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27 junho 2014

PACIENTE

Ernande Valentin do Prado

Continuação de Samuel, publicado em 20 de junho de 2014. Tanto Samuel, quanto Paciente, são partes de: O estado das coisas. Reflexão pessoal, enquanto usuário, sobre o sistema de único de saúde e o trabalho da enfermagem.

Sempre achei que o termo paciente não era adequando e continuo achando. Paciente é parte, não é o ser integral, é a parte doente internado em um hospital, preferencialmente, isso ao menos desde a criação do hospital terapêutico no século XVII. Por isso sempre acho que estão fazendo piada quando dizem que “é preciso ver o paciente de forma integral”. Apenas a pessoa pode ser integral, o paciente sempre será uma parte, a parte que fica doente, se percebe doente e está internada sem muita determinação de si mesmo. Além disso, sempre achei que ninguém poderia ter paciência dentro de um hospital. Mas agora parece fazer algum sentido, depois de tantos dias vendo meu pai resignado. Talvez até seja verdade se a internação for rápida, uns três ou quatro dias. Mas o tempo parece dar muita paciência ou, ao menos, ir vencendo as resistências. O hospital ou melhor, a internação, que é quase sempre forçada e contra a vontade, parece moer as resistências. Toda hora um pouquinho até que há a entrega, até que todos as resistência e pudores se vão.
No caso do meu pai parece que a paciência vai aumentando. Ou, o que parece mais plausível, os dias vão minando suas resistências. No começo não queria  ajuda para tomar banho, achava que se tivesse que usar uma sonda ia morrer. Depois usou sonda e sobreviveu e assim foi com todos os outros procedimentos dolorosos e constrangedores. Para quem sempre morreu de medo de agulha, agora ele parece nem as perceber. Consegue até fazer piadas. Diz que se tomar água vai vazar tudo pelos buracos das agulhas, como nos desenho do pica-pau. Mas a risada é triste e o sorriso não existe de fato. 
Quem vai perdendo a paciência parece ser a família e os profissionais.  
Com o tempo o pessoal da saúde cada dia mais se julgam capazes de tomar decisões e dizer o que os outros devem ou não devem fazer. Fazem interpretações sem levar em conta a história de vida do doente e de sua família ou mesmo as informações colhidas ao longo da internação. Para que serve um prontuário? Para que se fazem anotações? Para que perguntar uma, duas, três vezes se não se verifica, não lê novamente, não busca entender, não se acredita nas respostas? A história vai sendo refeita na cabeça das Enfermeiras, das Médicas e de todas, mas vai sendo refeita de uma forma que tudo se encaixe que combine com o que os livros descrevem ou como eles gostariam que fosse. Parece que assim livra-se do sentimento de fracasso por não conseguir fazer o diagnóstico, não saber interpretar aquela sensação, aquele resultado de exame que em nada confere com o que o paciente e sua família sentem ou com o que os livros descrevem.
É muito difícil ficar dentro de um hospital sem agredir ninguém, sem reclamar e pedir mais atenção, mais consideração, mais solidariedade. A família vira parte da paisagem, o doente mais um internado sem rosto e sem história com quem já não se tem paciência.  
Hospital, por melhor que possa ser, por mais necessário que possa ser, é muito ruim. Nunca vai conseguir atender as necessidades de um doente ou de sua família. Se bem que o hospital, seja qual for ele, não leva em conta que a família fica doente também, que precisa ser cuidada, ou melhor, essa compreensão está nos livros e na atitude das exceções. Até pouco tempo atrás nem se admitia acompanhantes nos quartos ou enfermarias.
Lembro-me de trabalhar em um hospital onde era proibido verificar a pressão da ou do acompanhante. Para isso precisava ir ao pronto atendimento, fazer uma ficha e pagar a tacha. Só se considerava responsabilidade do hospital o paciente, como se este vivesse sozinho e a família não fizesse parte do processo de saúde/doença/tratamento/cura.
           
O OITAVO DIA

Hoje já são oito dias dentro do hospital como acompanhante de meu pai. Ao todo, considerando apenas essa intenção, são doze dias que ele está aqui. Vai indo começa a bater um desespero. A falta de evolução, a dependência física que vai se acentuando, a falta de apetite e a aparente falta de efeito do tratamento vão acabando com a esperança de uma solução rápida. 
A falta de diagnóstico assemelha-se ao parente desaparecido. Não se sabe o que fazer, não tem como a vida continuar. Sem diagnóstico a vida para. Não há tratamento, pois não se sabe o que curar. Uma vontade de chorar, de gritar pelos corredores, de dizer alguns palavrões para o pessoal do hospital. Afinal meu pai não é apenas mais um internado, ele é meu pai e todos deveriam ter a capacidade de ver isso. 

A INTEGRALIDADE NEGADA7 

Médica: A sua irmã foi falar com a Assistente Social...
Eu: Foi...
Médica: Então deixa eu te explicar umas coisas: Até o mês passado a gente esterilizava as agulhas de biopsia. A ANVISA proibiu essa prática e agora não podemos fazer mais isso. O SUS não paga as agulhas para biopsia.
Eu: E quando o paciente precisa de uma biopsia faz o que?
Médica: Tem que esperar o SUS pagar, às vezes trinta dias. Outras vezes, quando o paciente é carente a gente faz uma vaquinha e paga. Os médicos pagam.
Eu: Isso não pode ser assim. Não consigo acreditar nisto. Eu vou pagar, pego uma nota fiscal e depois vou discutir o caso. A mesma coisa com relação ao exame de himunofluorecencia. Não quero esperar nem quero discutir, mas o que sei é que o SUS paga ou deveria pagar tudo que é necessário.
Médica: O exame de himunofluorencia é opcional.
Eu: Como assim opcional? Tem como saber qual a doença sem o exame?
Médica: Não.
Eu: Então não é opcional.
Médica: Mas a gente pode tratar sem o exame.
Eu: Mas vai tratar da doença certa?
Médica: Pode ser que a gente acerte.
Eu: Eu vou pagar o exame e depois vou discutir. Se esta me dizendo que não tem como fazer o diagnóstico sem o exame, então ele não é opcional. Eu quero que você entenda uma coisa: não estamos questionando a necessidade do exame ou a honestidade dos médicos em solicitar. O que estamos questionando é a integralidade. A constituição brasileira e a lei orgânica da saúde dizem que a pessoa deve ser tratada com integralidade. Eu sei que o SUS vai pagar o que for necessário, mesmo que tenhamos que brigar por isso. 

DIA DE NATAL

Dia de natal de 2008: eu, minha mãe e minhas duas irmãs passamos o dia com meu pai no hospital. Ele foi, naquela enfermaria, o único doente com a presença constante da família. Alias, em todos os dias ali, ele foi o único a ter a presença da família o tempo todo, em todos os horários. 
Não foi um natal feliz, é verdade, mas não há como negar a grande unidade desta família. 
Semana passada, em uma roda de conversa com amigos, eles retratavam as grandes discussões e desentendimentos que têm com a família, pai, mãe, irmãos, avós. E eu fiquei pensando, ouvindo os graves conflitos que relatavam: “eu tenho uma família maravilhosa.” 
E agora nós cinco ali de novo, todos juntos como sempre e como há  anos não conseguíamos. 
Por falar em família: uma grande onda de solidariedade varreu toda família de minha mãe e meu pai. Muitas ligações, às vezes diárias. Visitas, viagens, arrecadações em dinheiro para ajudar a manter a vida financeira. Meu pai é trabalhador autônomo, pedreiro, carpinteiro, eletricista e outras coisas. Sem trabalhar não tem como ganhar. Pagava um seguro de vida/acidente, mas esses planos só são bons quando não se precisam deles. Quando precisa é muito difícil conseguir receber sem ir há justiça. Paga INSS também, mas já há trinta dias tenta marcar a perícia e não consegue. É desta forma que o cidadão brasileiro não tem o direito nem de ficar doente. E a família e os amigos foram muito solidários nesta hora. 

EM CASA 

     Às 19 horas do dia 25 de dezembro de 2008 uma das médicas entra no hospital. Eu estava saindo para ir comprar um refrigerante na esquina. Aproveitei para conversar sobre uma possível alta, pois havia percebido que toda vez que os exames dele melhoravam, que a pressão baixava, visivelmente ele piorava. Ficava mais sonolento, mais queixoso, enfim, mais deprimido. Ela disse que a situação era muito difícil, que no hospital era mais fácil controlar e corrigir os desequilíbrios que ele apresentava, mas que iria discutir o caso com a equipe. 
Dia 26, antes do almoço chegamos em casa. Meu pai nem parece à mesma pessoa. Almoçou, ficou acordado o dia todo, recebeu as visitas, assistiu televisão e só foi dormir depois de ver mais um capítulo de PANTANAL[1]. No hospital não via nada, não queria nada, não comia, não andava.
Ele ainda não tem diagnóstico. Vai precisar fazer acompanhamento semanal até descobrir e tratar sua doença, mas agora está em casa.

ONTEM

Agora estou morando na Bahia. Sou professor em uma faculdade de Enfermagem onde posso debater todas as questões com as alunas e os alunos. A vida deu muitas voltas.
Ontem liguei para meu pai. Seu problema nos rins, que descobriram ser pielonefrite, está controlado. Agora apareceu diabetes, que ele jura estar controlando com a alimentação. Mas não consegui falar pessoalmente desta vez, pois ele tinha ido pescar.

Texto originalmente escrito em março de 2012.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]



[1] Novela original da extinta TV Manchete, mas em reprisada no SBT. Ela mostra muitas cenas externa gravada no pantanal, especialmente mostrando os rios e a fauna da região. 

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