Era o ano de 1974. Eu estava em crise. No terceiro ano de medicina, pensava em abandonar o curso. Escolhi medicina pensando ser o curso mais apropriado para me tornar um pesquisador. Era fascinado com a complexidade da vida. Imaginava-me em um laboratório procurando desvendar mistérios do corpo e encontrando soluções de impacto. A figura do professor Pardal, das histórias em quadrinho do Pato Donald, com suas descobertas mirabolantes, era uma referência não claramente assumida. Mas o estágio que havia feito no Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais, um centro de pesquisa bastante reconhecido nacionalmente naquela época, me decepcionara. Descobrira como a pesquisa científica em laboratório era demorada, dependente de longa rotina de repetição de testes. Era um ambiente sem o dinamismo que imaginara. Mas o que fazer então? Imaginava também o trabalho clínico em consultórios particulares e ambulatórios públicos como algo rotineiro e chato. Cheguei a procurar uma psicóloga da Universidade para me orientar.
Nesta época, o Centro Acadêmico do Curso de Medicina organizou a I Semana de Saúde Comunitária - SESAC. Eram férias e eu tinha alguns amigos na sua organização. Resolvi participar sem saber bem o que encontraria. Estudantes de cursos de medicina de outros estados vieram, trazendo relatos e reflexões de experiências de trabalho comunitário em saúde que começavam a se organizar no Brasil, em geral ligados a universidades. Era impressionante o entusiasmo de alguns deles. Animei-me, então, a participar de um estágio de duas semanas em postos de saúde recém-criados na Região do Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, para os participantes da SESAC. Fui parar, com mais dois estudantes, no povoado de Engenheiro Schinnor, no município da Araçuaí, depois de uma desconfortável viagem de ônibus por toda uma noite. Até hoje não compreendo bem o que me animou a arriscar nesta aventura.
Era um povoado pobre e em decadência pela desativação da Estrada de Ferro Vitória-Minas, que lá passava. Fomos muito bem acolhidos pela comunidade. Cada refeição era feita na casa de um morador diferente. Estávamos bastante desajeitados e inseguros, apesar de apoiados por uma estudante de Brasília mais adiantada e já com alguma experiência em saúde comunitária. Apesar de estudantes, a população da redondeza, carente de assistência, afluía em grande número trazendo seus problemas que procurávamos resolver com os medicamentos da Secretaria Estadual de Saúde e muita conversa entre nós. Já iniciados em alguns princípios da pedagogia libertadora de Paulo Freire, procurávamos criar espaços para ir discutindo, de forma mais ampla, as raízes e soluções dos problemas mais importantes do lugarejo. Tentávamos identificar lideranças que nos ajudassem no trabalho de mobilização.
A carência da população, que ao tornar valiosos os nossos poucos conhecimentos, os levava a expor intensamente os seus problemas, e as orientações de Paulo Freire, que nos levavam a não assumir a atitude de doutor sabe-tudo, mas de encontrar formas para discuti-los coletivamente, fizeram uma mágica. Aquele povoado pacato e decadente se revelou lugar de uma dinâmica fascinante. Problemas aparentemente banais iam mostrando estar ligados a histórias complexas, carregadas de sofrimento, garra, opressão e paixão. Eu, filho de uma família de classe média tradicional da capital mineira e com uma vida bem regradinha, tive acesso a mistérios que nem imaginava. Assustei-me e encantei-me. Além do mais, sentia que éramos significativos na busca de soluções. Pouco entendíamos de política, sociologia, psicologia ou economia, mas nosso precário saber técnico nos dava autoridade para propor encontros e, seguindo os princípios da Educação Popular, colocar problemas em discussão. Nossa insegurança até ajudava, na medida em que nos dificultava tentar responder sozinhos às dúvidas. Estávamos perplexos demais com o que deparávamos para conseguirmos transmitir segurança. Era impressionante como uma simples orientação metodológica salvava e abria caminhos: “diante de um problema significativo, procure discutir com as pessoas envolvidas, buscando construir coletivamente as soluções”. Nas discussões com as famílias e nos grupos formados, fios da complexa meada da vida iam se revelando, mostrando dimensões inusitadas da luta pela sobrevivência e felicidade. Soluções eram costuradas com palpites de muitos, já os envolvendo no encaminhamento. Ficávamos encantados com os resultados esboçados no processo que ajudávamos a construir.
Participávamos da obra de recriação coletiva da vida e isto era fascinante. Esta metodologia pedagógica nos aproximava afetivamente deles e nos permitia desfrutar de seus carinhos e alegrias que expressavam de forma intensa.
Não me lembro mais dos rostos daquelas pessoas, nem da maioria de suas histórias. Mas ficou marcado em minha alma um sentimento tão forte que tem me acompanhado em toda minha existência. Nunca vivera nada tão intenso. Foi algo, tão tremendo, que relativizou todas as minhas dúvidas. Não entendia bem o que acontecera, mas, a partir daí, fiquei sabendo que era isto que queria para a minha vida.
Desde então, em cada período de férias, buscava organizar um estágio em alguma comunidade. Precisava experimentar aquilo novamente; queria viver outros desdobramentos do amor que se iniciara; necessitava conhecer mais esta realidade que me fascinava. Vieram, então, ainda como estudante, Veredinha, Padre Paraíso, Calciolândia e a favela da Avenida Raja Cabáglia de Belo Horizonte. Os rostos e lugares mudavam e o vínculo aumentava. Classes populares e movimentos sociais foram conceitos que descobri e me ajudaram a dar uma identidade a este outro que tanto me atraía para um encontro de criação conjunta, mobilizando meus sonhos e minha paixão. As classes populares eram um novo e fascinante outro que encontrei em minha vida; um outro desvestido de pompas e sem pudor de escancarar sua intimidade desarrumada na crise da doença, deixando mostrar uma criatividade e vibração capazes de construir uma inesperada alegria e amorosidade em situações aparentemente insustentáveis.
Meu curso de medicina ficou colorido. Nas diversas disciplinas, os assuntos técnicos ganharam vida, pois me ajudavam a entender os problemas das pessoas com quem criara vínculos. Passei a ter, então, uma referência para selecionar o que estudar mais, ganhando uma autonomia diante da cobrança dos professores. Formei, fui trabalhar na Paraíba com saúde comunitária. Desde então, tive fortes encontros em Pilõezinhos, Guarabira e nas favelas de João Pessoa e Belo Horizonte. Descobri que outros profissionais também tinham paixões semelhantes e estavam cheios de inquietações. Fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado buscando a melhor compreensão de nossas dúvidas. Vieram livros e a Rede de Educação Popular e Saúde, que aglutina hoje centenas de profissionais com buscas parecidas.
Hoje, com 60 anos, já tive vários amores. Tive namoradas, casei, tive dois filhos que não mais vivem comigo, separei, casei novamente e, agora, tive um novo filho. Olhando para trás, vejo que o encontro, com o mundo dos pobres, oprimidos e marginalizados, iniciado em Engenheiro Schinnor, no espaço do trabalho em saúde e da luta pela justiça social, funcionou em mim como um grande encontro amoroso. Destes que criam um vínculo de tal monta que reorientam todo o viver. Que despertam energias e motivações que nos dão garra para enfrentar a aventura da vida. Entre desencontros, desencantos, momentos de intensa alegria e conquistas, raivas e frustrações, este amor perdurou central. Gerou filhos: alunos e leitores espalhados pelo Brasil, movimentos sociais, sistematizações teóricas. Criou redes de parentesco. É um amor cheio de precariedades e contradições como todos outros, mas o que mais desencadeou mudanças em minha vida.
A partir do conhecimento da realidade propiciado por este comprometimento com a pobreza, opressão e marginalidade, fui também definindo meu modo de encarar minha vida afetiva, meu lazer, minhas amizades, minha vida religiosa e minha profissão.
A força deste comprometimento estruturante da minha vida foi confirmada na década de 1990, cerca de 20 anos depois da experiência de Engenheiro Schinnor. Nesta época, passei por um intenso processo de revisão de valores. Afastei-me do cristianismo, pela crescente tomada de consciência das feridas deixadas pela formação cristã tradicional (a desvalorização dos desejos, a cobrança contínua de perfeição e a ênfase na culpa pessoal) e pelo cansaço com as contradições da igreja. E terminei o casamento de 19 anos.
Como não cristão, fui fazer meu doutorado em Medicina Tropical na UFMG, procurando estudar o novo papel da educação popular a partir da conquista do Sistema Único de Saúde, quando suas práticas passaram a valorizar mais o espaço de atuação dentro das instituições. Escolhi fazer a pesquisa em um serviço de atenção primária à saúde bem estruturado, inserido em uma grande favela de Belo Horizonte. Esta experiência está descrita no livro Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família (Hucitec, 2010, 4ª edição). Nesta pesquisa, quando percebi, estava totalmente dedicado à educação popular junto às famílias mais pobres e rejeitadas da favela: a maioria dos moradores e lideranças comunitárias tinha raiva delas pelos tumultos e sujeiras que causavam. Quando percebi isto, vi que tinha em mim um vínculo muito profundo, até mesmo inconsciente, com os pobres, oprimidos e marginalizados que dinamizava minha criatividade e trazia realização. Fui tomando consciência que um cristianismo não teórico fazia parte da minha estrutura pessoal, mesmo tendo muitas discordâncias com sua doutrina antes aprendida. Um cristianismo que não era mais essencialmente um sistema de saberes para conduzir a vida, mas um caminho de desvelamento e elaboração de uma estrutura amorosa que nos constitui (o Cristo que habita em nós, desde a criação da humanidade). A partir desta percepção, as palavras do Evangelho ganharam novo sentido. Passei, então, a ouvir e valorizar mais as vozes interiores profundas, abrindo perspectivas de ver e relacionar com a realidade, de forma menos regida pelo dever e pelo pensamento considerado correto. Retornei ao mesmo lugar, vendo, no entanto, nova paisagem. Novamente, minha vida pessoal e profissional se modificou a partir de um insight originado, em grande parte, no contato com os pobres. Por isto, tenho uma grande identidade com a história de São Francisco, narrada em texto anterior.
Este foi o caminho inicial de meu envolvimento pessoal com a luta pela saúde dos pobres, oprimidos e marginalizados. Vivi uma experiência que fundou um novo modo de ser. Percebo que vários profissionais, com envolvimento semelhante, tiveram também experiências fundantes, mas falam pouco sobre elas. É importante reconhecer a força destas experiências numinosas, isto é, experiências tão tremendas e fascinantes que passam a reorientar o viver. Trazem-lhe um novo sentido e motivação, bem profundos. Grandes aprendizados ocorrem por meio de experiências das quais pouco conversamos, pois nossas palavras não dão conta de expressá-las inteiramente. Aí, calamos. Mas como educadores, precisamos tentar conversar mais sobre elas, criando espaços educativos protegidos em que possamos explicitar estes pensamentos e sentimentos ainda embaçados e inseguros para se expressarem com firmeza. É importante trazer para a pedagogia estes processos subjetivos, que ficam abaixo da linha d’água da consciência clara e lógica e que têm imenso poder orientador dos maiores sentidos e motivações do existir. Em outras palavras, valorizar a dimensão espiritual no fazer educativo.
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