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22 janeiro 2016

COMUNICAÇÃO

Impossibilidade de voar. Aeroporto de Manaus. Ernande, 2015.
Ernande Valentin do Prado

A tv estava ligada, do banheiro Isabel podia ouvir parte dos anúncios, antes que Gilberto mudasse de canal:
- ... seu novo carro é ess...
- ... venha para igreja do...
- faça um seguro de vid...
- ... governo federal, pátr...
Tudo pela metade, pensou Isabel, parada em frente ao espelho do banheiro, olhando sua nudez. Não era mais uma menina, mas ainda não se achava uma senhora. Rosto vivo, alegre, lábios delicados, olhos muito negros, seios firmes, apesar dos dois filhos aos quais amamentou por dois anos cada um. Os cabelos, muito pretos, na altura dos ombros. Virou-se de costas e observou as nádegas. Gostou do que viu.
Quando tinha vinte anos, era comum pensarem que tinha apenas 14, por isso a tratavam com a ingenuidade que se tratam as crianças. Secretamente Isabel se divertia com isso, mas não ficava satisfeita. Mesmo agora, tantos anos depois, persistia aquele rosto de meninas e a confusão das pessoas, não mais sobre sua idade, mas sobre quem era ela, o que pensava, quais seus desejos, do que era capaz.
- ... passe aqui na segunda-feira e compre seu...
- ... só sabe quem tem...
Por baixo da porta, entrava a sombra das variações de luz, emanadas da tv. O som persistia, Gilberto continuava pulando de canal em canal, naquela insistência em encontrar algo que nunca lhe satisfazia, que não existia:
- ... a cerveja 100%...
- Passe seu fim de ano no chal...
Ali, em seu mundo particular, protegida, começou ter dúvidas: será só isso, não terá mais nada me esperando? Gilberto era bom, tinha que reconhecer, são anos de parceria, de convívios, de lealdade, cumplicidade. Mas será só isso, insistia a pergunta, que sempre tentava evitar.
Ainda nua, abriu a porta do banheiro e saiu. Queria sentir que efeito sua nudez provocaria no marido.
- compre agora, sem sair de cas...
- o sorriso mais clar...
Ficou parada, em pé frente a porta, com a luz nas constas, de frente para o marido, que continuava pulando de canal em canal, com o controle remoto na mão, como se não a tivesse visto. Andou pelo quarto, passou creme hidratante nas pernas. Girou em torno da cama, então, como último recurso, parou em frente à teve, de forma provocativa, com as pernas levemente abertas, sorria, mas não deixava de estar bastante séria. Disse, ao perceber que tinha a atenção do marido:
- Se eu te pedisse, agora, pra me bater, o que você faria?
Por longos minutos, pareceu à Isabel, Gilberto ficou mudo, como que sem saber o que dizer, o que pensar, perplexo com a pergunta, que em sua boca deveria ser escandalosa demais, impensável.
Por um instante insignificante, pareceu a Gilberto, pensou naquela pergunta, tão absurda na boca da esposa, sem mudar de canal. Então, voltando a escutar a tv, moveu a cabeça para o lado, evitando encarar Isabel, trocou de canal e disse:
- Mandaria lhe internar.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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