pessoas não tinham onde guardar ou porque faltava agua encanada. Disse Larissa.
Deve ser, respondi, mas acho que é uma lembrança que vai mais longe. Minha mãe limpava o fogão, ficava uma beleza. Alias a cozinha toda ficava uma beleza. Tudo limpinho, organizado. Panelas de alumínio brilhando, louça secando no escorredor num arranjo impossível de ficar em pé, mas ficava.
A mesma coisa com a cama. Minha mãe arrumava o melhor que podia sua cama. Era a primeira coisa que fazia ao levantar pela manhã. Arrumava a cama, estendia a colcha para enfeitar e era assim que deveria ficar até a hora de dormir. Casa varrida todos os dias, encerrada, cada coisa em seu lugar, organizada.
Tento reproduzir toda essa organização, toda essa limpeza da minha mãe em tudo que faço na vida. Levanto pela manhã, arrumo a cama, escovo os dentes (quando Larissa avisa que o café está pronto), arrumo a mesa, tomo café sentado no mesmo lugar, com a mesma xicara que ganhei de minha mãe. Depois tiro a mesa e volto com o mesmo vaso feito pela minha irmã. Sento no meu escritório (na minha cadeira e escrevo no meu computador): começo qualquer texto pelo título, depois monto o esqueleto com suas partes e só depois faço o recheio.
Meu pai não. Ele era diferente. Sempre foi a imagem do improviso, da agilidade mental, da genialidade, da ironia de canto de boca, do olhar que atravessa. Sempre se pareceu com o cientista louco que sabia resolver qualquer coisa, mas que não estava bem ligado no mundo. Ele sujava o fogão derretendo queixo diretamente na chama (e não limpava, é claro – ou melhor, iria limpar depois). “Guardava” tudo que podia (nunca se sabe quando se vai precisar de um pedaço de fio elétrico ou uma torneira velha). E nunca arrumava a cama ou tirava o sapato dos pés para pisar no chão brilhando. Brigas? Até hoje é assim.
Minha irmã mais velha tem muito do meu pai e da minha mãe juntos. Consegue ser original, criativa e organizada ao mesmo tempo. Cozinha como ninguém, borda, costura, faz artesanato (inclusive o vaso que fica em cima de minha mesa) e tudo sabe dar um jeito, ninguém fica sem resposta com ela. Teve todo tipo de revés na vida, mas acorda e continua esperançosa. Falei com ele ontem, arrumou um emprego novo (repositora em uma rede de supermercados, mas disse que a meta é ser gerente da loja em breve).
Minha outra irmã tem o humor e a leveza de meu pai. Consegue deixar a louça suja em cima da pia e ir ver TV (coisa que admiro), mas não consigo achar muito confortável. Tem resposta para tudo e agilidade mental impressionante. Não guarda rancor, mas parte para ignorância com facilidade, sobretudo quando sente que estão querendo lhe enganar. Sempre tem uma piada infame, uma maneira de relativizar tudo. Um coração gigante que todos acolhe sem distinção, inclusive centenas de cachorros.
Sinto muito falta dele e delas.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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